À procura de um culpado

À procura de um culpado

Se somos donos dos nossos narizes, somos também responsáveis por nossos atos, seja pelo cuidado adotado ou pela falta dele

Guilherme Baumhardt

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O país que detesta punir está sempre à procura de culpados. É curioso. Devoramos páginas policiais e programas do mundo cão. Quando colocamos as mãos no bandido, não conseguimos puni-lo. Lembra muito o cachorro que dispara quando ouve o barulho do motor de uma moto. Ele corre atrás do pneu, mas quando ela para o bicho simplesmente não sabe que fazer. É uma característica tipicamente nacional. É como se fosse a confecção de um roteiro de novela. Gostamos do enredo, dos meandros, do bastidor, da fofoca. Quando chega a hora do desfecho, jamais produzimos o final esperado. Exemplos? Temos vários, alguns ocorridos no mesmo ano.

Quase 200 pessoas morreram depois que um avião da TAM (hoje Latam) não conseguiu parar na curta pista do Aeroporto de Congonhas, em uma noite chuvosa de julho de 2007, em São Paulo. Tragédia, dor, choro, luto. E promessas. A desapropriação de áreas próximas para ampliação da pista, a punição exemplar dos culpados, a construção de um novo aeroporto na capital paulista. O Brasil virou especialista em grooving (as ranhuras feitas no asfalto para facilitar a drenagem da água), descobrimos para que serve o tal “reverso”. Passamos a discutir as tecnologias da Boeing e da Airbus em mesa de bar e no almoço de domingo, em família. Para quê? Congonhas continua lá, nenhum aeroporto novo foi construído, as melhorias na pista ficaram longe do prometido. E toda chegada à capital paulista é acompanhada de fortes emoções. “Será que vai parar?” pergunta o passageiro para a moça da poltrona ao lado, agarrada a um terço, rezando.

No mesmo ano, mas em fevereiro, o Rio de Janeiro foi palco de uma das maiores atrocidades cometidas contra uma criança. Dois assaltantes roubam um carro e saem em disparada pelas ruas da capital fluminense. Pendurado do lado de fora, preso pelo cinto de segurança, o menino João Hélio Fernandes, de apenas seis anos, é arrastado por sete quilômetros, distância próxima da que separa o Mercado Público de Porto Alegre da Fundação Iberê Camargo, na orla do Guaíba. Houve passeatas, protestos, projetos de lei, gritos pedindo a alteração do Código Penal. Gastamos energia, programas de televisão se debruçaram sobre o assunto, psicólogos tentaram explicar a origem de tamanha violência. E? Nada, como sempre.

Na pandemia da Covid-19 vivemos uma situação semelhante. Mas como ela não dá sinais de trégua, muito menos de quando acabará definitivamente, a novela está ficando – tristemente – enfadonha, mas talvez relevadora desta incapacidade prática do brasileiro. Estamos mergulhados em mais um lockdown, ou algo muito próximo disso. Ainda não há vacinas para todos – uma realidade distante até para países ricos, exclusiva até agora para poucos, especialmente as grandes potências, ou para aqueles que abrigam grandes fabricantes. E seguimos gastando energia procurando o culpado para o qual apontaremos o dedo, o grande responsável pelas nossas agruras. É mais fácil assim.

Mas de quem é a culpa? Do presidente Jair Bolsonaro – uma espécie de alvo preferencial? Certamente. Somente dele? De jeito nenhum. De governadores e prefeitos? Não tenho dúvidas de que eles têm sua parcela de responsabilidade. E a população? Se somos donos dos nossos narizes, somos também responsáveis por nossos atos, seja pelo cuidado adotado ou pela falta dele. Sobra para nós uma espécie de tara acusatória, ao mesmo tempo em que nos faria muito bem uma dose cavalar de algo próximo do pragmatismo tipicamente alemão, no melhor sentido: fazer as perguntas certas em busca das melhores respostas.

Ao final temos um resumo trágico: o país que adora novelas é incapaz de escrever o capítulo do final feliz, quando mocinha e mocinho se casam, bandido vai pra cadeia, a megera vira uma bruxa e é punida, às vezes até com a morte. Talvez seja apenas a vida real. Mas fica a sensação de que vivemos apenas um filme ruim, em que o final se repete de tempos em tempos. Mais pragmatismo, menos paixão. Sei que em tempos de pandemia isso é mais difícil, mas não há outro caminho. Se ainda assim quisermos encontrar “o” culpado, que a gente faça isso depois do coronavírus.


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