Tiranos

Tiranos

A responsabilidade deles, dentro de um sistema de saúde universal como o brasileiro, é disponibilizar a vacina, os profissionais, os insumos para imunizar a população

Guilherme Baumhardt

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Quando criança, eu, meu irmão e alguns amigos desvirtuávamos as regras de alguns jogos para que as partidas nunca acabassem. No Banco Imobiliário, inventávamos um banco paralelo, com a possibilidade de empréstimos infinitos, concedidos sem critério algum, para que ninguém “quebrasse”, embora todos ali já estivessem falidos, exceto o vencedor. Era como se fosse um treino para formação de agiotas. No War fazíamos coisas semelhantes. Era divertido criar aquela bagunça de um regramento próprio, de um universo que podia ser controlado pelos protagonistas daquelas partidas, desvirtuando o que estava previamente estabelecido. Mas era inofensivo. O que vemos agora vai muito além.

Na tentativa de prevenir novos casos de coronavírus, governantes Brasil afora agem como agíamos em frente a um tabuleiro. Algumas decisões absurdas já foram abordadas aqui. Restringir e reduzir o horário de funcionamento de lojas e restaurantes é espancar a lógica. Já há modelos mundo afora (e, aqui, na eleição deste ano) apontando em sentido oposto. Quanto mais horário disponível, menos aglomeração.

Estamos às portas do verão, em um país cuja costa é referência mundial como destino turístico. Podemos chamar de irresponsáveis os banhistas que se concentram na praia, mas quero ver qual governante terá peito e coragem de ordenar que a polícia retire a população da faixa de areia em cidades como Rio de Janeiro, Salvador, Recife ou Natal. Tenho sérias dúvidas de que o façam. Você pode ir para a praia. Pode tomar banho de mar. Mas não pode ficar aboletado na areia. Quem fiscaliza isso? A polícia, a guarda municipal, em suma, as autoridades. Certa vez perguntei ao meu avô por que as meninas de “vida fácil” (que de fácil não tem nada) estavam sempre caminhando, de um lado para o outro, “marcando ponto” nas calçadas, o conhecido trottoir. A resposta: “Se ficarem paradas, a polícia manda caminhar ou recolhe no camburão. Antigamente, ficar parado era coisa de vagabundo e dava cana”. Ou seja, nas praias agora o negócio é trottoir, mas se oferecendo apenas ao sol e, no caso gaúcho, ao agradável vento nordestão.

Chegamos a um ponto em que gestores públicos se jogaram numa tentativa desesperada de prever todas as situações, enxergar todos os casos, possíveis e imagináveis, e estabelecer regras para eles. De coisas simples, como máscara e álcool gel, passamos a definir horários de fechamento de estabelecimentos comerciais e também se espaços públicos poderiam ou não ser ocupados e, pasmem, até o que as pessoas farão dentro das suas casas nas festas de fim de ano. O número de convidados, quem pode e quem não pode ir. Na Europa há exemplos neste sentido.

Fico com a sensação de que é um teste eterno de boas intenções. E ao mesmo tempo uma oportunidade ímpar de ver aflorar o lado tirano, antes oculto, de determinados gestores públicos. Querem um exemplo? Aqueles que defendem a obrigatoriedade da vacina vestem perfeitamente o uniforme dos déspotas, sempre recheados de boas intenções.

A responsabilidade deles, dentro de um sistema de saúde universal como o brasileiro, é disponibilizar a vacina, os profissionais, os insumos para imunizar a população. De preferência com mais de uma alternativa e o mais rápido possível. Aos que estão imaginando que aqui está um integrante do movimento antivacinas, eu lembro: sou um entusiasta das vacinas, minha filha está sempre com a carteira em dia e, tão logo eu consiga avaliar com meus médicos qual a melhor alternativa, estarei na fila para receber a imunização. É perfeitamente possível defender a vacina sem defender a obrigatoriedade dela. Isso a gente deixa para os tiranetes de plantão.


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