Tempos estranhos (e perigosos)

Tempos estranhos (e perigosos)

O atual presidente da República já protagonizou manifestações simpáticas ao regime militar, mas não passaram disso: demonstrações

Guilherme Baumhardt

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A cada dia que passa tenho a sensação de que estamos caminhando a passos largos para uma ruptura. Qual exatamente? Ainda não sei. Para parcela considerável da mídia e de grupos de esquerda, a ameaça fascista e ditatorial está incorporada na figura de Jair Bolsonaro. Será? Em tempos assim, talvez seja interessante revisitar a frase atribuída ao tirano russo Vladimir Ilyich Lenin: “Acuse-os do que você faz, chame-os do que você é”.

Desde que foi eleito, o atual presidente da República já protagonizou manifestações simpáticas ao regime militar brasileiro, mas não passaram disso: demonstrações (algumas infelizes e indesejáveis) de afinidade com personagens e momentos da nossa história que não casam com democracia e liberdade. A pergunta que fica é: do ponto de vista prático, Bolsonaro em algum momento deu algum passo efetivo no sentido de fechar o Congresso ou obstruir os trabalhos do Supremo Tribunal Federal? A resposta é não.
Câmara e Senado seguem funcionando. Há, inclusive, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI da Covid) com o claro objetivo de encontrar algo que possa embasar um pedido de impeachment. A alegada investigação sobre as ações de combate à pandemia é apenas pano de fundo. Bolsonaro cassou mandatos com tanques, soldados e cabos? Não se tem notícia de que o Parlamento esteja sob ameaça ou ataque.

Em nações decentes – bem diferentes de repúblicas bananeiras –, a Suprema Corte tem atuação limitada, mas referencial. Ela conhece as suas “fronteiras”, mas quando entra em campo é para estabelecer um conceito basilar e norteador para a República. No Brasil, inauguramos a autossuficiência do Judiciário, em que o Supremo Tribunal Federal alijou completamente delegados e procuradores federais do processo penal, puxando para si todas as atribuições previstas em lei. Poderíamos chamar os ministros de golpistas?

Os porta-vozes do apocalipse agora centram fogo na briga pelo chamado voto auditável – uma bandeira de Bolsonaro desde os tempos que era parlamentar. E assistimos mais uma vez a uma inversão completa do que se busca com a proposta. O que ela pretende? Maior transparência e segurança. O que é vendido? Bolsonaro quer tumultuar o processo eleitoral e aplicar um golpe.

Nenhum país desenvolvido utiliza um mecanismo como o nosso. Esta é uma informação que não pode ser desprezada. Nações com mais recursos – financeiros e tecnológicos – nunca espelharam seus pleitos no sistema brasileiro. Em 2009, a Suprema Corte alemã sepultou a ideia de informatização do processo eleitoral – que havia sido utilizado em 2005. A decisão foi baseada em um princípio bastante elementar: um evento público, como uma eleição, precisa ser simples e compreensível aos olhos de todos, sem a exigência de conhecimentos especiais. Ou seja: as pessoas precisam saber como se dá o processo, do início ao fim.

Aos que vendem a tese de que o debate acalorado neste momento é algo calculado, para inviabilizar as eleições de 2022, eu trago o seguinte dado: a PEC, de autoria da deputada federal Bia Kicis, foi apresentada no dia 13 de setembro de 2019. Ou seja, não é uma proposta casuística, casada com o prazo agora apertado para mudanças no sistema eleitoral.

Não jogo suspeitas sobre a justiça eleitoral e seus integrantes. O que questiono é o sistema, que talvez tenha cumprido um papel importante ao longo dos últimos anos (certamente há aspectos positivos na implantação das urnas atuais), mas, como tudo na vida, precisa de aprimoramento. Enquanto isso, o STF ameaça incluir o atual presidente da República no rol de investigados do chamado “inquérito do fim do mundo” pela defesa do voto auditável. Se existe uma ameaça ditatorial, ela vem de onde?

Até déspotas como Lenin nos deixam importantes lições. Se há uma ruptura em andamento, os passos dados até aqui não partiram do Palácio do Planalto.


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