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Quando a “brincadeira” vira assédio: como estabelecer limites

Caso do médico Victor Sorrentino, que está preso no Egito, traz à tona a discussão sobre quais são os limites das piadas e como se defender

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Desde o último domingo (30), o médico gaúcho Victor Sorrentino está detido no Egito, acusado de assédio a uma vendedora de loja. Uma das acusações é de ofensa à vítima, através de um vídeo gravado e postado nas redes sociais do médico, em que ela é alvo de palavras de duplo sentido e com conotação sexual ditas por ele. Já a segunda é por ofensa à sociedade islâmica como um todo, por conta da conduta e das frases. 

O fato traz à tona o debate sobre os limites que precisam ser estabelecidos para determinados comportamentos - quando uma brincadeira passa a ser considerada assédio? Conforme explica a advogada, empresária, líder do grupo Mulheres do Brasil em Porto Alegre e integrante do grupo de apoio do Projeto Justiceiras, Kerlen Costa, existem muitas definições e tipos de assédio. “Em suma, é um tipo de violência destinada a constranger ou forçar uma pessoa a fazer algo que ela não quer ou não tem capacidade de escolher”, aponta. 

O assédio sequer é sobre sexo, efetivamente. “Antes de tudo, ele é sobre poder. Sobre a ideia fixa do assediador de que tem poder de subjugar outra pessoa. As vítimas de assédio raramente se encontram em posição de dizer ao importuno que pare”, complementa Kerlen. 

Outra questão é a relatividade em algumas situações. O que é considerado assédio por uma pessoa, pode não ser para outra. Kerlen explica que, o que acontece é uma concepção de normalidade. Uma permissão social para que aquele ato aconteça e seja confundido com brincadeira ou até mesmo uma cantada.

“Algumas mulheres afirmam que não se sentiriam constrangidas pelo ato do médico, por exemplo. E esse é um testemunho muito claro do poder de uma ideia sendo incutida por séculos na mente de muitas mulheres e homens ao mesmo tempo: elas continuam normalizando o constrangimento ao qual estão acostumados”, aponta. 

Como estabelecer os limites

Em muitas situações, existe o questionamento: como identificar que uma brincadeira virou assédio? A resposta é mais “simples” do que imaginamos (porém, às vezes difícil de ser colocada em prática): se causou constrangimento, dor e humilhação ao "alvo"ou nas demais pessoas, é assédio. “Os homens tendem a dizer que sempre fizeram essas ‘brincadeiras’, como se a sociedade não fosse obrigada a evoluir. Continuam reproduzindo o que faziam na adolescência, como se a eles fosse dado o poder divino de ser um eterno ‘menino brincalhão’”, comenta Kerlen. "Caso a vendedora egípcia estivesse com outra roupa, estaria enfrentando o julgamento da população, que afoita pela defesa do homem, diria que ela estava pedindo aquilo através de seu modo de agir”, acrescenta. 

A psicóloga Patricia Mello faz coro com Kerlen e lembra que brincadeira é uma atividade de mão-dupla: todos os envolvidos se divertem. Se alguém sai desconfortável, incomodado, confuso, constrangido, envergonhado ou humilhado, não é brincadeira. “O assédio é unilateral: ele só contenta o assediador e quem compartilha de seu mal gosto; a vítima fica mal. Aliás, é importante pontuar aqui, que o ‘ter prazer ao provocar, constranger ou ferir o outro de qualquer forma que seja (sexual, psicológica, física ou moralmente)’ chama-se sadismo. Assédio é parte desse sadismo. E é divertido apenas para quem o pratica”, destaca.

As profissionais destacam que é importante, principalmente para nós mulheres, sabermos estabelecer estes limites. E o primeiro passo é estarmos abertas para outras formas de perceber a realidade. Não é porque determinado comportamento é repetido há centenas de anos que ele é correto a ponto de jamais o questionarmos.

“As pessoas tendem a dizer que o mundo está chato demais. Não está. O que ocorre é que, quanto mais fortes as mulheres ficam, mais poder de voz elas têm. No menor sinal de desconforto, seu ou de outra mulher, fale ou busque a ajuda de alguém que possa fazer algo para que esse tipo de comportamento pare. Quando uma mulher ao seu redor sentir confiança suficiente para contar sobre o sentimento que determinada situação lhe causou, não menospreze ou minimize. Para ‘desnormalizar’ um comportamento, é necessária insistência e sororidade”, ressalta Kerlen.

Não é brincadeira

Patrícia destaca que é preciso parar de “levar na brincadeira”. “Fomos ensinadas a ser polidas e não causar ‘problema’ expressando nosso descontentamento. Isso tem que parar. Isso pode parar. Hoje temos pessoas mais esclarecidas que apoiam as mulheres nesse novo posicionamento: um posicionamento que expressa seu mal-estar quando está sendo assediada”, comenta. 

A psicóloga reforça que a mulher pode e deve dizer que aquilo não é engraçado, que não gosta de ser tratada daquela forma e que exige mais respeito. “Se o assediador responder mal a isso, deve pedir ajuda. Fale, denuncie: é um direito seu poder andar pela rua livremente sem ter que passar por situações de assédio. Por anos, ser respeitado tem sido um privilégio dos assediadores. Temos que entender que não é assim: ser respeitado é um direito de todos”, destaca. 

Não se cale

Outro ponto trazido pelas profissionais é a necessidade das mulheres não se calarem diante das situações. Patricia ressalta a importância de validar as próprias impressões. “Todas as pessoas possuem a habilidade de perceber risco iminente. Isso é um mecanismo de sobrevivência pré-histórico. Como fomos criadas para ignorar qualquer coisa que cause desconforto social, acabamos ignorando esses instintos”, explica.  

Mesmo que nem sempre esteja claro, durante a situação, mesmo que nem sempre seja possível racionalizar tudo, há aquela percepção de que existe um incômodo e que aquilo não está certo. “Confiar nesses instintos é muito importante. Ao reconhecer a sensação de mal estar, descreva para si mesma o que há de errado. Depois, organize os pensamentos para explicar ao outro o problema. Se não houver mudança ou o agressor piorar seu comportamento, busque ajuda”, orienta.

A denúncia também é alternativa. Kerlen lembra que, atualmente no Brasil existem vários grupos de apoio, Delegacias da Mulher, Casas da Mulher Brasileira, canais online de denúncia seguros e a própria Justiça do Trabalho, quando for o caso. Locais onde as pessoas estão preparadas para acolher e conduzir. “Não se sinta sozinha ou culpada e busque apoio. Não esqueça que foi o assediador que se colocou na situação de ser acusado. Vale lembrar que hoje, no Brasil, sequer é necessário a concordância da vítima para que se denuncie um assédio. Portanto, ao percebê-lo sendo realizado contra outras mulheres, não se cale”, reforça a advogada. 

por Mariana Nunes

Mariana Nunes é jornalista. Ama café, praia, chocolate e futebol - não necessariamente nessa ordem. É torcedora fervorosa do Internacional e repórter do Bella Mais. @a_marinunes


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