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Madeleine Muller

Sobre economia circular e novos hábitos de consumo

Para Madeleine Muller, desapegar de peças que você não usa não significa consumir mais

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Iniciativas de fomento à produção e ao consumo sustentável já vinham crescendo mesmo antes da Covid-19 abalar o mundo, como resposta aos impactos negativos que a indústria fashion provoca no meio ambiente. Com a proposta de incentivar o consumo responsável, a circulação de roupas e contribuir para a sustentabilidade ambiental, algumas redes de fast fashion estão oferecendo uma possibilidade aos consumidores de descartar roupas que não querem mais entregando-as nas lojas físicas, em repositórios próprios para a doação ou reciclagem, dependendo do caso.

Parcerias com ONGs que renovam e redistribuem os artigos usados e brechós virtuais estão entre as estratégias das grandes varejistas de fazer as roupas e calçados circularem por mais tempo e com novos donos antes do fim de sua vida útil. Até aqui tudo bem. O “problema” é que algumas oferecem bônus para a recompra de mercadorias, criando uma certa confusão no desapego: “descarte mais e compre mais sem culpa” não é, definitivamente, o propósito para um consumo mais consciente, onde a ação de descartar não pode estar vinculada ou ser “premiada” com uma nova compra.

A ideia é usar mais o que se tem e comprar menos o que não se precisa, mantendo o consumo equilibrado e evitando o consumismo, que são coisas bem diferentes. Ninguém quer ver a economia ruir, até porque muitos empregos dependem desse setor, mas é necessário haver equilíbrio e condições adequadas na produção e na demanda. Além do pilar econômico, não podemos esquecer o social e o ambiental para fechar a conta. A equação sustentável precisa desse tripé.

Mercado da moda movimento R$ 26 bilhões

O mercado da moda movimenta trilhões de dólares no mundo a cada ano e gera milhões de empregos. Só no Brasil, em 2018, foram R$ 26 bilhões. Um estudo sobre luxo, da Consultoria Euromonitor Internacional previa (isso antes da pandemia) que, até 2023, esse valor chegaria a R$ 29 bilhões. Porém precisamos considerar que, apesar de alavancar a economia e gerar muitos empregos, a indústria fashion é considerada a segunda mais poluente do mundo, perdendo apenas para a do petróleo. A justificada preocupação com o meio ambiente já questionava o comportamento dos consumidores e todos esses impactos, mesmo antes da pandemia acontecer. Até porque ainda não sabemos os resultados de tudo isso, envolvendo perdas financeiras das empresas e diminuição do poder de compra dos consumidores, num cenário de reconstrução mundial da economia. Estamos nesse momento de reconstrução, de reflexão, de pensar novos caminhos, não só para a moda, para tudo!

Contudo, é preciso continuar os esforços para uma moda mais circular. Segundo a Fundação Ellen Macarthur, referência no assunto, o foco desse modelo são os benefícios para toda a sociedade. E baseia-se em três princípios básicos: eliminar resíduos e poluição desde o princípio; manter produtos e materiais em uso; e regenerar sistemas naturais. A fundação aponta a necessidade de que as grandes empresas desenvolvam materiais, sejam embalagens ou tecidos, que possibilitem o aproveitamento em diferentes ciclos, para que o resíduo retorne ao solo ou ao sistema de produção industrial.

Obviamente, o apoio do Estado — com fomento a políticas públicas, leis de incentivo e financiamento e regras ambientais — é base indispensável para viabilizar o modelo de produção circular para a moda. Essas ações são essenciais, uma vez que vivemos em um país desigual, onde as informações e possibilidades de consumo consciente são elitizadas e poucas pessoas têm acesso. O modelo circular parte da preocupação de observar o ciclo da natureza, no qual tudo é reaproveitado e nada se perde, apenas se transforma. É um conceito em construção, inspirado em Lavoisier e na biomimética, começando pelo design da peça e considerando todas as etapas de produção, uso e descarte adequado.

Desapego sim, novas compras talvez

Uma forma de fazer o descarte é através das doações nessas parcerias firmadas entre as grandes lojas e as ONGs, porém sem aproveitar o desapego para novas comprinhas: antes de pensar no que se vai descartar, é preciso pensar em reduzir as aquisições não necessárias. Ficou muito latente a questão da demanda reprimida quando reabriram as lojas de alto luxo na Champs Elysées, em Paris, com filas imensas. Afinal, de que tanto precisam as pessoas em plena pandemia? Mais um vestido ou uma bota nova? Para usar onde? Para guardar? Nunca venderam tantas roupas on-line como agora, num momento em que ainda estamos longe de ter uma vida normal, socialmente falando. As mudanças só acontecem qdo. são colocadas em prática coletivamente, saindo dos discursos e das intenções. É preciso agir, cada um fazendo a sua parte, é usar mais o que se tem, ressignificar o que já existe, trocar, recuperar, apostar no upcycling — transformação de itens em desuso e resíduos em novos produtos — e os brechós, que dão novo uso a peças que estavam jogadas no armário. Mais do que isso, olhar bem para o seu guarda-roupa e fazer uma reflexão antes de partir para a próxima aquisição.

por Madeleine Muller

Madeleine Muller é produtora, professora no curso de Design de Moda da ESPM, stylist e mãe da Alexia e do André. Pesquisa o consumo consciente da moda e é autora do livro Admirável Moda Sustentável. Escreve quinzenalmente para o Bella Mais. Acompanhe seu dia a dia pelo Insta: @Madi_muller


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