Carta ao STF

Carta ao STF

Depois de ler uma notícia dando conta de que o STF determinou prazo para que a Anvisa se manifeste sobre a vacina russa, achei por bem deixar os profissionais da saúde de lado e aguardar uma posição final da Suprema Corte

Guilherme Baumhardt

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Ao Supremo Tribunal Federal,

Na semana que vem, pretendo cortar a grama da casa da minha mãe. Como há também um pouco de inço que precisa ser removido, gostaria de deixar isso registrado desde já.

Não é mata nativa. É inço. A altura de corte pretendida é de cinco centímetros e recolherei a grama em sacos de lixo recicláveis. O material orgânico será doado para compostagem e se transformará em comida de minhoca. Pode parecer um exagero, mas acho prudente pedir autorização com relativa antecedência, especialmente após o episódio da Ferrogrão, ferrovia cuja obra foi paralisada após uma canetada do STF. Como cortar a grama traz algum impacto ambiental, peço autorização prévia, a fim de evitar problemas futuros.

Aproveito a carta para revelar aos senhores uma frustração de infância. Nunca tive um Ferrorama, apesar dos insistentes pedidos ao Papai Noel e das cartinhas ao coelho da Páscoa. Ele nunca chegou. Ganhei cuecas, meias – muitas meias – e um jogo de ludo, que jamais saiu da caixa – não sei quem acha graça naquilo. Na época, meus pais disseram que o trem não veio porque eu queimei duas formigas usando uma lupa e a luz do sol – acho que o crime já prescreveu, por isso confesso agora o delito. Enfim, eu era menino e a gente aprende que certas coisas não devem ser feitas. Vida que segue.

Meu aniversário está próximo. Pretendo dar a mim mesmo um Ferrorama de presente. Montarei os trilhos na sala de casa, não na rua. Assim, eu acabo zerando qualquer risco de dano ao meio ambiente no meu jardim. Não será ameaça também ao sítio arqueológico que foi encontrado por um pesquisador alguns anos atrás, após localizar um pires quebrado e um prato de porcelana com a borda lascada. Ele me assegurou que o material é de “valor histórico incalculável” e que tem provavelmente alguns séculos, apesar da inscrição “Porcelana Schmidt” na base de um e do nome Duralex no outro. Avisei que minha avó tinha um conjunto igualzinho, mas ele garantiu que estamos tratando de peças dignas de museu. Na mesma hora olhei para a velhinha e disse: “Falei que valia uns trocados”. Ela bateu na minha cabeça com a bengala e disse que não queria vender a louça do casamento.

Bueno, voltando à sala de casa. Já removi a samambaia de lugar – tenho o laudo de um biólogo atestando que o novo local é apropriado – ela pega sol na intensidade correta e está com aspecto saudável. Agora há espaço para a instalação dos trilhos. No lugar de pilhas descartáveis, vou comprar baterias recarregáveis para o meu Ferrorama – são ambientalmente mais corretas. O Rex, nosso cachorro, e Mintsie, o gato, não correm risco de atropelamento pela locomotiva. Eles já foram realocados para uma sala anexa.
Sobre vacinas, ainda falta muito para a minha vez. Estava tratando do assunto com médicos, a respeito de qual vacina é a melhor, a mais apropriada para mim – quando chegar a minha vez, claro. Mas depois de ler uma notícia dando conta de que o STF determinou prazo para que a Anvisa se manifeste sobre a vacina russa, achei por bem deixar os profissionais da saúde de lado e aguardar uma posição final da Suprema Corte. É melhor assim.

Na esperança de que meus pleitos sejam compreendidos e atendidos, de que minhas redes sociais permaneçam ativas e de que eu não vá parar na cadeia, como o jornalista Oswaldo Eustáquio, subscrevo-me desejando ao STF uma excelente quinta-feira.

Porto Alegre, 15 de abril de 2021.


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