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Arieli Groff

Cabelo, cabeleira!

A revolução de Gal e o que ela dá voz em nós

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Não reajo rápido, não tenho resposta imediata para aquilo que de alguma forma e em algum nível me mobiliza. Preciso deixar o que sinto decantar dentro de mim, sentir os espaços internos serem habitados da forma que é possível. 

E nesse tempo da gentileza com meus sentimentos, fui depurando a partida de Gal e como a arte dela conversa com a minha história. 

Quando era criança, ganhei um negócio que se chamava “Meu primeiro Gradiante”, era um toca fitas com microfone e que também tinha a função de gravador, que era a que eu mais usava. Lembro de pedir para meus pais manterem o estoque de “fitas virgens” sempre em dia, eram nelas que eu gravava minhas músicas favoritas, a capela e plenos pulmões na voz de uma criança de 6, 7 anos. 

No dia que ganhei, lembro da emoção tão  característica de uma criança que realiza o sonho de ganhar o brinquedo que tanto esperava. Eu queria cantar, cantar e cantar, sempre gostei de cantar. Coloquei a fita, ainda vazia à espera de seus primeiros registros, e cantei! Gravei com toda a emoção ainda preservada da infância, dessa fase que ainda não conhece as grades opressoras da vergonha, que se permite sentir e expressar na mesma legitimidade e intensidade. E de olhos fechados, soltei a voz para cantar uma das minhas músicas preferidas na época:

“Cabelo, cabeleira, cabeluda, descabelada. 

Quem quer a força de Sansão

Quem quer a juba de leão

Cabelo pode ser cortado

Cabelo pode ser comprido

Cabelo pode ser trançado

Cabelo pode ser tingido

Aparado ou escovado

Descolorido, descabelado

Cabelo pode ser bonito

Cruzado, seco ou molhado”

E assim, a menina de cabelo crespo cantou Gal na sua primeira gravação do seu primeiro gradiente. Mas a menina de cabelos crespos e volumosos cresceu, e alisou com muita química, por mais de 10 anos, a cabeleira descabelada. A opressão da vergonha a encontrou, ditou regras e definiu que cabelo pra ser bonito precisava ser liso. 

Foi quando a maternidade chegou, e com a química suspensa pela gestação e amamentação, que eu me libertei. Naquele momento não me dei conta da dimensão do que acontecia, mas assim como em tantos outros níveis e sentidos, a maternidade compulsoriamente e à fórceps, me reconectou com a minha essência, com a legitimidade dos meus sentimentos, com a validação dos meus pensamentos e a expressão dos meus desejos, me relembrando que esses desejos serpenteavam em mim em fios de formato ondulado, crespo e descabelados, à capela, plenos pulmões e de olhos fechados e me ensinando a respeitar muito minhas lágrimas, mas ainda mais minhas risadas. 

Porque essa sou eu, a quem desde criança Gal deu voz e me autorizou a ser, e “Por isso uma força me leva a cantar, por isso essa força estranha no ar, por isso é que eu canto não posso parar, por isso essa voz tamanha..” 

Seguimos juntas: Gal, sua história, sua revolução, a minha e de todas a quem ela deu voz e seguirá dando. 

por Arieli Groff

Arieli Groff é mãe da Maitê e psicóloga, especializada em Luto Adulto e Infantil e Teoria do Apego. Idealizadora do Instituto Pirilampos voltado para maternidade e infância. autora e organizadora dos livros “Quando uma mãe nasce”, “Que medo é esse?” e “Toda mãe tem histórias para contar”.


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