Manoelito de Ornellas: o menino do Itaqui

Manoelito de Ornellas: o menino do Itaqui

Maria Alice Braga *

Manoelito de Ornellas teve infância difícil em Itaqui, com a derrocada econômica da família e outras questões Acervo da Família / Divulgação / CP

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Julho é o mês que nos faz lembrar a partida do poeta e escritor Manoelito de Ornellas, que, se vivo, estaria completando 120 anos. Por isso, vale sempre recuperar algum trecho de sua magnífica obra para que a imagem do homem que “desceu do cavalo, na porta do mundo... encontrou a realidade... e fez o descobrimento da vida”, como o definiu Álvaro Moreyra, permaneça viva por meio de sua arte. Dono da palavra clara, Ornellas mostrou, ao longo de sua escrita, uma compreensão simples da vida, com tanta gentileza e ternura.

A memória constitui-se na via de acesso de Manoelito ao seu autoconhecimento, pois é através dela que o leitor penetra no âmago das emoções do escritor, passando a conhecer a história do Menino do Itaqui.

Um de seus livros que bem representa a recuperação do passado é “Terra Xucra”, que valoriza as coisas comuns da querência. O autor parte de suas impressões de menino e revive o cenário do pampa rio-grandense e mostra, assim, um jeito de amar e respeitar a terra.

Cada capítulo conta uma história com quadros que remetem à paisagem, como no capítulo “O Menino Pobre do Itaqui”, em que o cenário constante que emerge da memória do autor é o de uma cidade pequena, de casas com telhados baixos, longos beirais, à margem de um rio largo e azul. E, na margem oposta, Alvear com seus bazares requintados, sonho e fantasia aos olhos do menino.

No entardecer, quando a embarcação regressava da viagem à outra margem, Itaqui era a restituição do mundo real, um mundo todo desvendado para o menino que deixava fluir a imaginação ao retirar dos bolsos as bolinhas, feito cristais, rajadas de todas as cores, belas como caramelos, translúcidas como água pura. Isso era a riqueza e o luxo, extravagâncias pueris.

A infância de Manoelito foi marcada pelo rio, pelo fluir das águas, só que o menino não sabia que, mais tarde, sua escrita iria revelar as sutilezas da possibilidade universal e a leveza das formas, a morte e a renovação, o remontar do curso das águas, a travessia de uma margem à outra, enfim, o retorno à indiferenciação. 

A paisagem campeira da sua nobre Itaqui foi o alimento para a alma do menino inquieto e sensível que sentia o frescor da terra orvalhada nas frias manhãs e, muitas vezes, tudo se transfigurava aos olhos daquele que não sabia que já era poeta, pois ele saía do mundo e encontrava, nos vales, as brumas fluidas como mantos de fada a cobrir imaginárias figuras saídas daquele espírito de artista.

O guri compreendia o rio na sua mansidão e o seu retorno à nascente divina, ao princípio. A travessia era o obstáculo a separar dois domínios, ou seja, o mundo dos sentidos e o estado de não pertencimento – a água corrente sem espuma. 

Seja a descer as montanhas ou a percorrer sinuosos caminhos pelos vales, escoando-se nos lagos ou nos mares, o rio é o símbolo da existência humana e o curso da vida com seus desejos e emoções e seus desvios. E cada alma com seu próprio rio. Assim Manoelito de Ornellas pautou sua trajetória de poeta e de escritor, com o rio a separar sua Itaqui de Alvear, a realidade do sonho, e foi pela literatura que ele reconstruiu o mundo imaginário de sua infância.

* Autora Maria Alice Braga é Doutora em Letras - Teoria Literária com ênfase em Crítica Genética (2004) pela PUCRS.


 


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