Um cineasta feito para contar histórias

Um cineasta feito para contar histórias

Paulo Nascimento *

Cena de ‘A Oeste do Fim do Mundo’, dirigido por Paulo Nascimento

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“Não somos feitos de átomos, somos feitos de histórias” disse, sabiamente, o escritor uruguaio Eduardo Galeano. Pois esse ofício, destino, sina, seja lá como for a nomenclatura correta para o desejo de passar adiante uma nova história, observada, criada, adaptada, é algo que me “persegue” a vida toda. Talvez a culpa seja da minha mãe, Dona Gelcy, que lia para mim e para meus irmãos quando éramos pequenos e analfabetos ainda. Ela lia, à noite, lá no interior do interior do nosso Estado, sob a luz de um lampião a gás (falando isso parece que vivi em outro século, o que é verdade) e nós três, eu mais Felipe e Ike prestávamos atenção na narrativa e dramatização que ela fazia. O interessante é que, no fundo, nossa preocupação maior não era mais nem com a história, mas com o momento em que Dona Gelcy iria interromper a sua narração. 
Tudo acontecia de forma pensada por ela. Quando sentia que nosso interesse estava no auge, ela simplesmente fechava o livro e dizia: “Chega. Amanhã eu continuo”. Os protestos eram sempre os mesmos, mas de nada adiantava. As vezes estávamos no meio de uma emoção (meu irmão Felipe era o mais chorão) e ela era impiedosa. Suas mãos fechavam o livro como se fosse em slow, uma tortura naquelas noites frias das férias de julho. Ali estava nascendo o prazer pelas histórias e até a técnica do “gancho” o clif hanger que os manuais de roteiro, exaustivamente insistem para que os autores usem para prender o público.
A luz elétrica chegou em minha vida, o tempo passou, aprendi a ler e achei que era hora de ter minhas próprias histórias. Minha primeira experiência foi na quarta série, em Santa Maria, quando a professora Iole criou o sistema de todos escrevermos e lermos uma redação na sexta feira, ao final da aula. 
Cada um falava sobre o que faria no final de semana, o que achava da cidade, da escola, etc. etc. Era pra ser uma redação diferente a cada sexta-feira, mas eu, decidi criar um personagem. Um agente secreto (sim, isso mesmo) e narrar sua aventura. Como Dona Gelcy nas noites de inverno, terminei em um “gancho”. Toda turma ficou furiosa com meu final. A professora Iole riu e percebeu que havia funcionado, pois a maioria havia prestado atenção. Algo que era incomum naquela hora do último dia da semana. As cabeças da criançada estavam já no final de semana e nos ponteiros do relógio na parede que pareciam se arrastar lentamente. 
Pois bem. Fechei meu caderno e disse que na semana seguinte seguiria a história. Os protestos aumentaram a ponto de questionarem as regras: “é uma redação por semana!” – disse o exaltado Eraldo (sim, lembro do nome dos colegas da quarta série, mas não tenho certeza sobre o que almocei ontem, é a vida...). Curtindo a movimentação de um final de aula, a professora disse que as regras eram dela e que eu podia sim continuar. Assim, na sexta seguinte dei vida ao meu “agente secreto” e, de novo, parei em um suspense. Um “gancho”. 
A turma mudou de estratégia. Ao invés de protestar, passaram a falar comigo em separado tentando adiantar o que viria. Eu, comecei a ver que estar na posição da Dona Gelcy, sendo dono da história, era algo incrível. Era uma sensação de possuir algo que era abstrato, mas tinha um valor imenso. Essa estratégia, acreditem, se alongou pelo ano inteiro. 
Passei a receber sugestões para o destino do meu Agente Secreto. A própria professora Iole já estava quase perguntando sobre o que aconteceria no episódio da semana seguinte. Foi um ano inesquecível. Depois vieram os anos seguintes, matemática, física, química e meu desespero para entender porque precisava daquilo tudo e não só ficar contando histórias.
A vida seguiu, a luz elétrica se somou a informações de um mundo cada vez mais rápido, a Internet, o computador (sim, sou de um tempo que não existia computador) e, quando vi, já tinha passado pela química, física e matemática e continuava fazendo meus clif hanger, meus “ganchos”. Meus não. 
Da Dona Gelcy, a culpada disso tudo, só sinto não ter guardado o caderno com todas histórias do meu agente secreto. Talvez seja melhor, talvez ele tenha pertencido ao universo da minha infância e não faria sentido hoje, mas, o importante é que, Dona Gelcy, o agente secreto, a atenção dos meus colegas e da professora Iole, me transformaram no contador de histórias que sou hoje. No cinema, no streaming, na literatura, lá está a história. Se é boa ou ruim? Aí não é comigo. É a hora que a história passa a ser de vocês, afinal, não somos feitos só de átomos. 

*Artigo de autoria de Paulo Nascimento, cineasta, diretor de filmes para cinema e para a televisão.

 


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895