Tempo: senhor da razão
Relações diplomáticas nem sempre são limpas e cheirosas
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Durante a campanha eleitoral de 2022, o Tribunal Superior Eleitoral censurou o jornal Gazeta do Povo, após a publicação de uma postagem em rede social que mencionava o apoio de Lula ao ditador da Nicarágua, Daniel Ortega. Era algo sabido de todos, de longa data. Em março de 2023, com Lula presidente da República, o Brasil decide não assinar um documento da Organização das Nações Unidas (ONU), denunciando os crimes praticados pelo ditador amigo de Lula – mas a eleição foi justa e equilibrada, pode acreditar.
Assinado por 55 países, o tratado contou, inclusive, com o apoio de nações governadas pela esquerda. Estamos falando de gente que, pelo visto, tem um pingo de vergonha na cara. Argentina, presidida por Alberto Fernández? Assinou o documento. E o Chile, de Gabriel Boric? Também. Curioso é que o Itamaraty participou da elaboração das linhas, mas recuou quando chegou o momento de endossar o que estava escrito.
As relações diplomáticas nem sempre são limpinhas e cheirosas. Há interesses políticos, comerciais ou bélicos que podem estar em jogo. A China, por exemplo, é uma ditadura. Não há democracia, não há liberdade, há apenas um partido. Mas estamos falando do principal mercado consumidor do planeta, uma nação com 1,4 bilhão de bocas a serem alimentadas diariamente, que passou a consumir mais e melhor ao longo dos últimos anos, graças ao surgimento de algo que praticamente não existia até o início da década de 1980: mercado e capital.
Jair Bolsonaro foi criticado no ano passado por não se posicionar publicamente sobre a guerra entre Ucrânia e Rússia. Quem o fez foi o Itamaraty. O que estava em jogo ali? Além do fornecimento de petróleo (os russos são grandes produtores), o Brasil é dependente de insumos para agricultura que vêm da... Rússia! E convenhamos: Bolsonaro seria criticado de um jeito ou de outro. Adotando a neutralidade, foi chamado de omisso. Se abrisse o verbo contra os russos, seria criticado por colocar em xeque a produção do carro-chefe da nossa economia (agronegócio). A postura brasileira (tanto da chancelaria, quanto da Presidência) foi acertada, na época.
Mas e a Nicarágua? O que nos impede de ter uma posição mais dura, contra um governo ditatorial? Se Argentina e Chile assinaram o documento da ONU, porque diabos o Brasil não seguiu o mesmo caminho? Estamos falando de um grande mercado consumidor de produtos brasileiros? Não. Há na Nicarágua um interesse maior, que justifique a neutralidade do Itamaraty? Não. Estamos falando de uma nação que faz fronteira com o Brasil e qualquer estremecimento nas relações poderia ocasionar uma guerra ou conflito? Também não.
Das duas, uma: ou há algo que não sabemos (ainda) e que um dia talvez venha à tona, para justificar a covardia brasileira na hora de condenar uma ditadura, ou a amizade (sim, aquela que o TSE proibiu que fosse tratada jornalisticamente na campanha de 2022) entre Lula e Ortega falou mais alto.
Atenção: as linhas deste parágrafo são carregadas de ironia. O importante mesmo é que a democracia venceu, mesmo que sejamos bastante tímidos, talvez até ausentes, na hora de condenar um regime de exceção. Sim, uma ditadura que prende opositores, produz a supressão de liberdades, é intolerante do ponto de vista religioso, produz miséria e oprime um povo há quase vinte anos. Ah! Definitivamente, o amor venceu o ódio.
Voltamos à seriedade. Quando a Gazeta do Povo foi censurada pelo TSE, muito pouco se viu na imprensa sobre um ataque flagrante à liberdade e ao equilíbrio na disputa eleitoral. Quem sabe agora, com o tempo jogando luz sobre os fatos, aqueles que convenientemente adormeceram entre agosto e outubro do ano passado despertem do sono profundo.