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Madeleine Muller

Nossa relação com o tempo e a tal curva da reminiscência

A pandemia, com suas incertezas e novas experiências, alterou nossas percepções de tempo

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Comecei a escrever esta coluna ao som de “Tempo Perdido”, do Renato Russo. Essa música sempre me deixa nostálgica e com vários questionamentos. Você já parou para pensar no quanto a nossa relação com o tempo afetou os hábitos de consumo durante a pandemia? Ou você é daqueles que não comprou nada, nadinha? Alguém “precisou” imediatamente de roupas durante o tempo de confinamento? Será que o que já tínhamos não era suficiente? Ou mesmo com o armário abarrotado você tinha a sensação de “nada para vestir”? No início, todos pensamos que isso duraria pouco, que logo a vida voltaria ao normal.

Não foi bem assim, e rapidamente fomos induzidos a comprar roupas confortáveis para estar em casa ou para o home office, isso considerando quem teve essa possibilidade. Muitos, confrontados com as restrições impostas, passaram a dar valor para sua casa e seus pertences, outrora esquecidos, já que ninguém tinha tempo para prestar atenção se o sofá estava com uma mancha ou a parede precisando de pintura. Quem pôde, até renovou móveis ou mudou de endereço, em nome do conforto ou da praticidade.

Os que perderam empregos ou fecharam seus negócios, lamentaram o tempo em que eram felizes, sem se dar conta. O tal “eu era feliz e não sabia”, quem não escutou isso de alguém? Os tempos mudaram e se tornaram complexos, os meses se transformaram em anos, dois anos mais precisamente, onde todos tiveram tempo para rever sua vida, sem, no entanto, vislumbrar o que ou como seria depois disso. Ainda ouço alguns amigos dizerem que não sabem como irão recuperar o “tempo perdido”. Espero que seja ouvindo o Renato Russo e não um mero fazer compras, pois isso não preenche a vida nem compensa as perdas que tiveram.

Incertezas X noção do tempo

A incerteza induzida pela pandemia alterou nossa noção de tempo, transformando memórias e alimentando um foco renovado por um passado idealizado. Éramos mesmo tão felizes assim? Perdemos ou ganhamos um tempo para refletir e talvez fazer melhor aquilo que vínhamos fazendo/deixando de fazer? Certamente que cada um terá suas próprias respostas aos dilemas que se apresentaram, em seus diferentes contextos.

A pandemia, lockdowns subsequentes e reaberturas regionais variadas distorceram a noção de tempo das pessoas. Os dias pareciam se arrastar, enquanto os meses pareciam passar em um piscar de olhos. Adicione-se a mudança repentina para adaptação de uma força de trabalho remota em vários fusos horários - de acordo com o Google Trends, “relógio mundial” (world clock) foi o termo de pesquisa global com maior crescimento- num momento em que o conceito de tempo parecia inexistente. O tempo não tinha parado, mas nós sentíamos que sim, já que não podíamos fazê-lo andar mais rápido para que a pandemia passasse logo e recuperássemos o nosso ritmo normal. Ao mesmo tempo, sentíamos que ele nos escapava pelos dedos, incapazes de retê-lo.

Paradoxo da quarentena

Cientistas batizaram essa percepção de falta de tempo como “paradoxo da quarentena”. O tempo se tornou um ponto focal coletivo – de encontrar formas para fazê-lo passar ou desfrutar dele. As pessoas também começaram a buscar atividades calmas e alegres, que lembrassem um período mais simples da era pré-pandemia, por exemplo, assar pães (em nível global, a venda de farinha disparou 238% na comparação anual), aprender jardinagem e organizar festas virtuais. Eu própria participei de várias, algo inimaginável para mim, até então pouco interessada em interações virtuais. Agora já virei pesquisadora do metaverso, quem diria. Essa percepção de tempo e memória compõe um traço comportamental mais amplo, chamado por psicólogos de curva de reminiscência.

“Desapegados do ritmo habitual do cotidiano, o tempo parece elástico. É como se ele se esticasse infinitamente, sem avisar, nos surpreendendo. ” Essa frase de Claudia Hammond, em seu livro ‘Time Warped: Unlocking the Mysteries of Time Perception’, me fez pensar que talvez as coisas nunca mais voltem a ser o que eram, mas nós também não seremos mais os mesmos, mesmo que finjamos que nada aconteceu.

Curva de reminiscência

Quando as pessoas perdem a percepção do tempo, a nostalgia pode ajudá-las a se manter no presente. Estudos mostram que a maioria das pessoas lembra claramente de experiências entre os 15 e os 25 anos – anos de formação cheios de ‘primeiras vezes’ (o primeiro amor, o primeiro emprego, etc). Psicólogos chamam isso de “curva de reminiscência”, algo muito relevante enquanto tentamos deixar para trás o caos da pandemia e nos dedicamos aos nossos recomeços.

Imersos na tecnologia que utilizamos ao longo dos dois últimos anos, fomos invadidos por um sentimento de nostalgia. De acordo com a Associação Americana da Indústria Fonográfica, em 2020, as vendas de discos de vinil superaram as de CDs pela primeira vez desde a década de 1980. E se não estivessem jogando 'Super Mario Kart', as pessoas estavam encontrando conforto em séries e filmes do passado ou resgatando antigas técnicas de tingimento de roupas como o tie dye, febre em 2020, ou aprendendo a tricotar, bordar e outras técnicas no estilo DIY (do it yourself), inclusive com milhares de tutoriais à disposição na Internet para encontrar um jeito de fazer algo e driblar o tempo. Entretanto, sabemos bem que ganhar ou perder tempo é pura ilusão, não é mesmo?

Resta frisar aqui que, se a pandemia trouxe algo de positivo, foi um sentido renovado de propósito. Os desafios e o isolamento impostos em 2020 e 2021 fizeram com que muitas pessoas passassem a pensar nos seus objetivos, reavaliando todas as áreas da vida, inclusive e principalmente seus hábitos de consumo. Para muitos, a crise foi um catalisador que deixou mais claro quem é mais importante e o que é mais importante, o que possibilitou projetar um futuro melhor. Essa perspectiva serviu também para aliviar as sensações de estresse, ansiedade e desorientação, onipresentes ao longo desse período. Enquanto finalizo esta coluna, Renato Russo me lembra: “Sempre em frente, não temos tempo a perder”...melhor ouvi-lo, concordando ou não.

Carpe diem.

por Madeleine Muller

Madeleine Muller é produtora, professora no curso de Design de Moda da ESPM, stylist e mãe da Alexia e do André. Pesquisa o consumo consciente da moda e é autora do livro Admirável Moda Sustentável. Escreve quinzenalmente para o Bella Mais. Acompanhe seu dia a dia pelo Insta: @Madi_muller


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