"A força coletiva podia fazer a gente não chorar, outra vez, pela mesma coisa”, diz Rico Dalasam

"A força coletiva podia fazer a gente não chorar, outra vez, pela mesma coisa”, diz Rico Dalasam

De volta a Porto Alegre neste domingo, o rapper fala ao Caderno de Sábado sobre o fim do ciclo do álbum “Dolores Dala Guardião do Alívio”

Caroline Grüne

Em entrevista ao CS, Rico Dalasam fala sobre o ciclo da turnê Encontro DDGA

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“Eu não falaria de alívio se não tivesse doído tanto” é uma das frases que abre o álbum Dolores Dala Guardião do Alívio, de Rico Dalasam, considerado um dos principais lançamentos no Brasil em 2021, ainda durante o isolamento social. Com poesias que versam sobre a dor e a cura, Dala se comunicou e se conectou de maneira profunda com seu público. Com o “Encontro DDGA”, turnê que passou por várias cidades do Brasil, o artista paulistano trouxe essa conexão para o âmbito físico, e tornou o diálogo ainda mais profundo. “O primeiro dia foi muito estranho porque tinham pessoas que não paravam de chorar”, conta. A partir daí, o show foi pensado de maneira a permitir sentir a dor, mas também ir de encontro com o alívio. “Eu senti que a força coletiva podia fazer a gente não chorar, outra vez, pela mesma coisa”. Na reta final dos shows de “Encontro DDGA”, Rico Dalasam retorna a Porto Alegre, no Agulha, neste domingo. Os ingressos estão disponíveis no Sympla.

Caderno de Sábado - O processo de fechamento de ciclos costuma trazer muitos sentimentos. Como tu vês agora, quase que já em retrospecto, as mudanças que o “Dolores Dala Guardião do Alívio” te trouxeram?

Rico Dalasam - Eu sou muito feliz e fui muito presenteado por esse disco que me rendeu uma turnê de um pouco mais de um ano. É um disco que me colocou em várias situações de primeira vez. A primeira vez que eu fiquei mais com a minha própria estrutura do que com a estrutura da máquina, do jogo, do mercado. É a primeira vez que eu aposto em uma turnê baseada em venda de tickets e não em festival ou em estruturas públicas. É uma história que me colocou pela primeira vez em muitos lugares. Conseguimos ter 70% dessa turnê de datas que esgotaram os ingressos em casas relevantes por todo o Brasil. Casas que são muito importantes no cenário brasileiro, em lugares que a gente começa a estabelecer praças que não existiam, como em Porto Alegre. 

Esse disco não existiu para me devolver algum lugar, mas ele me abriu precedente para me mostrar que eu tenho outras rotas de condução do meu processo e do caminho que eu escolhi. E isso é muito especial para mim, onde eu atuo, para as pessoas que estão envolvidas no processo dessa turnê. E eu começo agora a pensar o que eu vou fazer depois que eu encerrar isso. Depois de me despedir, de fato, do Guardião do Alívio. Me despedir da estética, desses figurinos, do cenário, do palco. Do jeito que a gente fez, a dinâmica de apresentar o show, as coisas. Eu vou me colocar de novo atrás de um novo corpo. Eu vou ter que encontrar outro corpo numa outra história, num outro processo. E ficam as músicas que mais deram um diálogo nosso com o público pra essa próxima história que eu ainda não sei qual é. Mas antes é a hora que eu entro na parte do processo artístico, que não é a de apresentar e defender o que eu apresentei, mas é de outra vez me ver pelado. Para saber se a arte tem algo pra dizer através de mim, pra saber se a música tem alguma coisa pra dizer através de mim. Antes de eu entrar nesse disco foi a mesma questão: se a música não tivesse nada pra fazer através do meu trabalho, talvez eu fosse fazer outra coisa. E aí veio o “Braille”, vieram as músicas que deram corpo ao EP, depois deram corpo ao álbum e tem sido muito especial. E agora a gente tá partindo para as últimas datas. Eu já estou muito feliz.

CS - O DDGA traz muito forte a ideia de cura. E eu acredito que ele ajudou no processo de cura de muitas pessoas. Em uma das frases mais marcantes do álbum tu dizes que “não falaria de alívio se não tivesse doído tanto”. Depois de tudo que tu viveste com esse álbum, como é hoje a tua relação com a dor, o alívio e a cura? E para além do processo individual, tua música também estimula um processo de cura coletivo. Como foi esse compartilhamento de dores e alívios?


Rico Dalasam - Eu acho que os processos que eu expus nesse disco são processos que continuam. São processos que sigo elaborando na minha jornada. Mas tiveram questões que eu pude elaborar com 40.000 pessoas. Mais as milhões que escutaram nas redes sociais. Ontem eu vi a retrospectiva do Spotify e ele mostra várias curiosidades ali. Uma delas foi que a frase mais compartilhada foi o verso que diz “o que sei sobre o amor eu inventei”. Eu fiquei muito feliz, tá ligado? Muito feliz. Porque de todas as coisas, as violências que expus ali em “Mudou Como?” “Tarde D+”, em “Última Vez”; As sensações e solidões que eu botei em “Estrangeiro”; Esse lugar afetivo delicado de um corpo racializado como tem em “Braille”. De todas, essa conseguiu ser mais arrematada. Porque teve poderes de síntese, como “o que sei sobre o amor eu inventei”, como “não falaria de alívio se não tivesse doído tanto”. E outras máximas que essa narrativa nos trouxe. 

E agora, seguindo nesses processos, eu acho que vale também projetar, dentro das coisas que eu venho inventando, o imaginário de como seria a gente se apaixonando outra vez. Como seria, sem se alienar dos nossos processos que continuam, mas como é a gente se apaixonar? Eu tenho muita curiosidade de me pensar apaixonado, porque talvez eu tenha que inventar. Essa capacidade de me ver bobo diante de uma possibilidade. Não me ver sempre calculando socialmente, calculando como ter um encontro não-violento. Primeiro, quando você pensa como é ter um encontro não-violento, você já está muitas vezes minando a sua possibilidade de ser só um apaixonado. E aí eu tenho pensado e escrito algumas coisas, mas toda hora eu vejo que eu preciso me reencontrar com esse lugar, porque as situações foram deixando indisponíveis esse lugar de como se apaixonar outra vez. Parece que é só um papo de novela, bobo, mas depois dessas questões todas, existe um exercício de volta, de se ver florido, de se ver como é apaixonado, ver como é ficar pateta de novo sobre alguma coisa. Talvez esse caminho de volta é tão doloroso quanto expôr as dores, mas eu acho que as pessoas precisam se imaginar apaixonadas outra vez.

CS - O ciclo desse álbum começou na pandemia. Depois, tu conseguiste colocar tua arte em um encontro físico com as pessoas com um show que é super intenso e emocionante. Ter “Encontro DDGA” como nome dos shows inclusive representa muito a proposta - tu trazes um encontro teu com teu público, da tua música com o público e até das pessoas com elas mesmas, numa experiência de imersão mesmo. Como foi fazer essa turnê?

Rico Dalasam - Quando começou a turnê, a gente não sabia o que acontecia com as pessoas e comigo. O primeiro dia foi muito estranho, muito, muito, porque tinham pessoas que, já na sexta música, ainda não tinham parado de chorar. Eu olhava para elas, aquilo também me tomava e eu tinha que cantar e segurar o choro. Foi esse dia que eu fui no meio pela primeira vez, porque eu senti que uma força coletiva tivesse a capacidade de fazer a gente não chorar outra vez pela mesma coisa. Que a gente não chorasse outra vez pela mesma situação. Eu fui lá no meio vibrando isso declarei isso algumas vezes. E talvez isso tenha tido algum efeito no campo da fé das pessoas. E isso depois foi dando alguns retornos das pessoas e em mim mesmo. 

Uns cinco meses depois de começar a fazer o show, eu percebi que eu ficava muito quebrado. Não quebrado, de cantar ali 01h10, mas um quebrado de mexer com lugares das pessoas, de trocar e me colocar aberto a isso que me deixava muito, muito desgastado. Eu fui entendendo que eu estava ali, trabalhando com coisas que não são da minha força. Eu sou um poeta, faço música e estava trabalhando ali com coisas que misturavam o emocional, psicológico e espiritual e etc. E aí fui entendendo que o show precisava ter o abrir e o fechar. Que a gente não podia ir embora aberto. E aí eu criei uma dinâmica um pouco mais dor pro começo e alívio pro final. E aí foi a hora que eu deixei o show um pouquinho mais de volta para esse outro chakra, para um lugar mais sinestésico. E isso foi dando outro sentido, com as pessoas sendo conduzidas nessa direção. Isso foi me deu outro caminho, de me reencontrar com os signos do Rico Dalasam, lá de quando ele precisou parar em 2018. Fui lembrando das muitas coisas populares que eu sei fazer. Coisas populares que já fiz e foram boas pra uma galera. E aí nessa hora eu fui reencontrando com signos que eu compreendi que abri mão por conta de traumas. 

E foi muito bonito e muito importante para o processo. E agora encerrando, por exemplo, “Tarde D+”, é uma música onde eu coloco as coisas que estou discutindo num lugar um pouco mais pra cima, né? Já propõe outras experiências. Nessa hora eu vejo que talvez eu esteja um pouquinho mais, seja um pouquinho mais elaborado. E isso é mágico. Eu estou bem feliz com isso. 

CS - Especialmente sobre se apresentar em Porto Alegre. Tu faz teu retorno neste domingo e já esteve aqui em duas datas neste ano. Como tu sentes tua relação com o público daqui? Tens alguma memória especial e algo que tu gostes no sul do Brasil?

Rico Dalasam - Eu acho que a última vez, para mim foi muito mágico. A gente de fato não sabe o efeito do disco até chegar pela primeira vez na cidade. Tem um dado muito legal em Porto Alegre. Havia uma diversidade ali na plateia, mas ao mesmo tempo, tinha um campo de masculinidades que achei muito especial. Ter homens pensando nesse lugar afetivo. Esse lugar quase sempre culpa deles, inclusive - as pessoas se verem no lugar de fragilizados, as garotas, as bichas pretas, as meninas pretas. Cada cidade tem uma característica. Sobretudo é uma turnê muito feita pela mão das mulheres: 70% do público feminino. Na minha rede social também tem um diálogo forte com mulheres. Eu falo com esse lugar porque muitas dessas elaborações não feitas pelos homens. Em Porto Alegre o poema está conseguindo dialogar, conseguindo furar a bolha para se comunicar com os homens.

CS - Recentemente, tu lançaste o EP “Fim das Tentativas”, que conta histórias que se conectam também com o álbum anterior. Podes falar um pouco dessas últimas músicas lançadas e como foi o processo de criação e decisão de colocá-las no mundo?

Rico Dalasam - Quando a gente chegou em julho, a gente ia fazer uma coisa pela primeira vez outra vez, que era ir aos festivais. Nessa hora eu vi que a turnê precisava ganhar alguns traços. A gente ia falar com pessoas que não estavam acompanhando a turnê e que talvez não tivessem conhecido o disco. O EP “Fim das Tentativas” cumpriu esse papel. Naquele momento já tinham coisas que de fato eu não precisava tentar mais. Eu sentia a paz de não tentar mais. E aí veio “Tarde D+” e “30 Semanas”, músicas que vão de encontro com outras coisas, outras histórias. Acho que foram assertivas nos festivais porque mesmo quem não conhecia, conseguia pegar essas músicas na hora. Não é aquela tonelada de palavras de “Mudou Como”, “Supstah” ou "Vividir".

CS - Com essa fase da tua carreira, tu foste um Rico diferente do que chegou ao mercado com os hits de lá atrás. Foi uma fase de mudanças e também de consolidação da tua carreira, diante do público e da crítica. Depois disso tudo, quais são os passos a partir daqui?

Rico Dalasam - Ah, eu preciso saber. Estou me despedindo do Guardião do Alívio, mas eu preciso me despedir a ponto de eu me ver com um pouquinho de distância, né? Agora, esse final de ano e janeiro eu vou ficar off e analisar as ritualísticas que apareceram no caminho. Ao mesmo tempo que estou inseguro com o que vou fazer agora, eu sei que existe um fio. E esse fio não é para criar continuação, mas é um fio de condução de narrativas que nos movem, que nos mexem, mexem nos lugares que a gente está ali, que a gente não consegue sair ou que a gente se habituou, ou que a gente acha que não tem chance de movimento. Agora vou começar a pensar nessa outra ponta, nessa outra coisa. E o verão ajuda a gente, né? Vou ver se me apaixono também por alguém (risos). Não sei. Talvez eu tenha uma história nova em breve, talvez demore um pouco mais.


Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895