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Madeleine Muller

Guerra da Ucrânia foi parar no desfile e na comunicação da Balenciaga

A moda nos tempos de guerra

Semanas de Moda de Milão e Paris já refletiram o conflito na Ucrânia, afinal, moda também é posicionamento

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Profissionais da moda estiveram atentos às semanas de moda de Milão e Paris, essa última encerrada há poucos dias, sendo que ambas coincidiram com os terríveis momentos de guerra na Ucrânia, que todos assistimos estarrecidos ao longo dos últimos dias. O clima de incerteza e gravidade se refletiu nas passarelas de Paris com modelos desfilando peças remetendo a coletes à prova de balas e cores escuras, com poemas e canções pacifistas tocando ao fundo. Alguns desfilaram suas criações de forma silenciosa e respeitosa, caso da Armani. Não havia música, apenas os passos secos e o farfalhar dos tecidos na passarela, em meio a um silêncio grave, até porque muitas modelos que trabalham na Europa são ucranianas ou russas.

Alguns manifestantes nas portas dos desfiles expressaram seu desconforto com um evento que premia a frivolidade e a alegria de viver, mas desta vez nem alegria tinha, todos estavam conscientes de que este não era o melhor momento para uma semana de moda acontecer. Entretanto, no mundo capitalista, onde a moda é uma de suas filhas prediletas, o show não pode parar e o calendário oficial foi mantido. Os desfiles aconteceram, alguns presenciais, outros híbridos, mas todos tiveram de ser vividos "com gravidade", conforme pediu o presidente da Federação Francesa de Moda, Ralph Toledano. Não li se alguma marca cancelou desfile, até porque esse planejamento e as próprias coleções começam a ser desenhadas bem antes, no mínimo seis meses, como todos sabem, envolvendo muitas pessoas e muito dinheiro, claro. Aliás, milhares de empregos dependem da indústria da moda, em sua vasta cadeia. Moda é sonho, mas é negócio também, não podemos esquecer.

Num mundo já assolado por diversos problemas, desde alterações climáticas, desigualdades sociais, pobreza, poluição até a pandemia da Covid 19, a moda precisou reinventar-se e integrar esse sentimento de seriedade. A Dior, por exemplo, apresentou roupas de proteção, introduzindo airbags na forma de espartilhos ou coletes. Um vestido cinza evocava a armadura do passado, com ombreiras e tornozeleiras para proteção.

A moda já viveu dois anos difíceis, de introspecção, devido à pandemia, o que torna difícil associar beleza, estética e alegria, por mais que se tentem cores nestes tempos complexos, ainda mais com a proximidade de uma guerra, lembrando que a Ucrânia começou a ser atingida na última semana de fevereiro, no mesmo período da Paris Fashion Week 2022. Quem tem cabeça para pensar em roupas neste momento? E, no entanto, cá estou eu escrevendo sobre isso, dividida entre a volta da moda após período tão difícil e a complexidade deste momento, que impacta, de certa forma, a todos. Mas é preciso frisar que posicionamento agora é fundamental para as marcas de moda, muito mais do que as roupas em si. Entender que a moda não pode se alienar dos graves problemas que assolam o mundo, ela que é um espelho da sociedade num dado momento. E a alegria? Bem, essa talvez demore um pouquinho para voltar. Vamos às pinceladas rápidas do que vi:

A Balmain, quase antevendo um período apocalíptico, apresentou espartilhos acolchoados, criações que pareciam coletes à prova de balas, e escudos dourados.

O belga Anthony Vaccarello, diretor artístico da Saint Laurent, rompeu pela primeira vez com sua estética "sexy glam" para apresentar um desfile poético, aos pés da Torre Eiffel, que sugeriu "um momento de reflexão", mas que, na real, me pareceu que ele estava refletindo sua própria trajetória como designer, revisitando os arquivos da marca. Nada a ver com alguma mensagem pacifista, era mais um saudosismo de uma estética elegante, da saudade do glamour e das festas a que não se podia mais ir, em tempos de isolamento social.

Stella McCartney voltou a Paris exibindo seu compromisso quase lendário com o bem-estar dos animais e o uso de tecnologias e materiais com rígidos controles ambientais. Seu desfile começou com palavras do ex-presidente americano John F. Kennedy e foi encerrado com a música de John Lennon e Yoko Ono "Give Peace a Chance".

Valentino expôs um desfile de sonho usando apenas duas cores, pink e preto, lindo mas nada de recados. Talvez eu esperasse muito, afinal, essas coleções já estavam prontas antes desse embate entre Russia e Ucrânia começar, que mais poderiam esses designers fazer? Cancelar? Mudar tudo de última hora? Todos foram pegos de surpresa com esse clima de tensão. No geral, fiquei um pouco entediada com as apresentações, olhando o entra e sai de tendências, tentando enxergar algum significado que atendesse meus anseios éticos e estéticos, mas eis que surge a Balenciaga.

Balenciaga adota posicionamento firme contra a guerra

Este, sim, foi um momento especial. Primeiro por Demna Gvasalia, um criador georgiano que fugiu de outra invasão russa anos atrás, ter apagado tudo o que havia no instagram da marca e colocado apenas a bandeira da Ucrânia, acompanhada, nos destaques, por uma carta. Ali já se viu que ele tinha algo a dizer, que estava acima do seu trabalho enquanto designer, assumindo ainda que estava dividido entre fazer ou não o desfile.

Foi uma grande declaração de amor e apoio à Ucrânia, com um poema recitado em ucraniano, camisetas nas cores de sua bandeira e, na carta que mencionei, uma nota explicativa alertando que a moda "perdia seu direito de existir" durante a guerra.

As modelos desfilaram sobre neve, algumas seminuas, em uma referência aos refugiados. Porém, ele falava das migrações que já estavam acontecendo, com outros países, não só a Ucrânia. Lembrem que a coleção foi criada meses antes de existir essa guerra, mas ele soube relacionar e fazer o match perfeito com o que estava acontecendo, através do styling, da cenografia e dos efeitos especiais.

Outras marcas fizeram pequenas manifestações, ora usando as cores da Ucrânia, ora se pronunciando nas entrevistas. Alguns influencers ergueram cartazes e tal, mas a Balenciaga foi especial pois partiu de uma narrativa visceral, sentida e dolorida, de quem esteve no lugar de fala dos atingidos por uma guerra estúpida e sem noção. Há uma comoção global, e a moda, que já passou por outras guerras, não pode fechar os olhos e se alienar diante dessas realidades.

por Madeleine Muller

Madeleine Muller é produtora, professora no curso de Design de Moda da ESPM, stylist e mãe da Alexia e do André. Pesquisa o consumo consciente da moda e é autora do livro Admirável Moda Sustentável. Escreve quinzenalmente para o Bella Mais. Acompanhe seu dia a dia pelo Insta: @Madi_muller


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