Rosa Montero: "Somos palavras em busca de sentido"’

Rosa Montero: "Somos palavras em busca de sentido"’

Passagem da escritora espanhola Rosa Montero pela capital gaúcha foi uma ode à beleza e à força da arte e da escrita para sobreviver neste mundo

Luiz Gonzaga Lopes

Rosa: "Estamos tentando escrever uma história verdadeira, profissional, igualitária sobre a ação das mulheres"

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A passagem da escritora espanhola Rosa Montero pela Capital foi uma ode à beleza e à força da arte e da escrita para que possamos sobreviver, resistir e tentar ser felizes neste mundo atual. A autora de “A Boa Sorte” e “A Louca da Casa” foi a personagem da abertura do ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento em 2023, na quarta, 31 de maio, no Teatro Unisinos. O evento tem como tema “Entre o Caos e a Ordem” e segue até outubro. Por uma incrível coincidência, Rosa se preparou para falar sobre a escrita e sobre a arte, em conferência com o título “A Inutilidade Mais Necessária” e confessou não saber do tema do Fronteiras, vindo a tomar conhecimento quando se preparava para iniciar a fala em São Paulo dois dias antes. “O curioso é que eu não sabia que o título geral das conferências seria ‘Entre o Caos e a Ordem. Não me disseram qual era o tema. Foi magnífico, pois teve sincronicidade. A inutilidade mais necessária é a arte, a busca da beleza pelo ser humano. Toda a arte é um invento de dar sentido ao caos. Falo muito na conferência da ordem da beleza e da desordem da existência. Minha fala casou com o tema sem combinação prévia”, lembrou Rosa em entrevista por telefone.

 Além da entrevista, eu participei da conferência e posso assegurar que o amor à arte, à beleza, à escrita como forma de sobreviver ao caos e a maldade latente no mundo foram os motivadores para que as palmas entusiasmadas das quase 500 pessoas que lotaram o Teatro Unisinos vertessem de forma natural e emocionada. Após a palestra, participei da sessão de autógrafos com a autora. Além de acolhida calorosa, recebi de Rosa esta dedicatória na edição de “A Boa Sorte” (Todavia): “Para Luiz, que es un encanto. Gracias por tu afecto, por tus preguntas y por tu talento. Todos los besos, colega”, seguidos pela assinatura da autora. 

Na palestra, Rosa indagou por que as pessoas se deslocaram até o teatro para assisti-la. Na primeira citação, trouxe o poeta português Fernando Pessoa: “A literatura é uma prova inequívoca de que a vida não basta”. E a vida da plateia naquela noite sem a condução de Rosa não bastaria. Um ponto alto da fala foi a história de uma pessoa que encontra um mendigo e lhe dá duas moedas. Tempos depois, a pessoa pergunta como o mendigo usou as moedas. Ele respondeu: "Com uma, comprei um pão, para ter como viver. Com a outra, uma rosa, para ter por que viver". A Rosa que, por coincidência ou sincronicidade é o nome da escritora, simboliza a beleza frente à solitude, ao desespero, à brutalidade do mundo, como é o papel da arte e da escrita. 

Na entrevista, Rosa elogiou Porto Alegre: “Estou flutuando, com uma vista absolutamente maravilhosa do rio, com a água brilhando e o sol descendo por trás dela, com nuvens em redemoinhos. Cada cidade é um mundo em si mesmo. Porto Alegre é muito tentadora. Me parece uma joia prometida, que oculta suas belezas e que precisa ser descoberta”.

Sobre o romance “A Boa Sorte”, o mais recente dela lançado no Brasil (os mais recentes no mundo são “A Desconhecida”, novela negra escrita a quatro mãos com o francês Oliver Turic, e “El Peligro de Estar Cuerda”, sobre a relação entre a loucura e a arte), Rosa disse que aborda o Bem e o Mal, com maiúsculas. “Este Mal, que é absoluto, perverso até extremos inconcebíveis e fundamentalmente absurdo, que não tem nenhum sentido. Este Mal é tão incompreensível, tão insuportável, que o livro diz que as religiões foram inventadas para dar algum sentido para que o mal não nos destrua”, observa. 

Segundo a autora, o protagonista se vê muito cercado por este mal absoluto e tenta encontrar algum sentido. “Por outro lado, de todos que eu escrevi, é o livro mais luminoso, graças à Raluca, uma mulher incrível que de repente apareceu na minha cabeça e se converteu em protagonista. Raluca tem uma vida difícil, foi órfã, abandonada em um parque. Eu a escutei dizer na minha cabeça que ela ‘tinha muita sorte, uma sorte tremenda, menos mal que tive sorte, pois com a vida que tive sem sorte eu seria uma desgraça’. Me pareceu tão inocente, comovedora e sábia a frase. Aí compreendi que seria o título do livro”, aponta. 

A escritora considera que esta é uma história de redenção e capacidade de sobrevivência do ser humano. “O que chamamos de Boa Sorte em Raluca é a capacidade de olhar a vida de outro modo, de contar a vida de outro modo, pois os seres humanos somos uma narração, somos palavras em busca de sentido. Se mudas o relato de tua vida, tu mudas tua vida. O filósofo grego Epicteto dizia: “O que afeta ao ser humano não é o que lhe sucede e sim o que se conta sobre o que lhe sucede”. Se mudas a narração, mudas a vida. Por isso há tantas terapias que ajudam a mudar a narração, como é o caso da psicanálise clássica que ajuda a mudar esta narração. O Mal é de uma banalidade absoluta e totalmente sem sentido. O Mal sem sentido existe, a dor existe e existirá sempre. Frente ao mal e a dor nós humanos temos a capacidade e a obrigação de tentar ser felizes”, diz.

Sobre o livro “Nós Mulheres”, Rosa conta é uma edição ampliada de um livro de biografias de mulheres que ela escreveu há 28 anos. “Até aquele tempo, pensávamos que não havia mulheres à frente de grandes profissões e ideias, que não tínhamos matemáticas, pintoras, arquitetas. Não nos haviam deixado estudar na universidade na Espanha até 1911, não nos deixaram trabalhar, nem ser cidadãs plenas”, conta Rosa, que gosta muito de ler biografias de artistas, de mulheres. “Tenho uma biblioteca pessoal bem grande com mais de 700 biografias de artistas mulheres. Descobri mulheres que haviam tido grandes feitos, coisas incríveis”, lembra. Segundo a autora o livro é composto por 90 retratos curtos de mulheres. “Havia passado muito tempo desde a primeira edição e achava importante atualizar e trazer de volta estas biografias. Em todas as disciplinas artísticas, políticas, houve mulheres fazendo descobertas científicas, com grandes ideias, à frente de grandes feitos, mas suas vozes foram ocultadas e a autoria dada a homens”, comenta, ressaltando que a história contada é falsa, fraudulenta, manipulada, mentirosa. “Estamos tentando escrever uma história verdadeira, profissional, igualitária sobre a ação das mulheres, como é o caso Enheduana (princesa suméria de 4. 300 a.C., que escreveu “Inana – antes da poesia ser palavra era mulher”, editado pela Sob Influência, com tradução de Guilherme Flores Gontijo e Adriano Scandolara). É a primeira autora da humanidade”.

A Rosa nos ensinou por um dia a viver com mais arte. E foi o que bastou. 

 


Correio do Povo
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