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Madeleine Muller

Gana e a insustentável pobreza de vestir o lixo alheio

País africano vem se transformando no principal lixão têxtil de países ricos. Você sabe o que tem a ver com isso?

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Não fiquei surpresa ao ver as recentes reportagens sobre Gana, país que se tornou o principal lixão têxtil dos países ricos. Já venho pesquisando sobre isso desde 2015, e sigo enojada com essas práticas e de toda a desigualdade social, que não parece ter fim próximo. Segundo notícias na imprensa, todas as semanas, mais de 15 milhões de peças de roupas usadas chegam à população pobre desse país, na África ocidental, mas apenas parte disso consegue ser reaproveitada. A razão? As peças que chegam lá são de baixa qualidade ou estão danificadas, e poucas pessoas querem comprar esses produtos, fazendo com que fiquem encalhados e acabem sendo descartados em aterros, que já estão sobrecarregados. Por que o país aceita isso? Pensem se o governo e os políticos não deveriam estar impondo limites ou fiscalizando...mas alguém sempre está lucrando, não é mesmo? O problema vai muito além das roupas...e a pobreza só cresce.

A rota das roupas

Grande parte provém de doações da Europa, China e Estados Unidos e são disputadas a tapas pelos revendedores, uma espécie de máfia das roupas à custa da população de baixa renda. Que vai perdendo suas raízes e sua cultura local ao vestir camisetas de 2 dólares do Mickey ou do Fortnite, para os aficcionados em games. Ou alguma cópia mal feita de grifes da vez, aquelas com poder de validação social que os jovens tanto admiram.

Somos todos culpados, uma vez que fazemos parte de uma cultura consumista em que grande parte dos produtos adquiridos não são feitos por necessidade e nós nos acostumamos a comprar muito pagando pouco, num ritmo frenético. Essa tendência cresceu dentro do mundo da moda graças ao sistema de produção responsável por boa parte do excesso de consumo chamado fast fashion. 

A ilusão do bom, bonito e barato

Só para lembrar, fast fashion é o conceito da produção em massa de vestimentas e acessórios com baixo custo para os consumidores, mas que também oferecem baixa qualidade e durabilidade. Sendo assim, o descarte das roupas é feito de maneira acelerada, porque sofrem de obsolescência estética, e não funcional (como na obsolescência programada de eletrônicos, por exemplo) o que gera uma quantidade absurda de desperdício têxtil, tanto de pré quanto de pós-consumo. Além dos lixões locais, costuma-se terceirizar o problema, que é o que acontece com Gana. “Não vendeu ou está sobrando? Manda pra Gana que eles dão jeito”. Não dão mais. Gana vive um verdadeiro pesadelo ambiental.

Como isso começou? Crescimento da indústria!

A partir dos anos 70, grandes fábricas e indústrias têxteis foram inauguradas na China e em outros países da Ásia e da América Latina. Com a promessa de mão de obra e materiais mais simples, esses locais poderiam aumentar a produção sem ter acréscimo de custos. Não demorou muito para algumas lojas grandes de varejo nos EUA começarem a terceirizar a produção. As peças de roupa chegaram a preços tão acessíveis que as pessoas se viram capazes de comprar mais coisas. A escalada do consumismo fez com que as marcas deixassem de produzir coleções por temporadas e passassem a lançar produtos quase que semanalmente. Alguém duvida que os problemas começaram aqui?

Condições precárias de trabalho

Se, por um lado, o fast fashion ajudou a deixar as roupas mais acessíveis, nem todo mundo saiu beneficiado dessa relação. Trabalhadores passaram a receber piores condições de trabalho e diversas questões éticas foram quebradas para conseguir relativizar esses preços. Em fábricas de produção na China, na Índia e em Bangladesh, as condições são extremamente precárias. Estima-se que 50% dos trabalhadores que atuam dentro dessa indústria recebam menos do que um salário-mínimo, sendo os homens mais bem pagos do que mulheres e crianças. Sim, você leu bem: crianças também são exploradas e forçadas a trabalhar.

Desacelerando o consumo

Já que o fast fashion se mostrou um problema em diversas camadas, o que vem sendo feito para reverter esse cenário? Na contramão da moda rápida, o movimento "slow fashion" tem crescido e falado sobre a necessidade da produção de peças com maior qualidade e durabilidade, sendo produzidas com base na ética e na transparência para que seus consumidores entendam a importância de gastar um pouco mais com produtos que poderão usar por longos períodos. Além disso, empresas que utilizam matéria-prima nacional ajudam a fortalecer a economia do país e a gerar mais empregos.

Não compre só por comprar, mas quando for às compras, pelo motivo que for, escolha bem. Compre de quem faz, compre local, apoie as iniciativas em prol de uma moda mais sustentável. Seja você também um agente de mudanças. A compra é um ato político: quando você compra, você apoia aquela empresa, os seus produtos, processos e a forma como ela trata seus trabalhadores.

Desacelere. O planeta agradece.

por Madeleine Muller

Madeleine Muller é produtora, professora no curso de Design de Moda da ESPM, stylist e mãe da Alexia e do André. Pesquisa o consumo consciente da moda e é autora do livro Admirável Moda Sustentável. Escreve quinzenalmente para o Bella Mais. Acompanhe seu dia a dia pelo Insta: @Madi_muller


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