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Arieli Groff

Era uma vez

Em sua coluna de estreia, Arieli Groff fala sobre o surgimento de uma mãe

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Era uma vez, uma mulher, que seguia pela vida buscando completar o combo dos sonhos: boa filha, boa aluna, faculdade, emprego, carro, namorado, noivado, apartamento financiado, promoção no trabalho, casamento, filho, filhos.... mas afinal, combo dos sonhos de quem?

Escuto muito a frase “fulaninha não dá trabalho, nem parece que tem criança em casa, é um doce, não chora”. Quantas de nós não fomos essa criança? Aquela que em algum momento aprendeu que não poderia dar trabalho aos pais e que precisava ser exemplo na família, que sempre deveria fazer o que esperavam como condição para se sentir amada e aceita. E, dessa forma, seguimos a vida, crescemos, fomos para o mundo, nos relacionamos, nos tornamos mães e, tudo mudou.

Às vezes parece que tudo está fora de lugar

Em um primeiro momento, nos pegamos apenas repetindo padrões já internalizados, elogiando nossos filhos por não chorarem e serem bonzinhos. Fazemos isso não pelo julgamento de ser o melhor jeito, bom ou ruim, mas apenas pelo fato de nos soar familiar, por desconhecermos outro jeito de expressar afeto. Mas com o passar dos dias parece que as coisas estão fora de lugar, não nos agradam, sentimos um vazio que não se preenche com nada, uma angústia inominável. Muitas vezes, uma vontade de chorar e isso faz a culpa bater, afinal, “você não tem motivos para chorar, teu filho tem saúde, tem casa, marido que ajuda”. É um sentimento de inadequação infinito e de sentir que todas as certezas se esvaindo. A convicção é de que não vai dar conta e que aquela criança escolheu a pior pessoa do mundo como mãe.

Nos olhamos no espelho e já não reconhecemos aquela mulher que nos encara, desconhecemos quem somos e quem desejamos ser, sequer lembramos do que gostamos. Envoltas nas rotinas para as quais a maternidade nos catapulta, a memória falha e a sensação que temos é que a despersonalização nunca mais irá passar. A sensação é que aquela mulher que, com tanto esforço e abnegação havia conquistado o combo dos sonhos, ficou para trás e já não nos habita mais. É legítimo o pressentimento de que, daqui para frente, não se será mais a mesma de antes. E isso é um fato.

Uma mãe pede passagem

Uma nova mulher, agora mãe, pede passagem, anseia por descortinar um novo maternar, talvez até então tido como impossível, inapropriado e errado aos olhos das crenças geracionais tão enraizadas. É um tempo de viver aquilo que ninguém contou, tempo de se ver solitária em um universo cheio de palpites, pitacos e opiniões, mas que só aumentam a certeza de querer fazer tudo diferente.

É chegado o tempo da revolução, de romper a opressão de uma vida inteira de bons modos, de fazer a alma cantar por essa criança que precisa de uma mulher mãe em sua inteireza de afetos. Mas é também a hora de acolher, de ser morada para a mãe possível de nossa própria infância, aquela mulher que, dentro de limites impostos e rigidez, fez seu melhor e que, agora, ainda que inconscientemente e às escondidas, vibra com nosso despertar, se orgulha e se cura um pouco através da nossa coragem.

Era uma vez uma mulher, que já não mora mais em nós, que agora tem sua alma expandida e não cabe mais no combo dos sonhos de ninguém, a não ser nos seus próprios desejos.

por Arieli Groff

Arieli Groff é mãe da Maitê e psicóloga, especializada em Luto Adulto e Infantil e Teoria do Apego. Idealizadora do Instituto Pirilampos voltado para maternidade e infância. autora e organizadora dos livros “Quando uma mãe nasce”, “Que medo é esse?” e “Toda mãe tem histórias para contar”.


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