Passaporte para o caos

Passaporte para o caos

Se chegamos ao atual estágio de desenvolvimento com a erradicação e controle de inúmeras doenças, foi graças ao advento das vacinas

Guilherme Baumhardt

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“O preço da liberdade é a eterna vigilância”. A frase é atribuída a Thomas Jefferson, um dos founding fathers (os fundadores dos Estados Unidos) e terceiro presidente da história norte-americana. A servidão é uma ameaça permanente e que nem sempre vem a bordo de tanques de guerra ou com o exército na rua. A supressão da liberdade pode chegar em conta-gotas, em doses homeopáticas de boas intenções.

No Brasil, a mais recente tentativa neste sentido vem inserida na ideia do “passaporte da vacina”, que prevê benefícios aos imunizados e restrições aos que não tomaram a vacina contra o coronavírus. O projeto de lei já foi aprovado no Senado e precisa ser analisado pelos deputados, na Câmara.

Como sempre, a proposta diz uma coisa, mas pretende outra. E, para surpresa de ninguém, a narrativa – que é diferente do fato – já equiparou posições contrárias à ideia ao chamado “movimento antivacina”. Trata-se de um raciocínio torto e que não para em pé. Estamos tratando de liberdade individual. E é perfeitamente possível ser um defensor das vacinas e ao mesmo tempo se opor à ideia de um “passaporte vacinal”.

O texto do projeto de lei diz o seguinte: “O cidadão titular do Passaporte Nacional de Imunização e Segurança Sanitária (...) não poderá ser coagido, constrangido ou impedido de entrar, circular ou utilizar qualquer espaço público, sendo que o estabelecimento, público ou privado, terá a responsabilidade de exercer o controle de entrada, mediante a apresentação do seu certificado, impedindo-se o ingresso de quem não apresente o documento ora proposto”.

Precisa desenhar? Inverta a frase e teremos a clareza do cerceamento: “O cidadão que não possuir o passaporte poderá ser coagido, constrangido e impedido de entrar, circular ou utilizar qualquer espaço público”. Pronto. Agora imagine que você, por uma razão qualquer, decida não receber o imunizante. Seja por uma orientação médica, por razões religiosas ou quaisquer outras. Pouco importa. Prepare-se para ser barrado, mesmo não apresentando qualquer sintoma da doença.

Já escrevi neste mesmo espaço, em outras ocasiões: sou um defensor das vacinas. Se chegamos ao atual estágio de desenvolvimento com a erradicação e controle de inúmeras doenças, foi graças ao advento das vacinas. Sob hipótese alguma, porém, eu endosso a obrigatoriedade de que alguém injete no próprio corpo algo que não deseje.
Se você ainda vê com bons olhos a proposta, faço algumas provocações. Imagine que a única vacina disponível é a Sputnik V, imunizante sobre o qual pairam inúmeras interrogações. Ou ainda: troque o produto russo pela dose fabricada pela Pfizer, de altíssima eficácia, mas que carrega a primazia de ser uma tecnologia absolutamente nova, jamais utilizada em uma vacina. Pergunto: a ideia do passaporte e, consequentemente, de uma obrigatoriedade indireta continuaria sendo vista com bons olhos?

Da proposta do passaporte é possível extrair uma lição e uma ironia. É por trás de boas intenções que se escondem talvez as maiores armadilhas à independência. Além disso, o “insensível” Jair Bolsonaro se revelou (ao seu modo) um defensor da liberdade. Se aprovada na Câmara, a proposta deve ser vetada pelo presidente.

A frase de Thomas Jefferson encontra equivalentes na história. O político e advogado irlandês John Philpot Curran proferiu o seguinte, em livre tradução: “A condição sob a qual Deus deu liberdade ao homem é a vigilância eterna (...) Se isso for rompido, a servidão é ao mesmo tempo a consequência da sua violação e a punição pelo fracasso”.


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