O Mural Recluso

O Mural Recluso

Jorge Alfredo Barcellos *

‘Ao desembarcar, caminha a pé, por dez minutos, até alcançar o antigo terminal do Salgado Filho onde está localizada a obra de arte’

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Um segredo cabe no foco de uma luneta. Valentina, uma moça de corpo esguio, realça os seus cabelos curtos e cacheados num coque abacaxi. A estudante de história da arte busca subsídios para realizar seu trabalho de conclusão. Ainda não tem o tema bem definido. Durante as aulas aprendeu que muitas pinturas famosas espalhadas pelo mundo guardam detalhes ocultos. Pensa em averiguar se a obra de Aldo Locatelli, intitulada “A Conquista do Espaço”, pintada em 1953, em parceria com outros dois artistas italianos, possa conter algum segredo até hoje não descoberto. Procura por detalhes, à primeira vista imperceptíveis, e não apenas as imagens que constituem a obra. Fica um pouco receosa de que a sua intuição seja taxada de ingênua, mas acredita que o afastamento histórico de mais de setenta anos será um trunfo a seu favor.

Já leu muito sobre o mural, assistiu a documentários e observou reproduções digitais e em papel. Mas acredita que o contato in loco com a pintura é a chave para alcançar o seu objetivo. Sabe que é um painel de grandes proporções com cinquenta metros quadrados. Alude à história da Aviação, retratando desde os sonhos de Ícaro, passando por Leonardo Da Vinci, com destaque para Santos Dumont. Está motivada. Decide visitar o mural imediatamente. Pelo sim e pelo não, coloca uma pequena luneta na bolsa, para uma melhor aproximação visual de algum detalhe.

Toma um trem no metrô de Novo Hamburgo, onde reside, e ruma até a estação Aeroporto, em Porto Alegre. Ao desembarcar, caminha a pé, por dez minutos, até alcançar o antigo terminal do Salgado Filho onde está localizada a obra de arte.

Ao chegar, fica desapontada. O terminal aeroviário está desativado. As portas de vidros estão todas fechadas. Algumas com tapumes internos que impedem a visualização do interior do prédio. Gradis metálicos externos obstruem a aproximação. Um prosaico aviso, adesivado no vidro, remete a visitação da obra para a porta de número três. Vai até o local indicado e encontra apenas um segurança de uma empresa terceirizada que nada sabe a respeito de visitas ao afresco; e sentencia que o espaço está vedado à circulação de pessoas estranhas, desde que as suas operações foram transferidas para o terminal principal. A estudante não consegue ver o mural, nem de longe.

Valentina percebe que não há mais pequenos segredos a ser desvelados. O majestoso painel tornou-se, na sua integralidade, um tesouro enclausurado, completamente apartado da sua finalidade: a de ser exposto e apreciado pela população. A obra, pela sua localização, tornou-se invisível. Já não encanta nem emociona os seus observadores, como nos velhos tempos. Neste momento não há mais importância se guarda segredos sub-reptícios, ela tornou-se inacessível aos olhos do mundo. Está relegada ao esquecimento.

Apesar do desencanto, Valentina sabe que a sua presença física lhe permitiu descobrir que o mural está prisioneiro da indiferença. Instantaneamente, brotam na sua mente questionamentos assustadores. O que houve com a pintura após o fechamento do velho aeroporto? Como está o seu estado de conservação atual?A contemplação da obra de Locatelli será franqueada ao público algum dia? Qual será o seu destino? A estudante tem um insight. A malsucedida visita não foi de todo em vão. Valentina vislumbra novas possibilidades no estudo histórico das artes. Vai mudar o foco do seu trabalho.

Investigar como são tratadas as pinturas muralísticas nos ambientes públicos concessionados no Rio Grande do Sul. E de quebra, dimensionar a visibilidade proporcionada aos apreciadores.

Este será o seu grande achado, a sua contribuição acadêmica. Por meio da escrita poderá, também, evidenciar o grau de ostracismo a que está relegada a obra. Atualmente, conforme constatou, contemplar o mural se constitui num segredo, num enigma, no maior dos mistérios.

E conclui, num sentimento dúbio. O tema do seu trabalho já está definido. Mas a que preço! Porém alguma coisa ainda a incomoda. Sente um peso. É a luneta que carrega na bolsa.

Talvez não tenha tido utilidade para o propósito a que se destinava, mas é certo que ajudou a ampliar a sua visão de mundo. O segredo já não cabe mais no foco de uma luneta.

* Autor: Advogado e escritor. Coautor da coletânea ‘Nos caminhos da imprensa Rio-grandense e Brasileira’, da Oficina de Criação Literária Alcy Cheuiche.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895