Pedro, o prudente

Pedro, o prudente

Pedro, o prudente, é um sujeito correto na maior parte do tempo. Seu único deslize é, vez por outra, apostar no jogo do bicho.

Guilherme Baumhardt

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Acima da testa faltam-lhe cabelos. E os poucos que restam já estão brancos. A experiência de vida é proporcional à confiança que goza com os amigos, junto aos vizinhos e conhecidos. Apesar da idade, Pedro é um senhor muito ativo, ligado no noticiário e no que acontece à sua volta. “Fio do bigode é coisa séria”, afirma ele. É quase um bordão, frase que vem sempre acompanhada do pente passando por entre os pelos localizados entre o nariz e a boca. No bairro onde mora é conhecido como “Pedro, o prudente”.

Pedro, o prudente, compra no armazém da rua. Não paga à vista. Pede para anotar no caderninho, no famoso “fiado”. No quinto dia útil do mês, é o primeiro compromisso da manhã: ir no “secos e molhados” para passar a régua e fechar a conta. Cliente antigo, nunca atrasou. Pagamento sempre em dia, seja em períodos de bonança ou durante as crises econômicas, como na época da inflação galopante. Quando amigos ostentavam na lapela do terno o broche “Eu sou fiscal do Sarney”, Pedro, o prudente, dizia com ar de sabedoria: “Esse aí não honra o fio do bigode que tem. Quantidade não quer dizer qualidade”.

Pedro, o prudente, é um sujeito correto na maior parte do tempo. Seu único deslize é, vez por outra, apostar no jogo do bicho. Ele sabe que é errado, mas é um hábito antigo. A banca fica no caminho entre a praça e a sua casa. Na ida ou na volta, ele acaba saindo da linha e gastando uns trocados, uma vez por mês. O papel com o número anotado ele guarda no bolso, mas é uma mera formalidade. Nas duas vezes em que ganhou, o dono da banca já o aguardava com o prêmio separado, sem exigir o “comprovante”. Ele sabe que Pedro, o prudente, aposta sempre na águia. “É um bicho que enxerga longe”, afirma.

Pedro é avô de Cássio, um jovem estudante de 32 anos que ainda não decidiu se quer retomar o curso de sociologia, trancado há três anos, ou prestar novo vestibular para a faculdade de história, de onde foi expulso após passar mais tempo no diretório acadêmico do que em sala de aula. Se nenhuma das opções vingar, a alternativa será morar com alguns amigos e fazer esculturas de cola epóxi. Cássio, conhecido como “o incauto”, acha que o capitalismo oprime, mas cobra 150 reais por uma correntinha feita com conchas de marisco. Apesar da diferença de idade e visões de mundo distintas, Pedro, o prudente, se dá muito bem com o neto Cássio, o incauto. O ambiente só fica tenso quando o assunto é política. O debate mais recente foi sobre o chamado voto auditável. Pedro é a favor. Cássio, contra. Em uma padaria, os dois discutiram:

- Pedro, meu neto, eu vivi 1982. Eu não gostava do Brizola, mas vi o que tentaram fazer com ele. Pega o seu telefone e pesquisa “Proconsult”. Estavam armando para cima do caudilho.

- Vô, deixa disso. Esse negócio aconteceu há quase 40 anos. A tecnologia hoje é muito melhor. Não se justifica. Vamos gastar dinheiro sem necessidade. A urna eletrônica é perfeita.

- Cássio, os caras invadem banco, o Superior Tribunal de Justiça, o Pentágono, a Nasa. Como é que o único sistema inviolável do mundo vai ser o da nossa eleição?

- Deixa disso. É um sistema que se usa em vários países.

- Sim, vários. Butão e Bangladesh. Ah, e claro, o Brasil. Se fosse tão bom, estava nos Estados Unidos, Alemanha, França...

- Ah, vô, deixa de ser careta e conservador. Isso é coisa de eleitor do “Coiso”.

- Coiso? O Requião tentou, o PSDB tentou, o Congresso aprovou, o Rodrigo Maia elogiou, mas agora virou coisa do Bolsonaro. Mas tudo bem. Vamos embora. E deixa que eu pago.

- Não, deixa que a minha parte eu pago.

- Mas você só comprou um drops de menta?

- Tô com grana, vô! Vendi umas miçangas semana passada e o dinheiro pingou na minha conta.

O garçom se aproxima com a maquininha. Cássio, o incauto, passa o cartão e coloca a senha. Os R$ 3,50 estão pagos. O garçom pergunta se Cássio quer o comprovante em papel:

- Claro! Tá pensando o quê? Em banco e operadora de cartão não dá para confiar.


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