Para ficar tudo joia rara ao som de Caetano em Porto Alegre

Para ficar tudo joia rara ao som de Caetano em Porto Alegre

Editor do Caderno de Sábado, Luiz Gonzaga Lopes, analisa o show da turnê "Meu Coco", do músico baiano

Luiz Gonzaga Lopes

Caetano Veloso apresentou 23 canções no show realizado na sexta, 16 de dezembro, no Araújo Vianna, em Porto Alegre

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Desde que começou a conceber o disco “Meu Coco” em 2019, Caetano Veloso começou a fazer à maneira memorialista de “Verdade Tropical”, livro de 1997, com edição comemorativa de 20 anos em 2017, uma espécie de diário de bordo dos seus anseios com este disco que seria o primeiro de inéditas após quase uma década e começou a falar de seu amor pelas canções: “Muitas vezes sinto que já fiz canções demais. Falta de rigor?, negligência crítica? Deve ser. Mas acontece que desde a infância amo as canções populares inclusive por sua fácil proliferação. Quem gosta de canções gosta de quantidade”. Após esta digressão caetaneada,  faço um corte para a tropical noite de 16 de dezembro no Auditório Araújo Vianna, com aqueles 30 graus do quase verão gaúcho em que Caetano voltou a Porto Alegre com a turnê “Meu Coco”.

O início já nos coloca no clima de comunhão com os nomes dos músicos e de toda a equipe técnica ditos com o palco ainda escuro. Ao iluminar do palco, a cenografia inspirada em um estudo de Helio Eichbauer batizada de Constelação Espacial já se destaca com Caetano entrando ao centro, todo de branco e com foco de luz branca e os cinco músicos – Lucas Nunes, Alberto Continentino, Kainã do Jêje, Rodrigo Tavares e Thiaguinho da Serrinha, ficando em dois tablados diagonais para o delírio do Araújo lotado. O começo é com “Avarandado”, uma homenagem a Gal Costa, com quem gravou esta música em “Domingo”, de 1967, mas também cantou com João Gilberto. Assim vem o gancho para a segunda música que dá nome ao novo disco de 2021 e à turnê, “Meu Coco”, com esta miscigenação e diversidade brasileira de mulatos, híbridos, mamelucos e cafuzos e os dizeres: “João Gilberto falou/ e no Meu Coco ficou/ Quem é, quem és, quem sou?/Somos chineses”, numa letra que exalta também as grandes cantoras brasileiras, pois “com Naras, Bethânias e Elis/ faremos mundo feliz”. O novo disco segue com “Anjos Tronchos”, com uma sonoridade que nos remete a “Abraçaço” e faz reflexão sobre a tecnologia e o humano, coisas desta união com o multi-instrumentista Lucas Nunes, amigo do filho Tom Veloso, que produziu o disco, toca guitarra, violão e teclados no show, sendo também o diretor musical. 

Para apaixonar ainda mais os fãs que cantam todas as músicas, a ode a São Paulo, “Sampa” faz o avesso, do avesso, do avesso da emoção e alguma coisa acontece até chegar “Muito Romântico” e outra canção nova, “Não Vou Deixar”, com uma base meio rap, meio funk, para que Caetano fale de resistência porque sabe cantar: “Não vou deixar, não vou deixar/ Não vou deixar porque eu sei cantar”, pensando no futuro na música endereçada ao neto Benjamin, filho de Tom: “Eu grito e repito eu não vou/o menino ouviu e comentou/o vovô tá nervoso, o vovô”, que termina com um solo de percussão de Kainã e Thiaguinho da Serrinha. "Enzo Gabriel" também projeta o futuro, com os nomes mais registrados no país nos anos em que Caetano criou a música, entre 2019 e 2020. Assim, o show segue, Caetano explica que não estava tão bem nesta noite, mas que o palco o anima e diz que não podia deixar de tocar uma música do disco “Transa”, gravado em Londres, que completou 50 anos em 2022, influenciou gerações sucessivas e vem com “You Don´t Know Me”. Os “Trilhos Urbanos” são percorridos por Caetano com a música que dá título ao disco de 1986. Caetano fala com a plateia sobre a levada que Gilberto Gil definiu de Marcha Caetaneana, que conduz “Trilhos Urbanos” e introduz um papo sobre a banda que ele formou chamada A Outra Banda da Terra, e a música que segue é “A Outra Banda da Terra”, uma homenagem à banda e fala do sotaque com acento no “erre” retroflexo do interior de SP, tipo “serrrtão” e já emenda “Araçá Azul”, que batiza o disco de 1972, o seu quinto de estúdio.  

 Um momento doce do show é a eterna homenagem ao jornalista e poeta piauiense Torquato Neto, falecido em 10 de novembro de 1972, com a canção “Cajuína”. Impossível não se emocionar. E depois três grandes sucessos que fazem o público dançar, cantar e fazer da Bahia o centro do mundo, com “Reconvexo”, “O Leãozinho” e “Itapuã”. Com “Pulsar” e “A Bossa Nova é Foda”, um petardo do disco “Abraçaço”, de 2012, Caetano contagia e eletriza o público. Aí volta toda a lembrança de Gal, com “Baby” e uma incidental “Diana” e depois “Menino do Rio” para dar um calor e provocar arrepios. Como Chico Buarque tem a sua “Que tal um Samba”, Caetano vem com a novíssima “Sem Samba Não Dá”, que é uma elegia às fusões e aos vários gêneros musicais e expoentes que o Brasil produz como “Maravília Mendonça”, a sertaneja morta em 2021, Gloria Groove, Ferrugem, Duda Beat, Djonga e outros. A soberana “Lua de São Jorge” termina o show, mas ainda viria um bis, que normalmente era formado por quatro músicos, mas fica em duas canções, com a bossa “Mansidão” e encerrando com a canção de 1977, “Odara”, que exala paz e os dizeres: “Deixa eu cantar que é pro mundo ficar odara/ Pra ficar tudo joia rara” e realmente um show de Caetano por quase 1h30min aos 80 anos é mesmo uma joia rara, uma verdade mais do que tropical aqui por estes pagos. 


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