capa
Madeleine Muller

Nem Emily nem Carrie: como será nossa relação com a moda daqui para frente

Madeleine Muller analisa esse novo momento da moda e do consumo

publicidade

Estava eu passando os olhos em algumas análises dos desfiles no hemisfério norte e observando as tendências para o verão 2021, num cenário bastante modificado e influenciado pelas consequências da pandemia na indústria da moda, a começar pelos formatos híbridos das apresentações. Por mais que se veja o esforço das marcas em apresentar algo que faça sentido neste momento, com todas as restrições que se impõem, não é tão simples como parece. Todos nós estamos avaliando o que realmente precisamos agora. Fuga da realidade? Menos roupas e mais experiências? Compras como diversão, alívio das tensões, entretenimento? A hora da demanda reprimida já passou, a de tomar consciência é agora e sempre. Sim, vamos continuar produzindo e consumindo roupas, vestir faz parte das necessidades básicas (nem tão básicas, para os fashionistas), mas num contexto completamente diferente do que vinha acontecendo até então.

Esta foi a temporada de lançamentos que viu a onda de contágios de Covid-19 diminuir, pelo menos em parte da Ásia e da Europa, segundo a Revista Elle. Diminuiu, mas não acabou e o vírus segue por aí, vejam os números e a tal segunda onda que já assola países como Reino Unido, Espanha, França... Mesmo com as Emilys alardeando que Paris é uma festa, correndo pelas calçadas do alto de seus Louboutins com uma baguette debaixo do braço e uma beret na cabeça, a realidade é bem diferente da série da Netflix, (um mix de Sex & the City e O Diabo veste Prada).

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Uma publicação compartilhada por Christian Louboutin (@louboutinworld) em

 

E isso tem impacto direto na nossa percepção não só sobre as roupas, as tendências e a sociedade do espetáculo, em geral (merci, Guy Debord!), onde vivemos nossos diferentes personagens em busca de aceitação social, mas também na ativação de uma série de questionamentos sobre a nossa própria relação com a moda e com o vestir, já que ninguém usará moletom para o resto da vida, mas também não irá de stilettos para a pracinha brincar com as crianças. Alguém pensou “vida real!” , e é isso mesmo, com pessoas reais, em seus dilemas existenciais, não caricaturas influenciadas pelo lado fútil do marketing de influência.

Sejamos mais do que isso! Ninguém será aceito só por estar usando a cor do ano da Pantone, se não tiver também o indefectível je ne sais quoi, que diferencia o portador. Mas se alguém optar pelo clichê e quiser vestir seu sonho ou fantasia, está tudo ok, é só pegar a camisa com a imagem da torre Eiffel (ringarde!!!!) e acreditar na sua ideia de glamour, c´est três bien: Emily in Paris é uma delícia de assistir se você não entrar numas de julgar tudo ao pé da letra, não se irritar com o styling pós Carrie Bradshaw produzido pela Patricia Fields (que foi figurinista de ambas as séries) e não se importar com clichês. Que, aliás, são propositais e muito divertidos. E se é para eleger um guarda-roupa dessas séries, nem Emily nem Carrie, fico com o da chefe da Emily, a irônica personagem Sylvie, essa sim representando a verdadeira elegância à francesa, comme il faut!

Mas voltando ao próximo verão, sigo lendo as análises e, de um modo geral, o verão 2021 é menos escapista e mais prático. O que eu tenho contra o escapismo? Nada, mas ele te leva para trás, para os bons tempos que estão lá longe, e talvez a gente precise de algo mais perto, mais “aqui e agora”, viver com o que temos, neste momento, não o que já passou e nem o que está por vir. O que temos agora, este lugar, esta vida, estas roupas que estão nos aguardando no nosso armário, simples assim! Precisamos ensaiar uma volta à “normalidade”, seja lá o que a define num mundo fragmentado e complexo onde às vezes temos mesmo vontade de sumir. Ou talvez voar.

A moda não consegue ser totalmente pé no chão pois a realidade da passarela não é a mesma das ruas, é preciso transportar essa estética para uma possibilidade real, algo que as marcas com pegada street style sabem fazer muito bem, traduzindo sonhos em forma de tênis com asas, como na exitosa parceria entre Jeremy Scott e a Adidas, onde se calçava um par de tênis e se voava para um mundo melhor...Eu adoraria pensar que sim, bem como torcer para que a moda voltasse a ser realmente o espírito do seu tempo.  

 

Diferente das temporadas mais recentes de alta-costura e as masculinas, a fantasia e os excessos foram deixados de lado no prêt à porter, ou pelo menos contidos. É como se a máxima de forma e função substituísse os excessos non sense e caça-cliques dos últimos anos. Ir um passo além das coleções instagramáveis e das selfies-ostentação...Talvez tenha chegado a vez de uma moda que faça mais sentido, com peças pensadas para existir além das telas de nossos computadores e telefones, peças em que cada detalhe seja considerado com atenção, no devido tempo, feito com dignidade e valores justos, sem essa correria e frenesi de pertencer a um mundo que não será mais o mesmo, nem nós! Mas essa conversa já rende outra série na Netflix, não é mesmo?

 

por Madeleine Muller

Madeleine Muller é produtora, professora no curso de Design de Moda da ESPM, stylist e mãe da Alexia e do André. Pesquisa o consumo consciente da moda e é autora do livro Admirável Moda Sustentável. Escreve quinzenalmente para o Bella Mais. Acompanhe seu dia a dia pelo Insta: @Madi_muller


compartilhe