Berlim e a liberdade

Berlim e a liberdade

Berlim talvez represente uma espécie de bastião da liberdade, uma espécie de resistência, razão para viver e lutar.

Guilherme Baumhardt

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Em 2013 estive pela primeira vez em Berlim. É uma experiência que recomendo e que pretendo repetir outras vezes. Não há exagero em afirmar que a história do mundo passou pela metrópole alemã no século XX, com o protagonismo germânico nas duas Grandes Guerras. Há cicatrizes até hoje deixadas na cidade, marcas indeléveis, apesar do desejo de muitos de apagá-las – o debate sobre a remoção da East Side Gallery, aquilo que restou do Muro, é apenas um deles.

Há situações em que as tatuagens deixadas pela história são mais nítidas. Ao subir os mais de 360 metros da Fernsehturm (Torre de TV) é possível ver, do alto, o estrago que o somatório de guerra e regime soviético é capaz de produzir. Em uma análise superficial, é o fim da beleza. Mas aquilo que mísseis e bombas destruíram (e na porção Ocidental já foi devidamente reconstruído), na parte Oriental representa a redução do ser humano. Opressão virou palavra da moda. Os edifícios em forma de caixotes e que muito lembram nossa Esplanada dos Ministérios (estou longe de ser um fã dos traços de Oscar Niemeyer) são construções feitas com o propósito de reduzir o ser humano a uma insignificância que somente o totalitarismo é capaz de fazer. Não é à toa que ninguém quer viver naquele lado da cidade.

No próximo dia 9 de novembro vamos celebrar mais um ano da queda do Muro. Graças ao tropeço do burocrata Günter Schabowski, que em uma desastrada entrevista coletiva acendeu o fósforo ao lado do barril de pólvora. Perguntado sobre quando a nova legislação sobre viagens entraria em vigor, ele respondeu, quase gaguejando: “Pelo que sei, ela entra... já, imediatamente”. No mesmo instante dezenas de milhares de pessoas se deslocaram em direção ao Muro e para os famosos checkpoints (o C, conhecido como Charlie, existe até hoje e é um dos pontos mais visitados da cidade). O que vem depois é história, com a imagem de alemães subindo na estrutura e com machados e picaretas colocando aquela excrescência abaixo, na busca pelo reencontro com amigos, parentes, corações e almas que ficaram distantes pelo desejo totalitário de aprisionar um povo dentro do próprio país.

Diferentemente do que muitos acreditam, o regime ditatorial alemão não desabou naquele momento. Ele colapsou antes, caiu de podre, fruto do cansaço de uma população exausta de um Estado onipresente, de suas vidas serem permanentemente vigiadas. Estima-se que um em cada quatro alemães orientais era de alguma maneira informante da Stasi, o serviço secreto da DDR (Stasilândia, de Anna Funder, é um excelente livro).

Berlim visitou o inferno. E por pouco não permaneceu por lá – seja pela ascensão nazista, ou pelas décadas de domínio soviético sobre uma porção não apenas da cidade, mas também do território alemão. Por tudo isso, Berlim talvez represente uma espécie de bastião da liberdade, uma espécie de resistência, razão para viver e lutar. O portão de Brandemburgo, que já testemunhou a marcha de soldados nazistas (liderados por Hitler) e a construção de um Muro (liderada por Nikita Khrushchev e Walter Ulbricht) é um marco que talvez tenha como missão lembrar a frase que alguns atribuem a Thomas Jefferson e outros a John Philpot Curran: “O preço da liberdade é a eterna vigilância”.
A quadriga depositada no topo de Brandemburgo sabe disso. Nós já deveríamos ter aprendido. Em tempos de pandemia e o despertar de desejos despóticos, é uma lição valiosa. Que tenhamos Berlim sempre no horizonte. Não apenas para comer currywurst e tomar chopp, mas para celebrar, cultivar e defender a liberdade.


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