A vacina chegou. E agora?

A vacina chegou. E agora?

Se médicos e enfermeiros não tivessem superado o medo, não teríamos recebido tratamento em hospitais mundo afora

Guilherme Baumhardt

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A imagem de Margaret Keenan percorreu o mundo e traz consigo um valor simbólico que uma primeira e rápida leitura talvez seja incapaz de dimensionar. De erros e de acertos ao longo dos últimos meses, de lições aprendidas e das que deveríamos ter assimilado e ainda não o fizemos. A foto da senhora de 90 anos de idade estampou a capa da edição desta quarta-feira do Correio do Povo e de uma infinidade de jornais e sites mundo afora. Ela foi a primeira pessoa a receber a primeira dose da vacina produzida pelas empresas Pfizer/BioNTech. E agora?

Durante o ano de 2020 falamos muito sobre mortes, testes, lockdown, distanciamento social, anticorpos, imunização de rebanho, respiradores, hospitais de campanha, álcool gel e máscaras. Mas tratamos muito, muito sobre vacina. Era como se fosse a nossa redenção, a nossa libertação. As previsões se acumulavam, mas a vacina não vinha. Viramos especialistas nas fases 1, 2 e 3. Muitos descobriram como se fabrica uma vacina. Reacendemos o debate sobre a obrigatoriedade ou não da imunização. Demos as boas-vindas a uma nova descoberta com a chegada da tecnologia do RNA Mensageiro.

Mas nossas vidas mudaram. E no meio desse turbilhão fico imaginando a sensação de cada um após receber as doses que estão por vir. O que farão primeiro? Do que mais sentem falta? Qual a privação mais dolorosa durante a pandemia? As respostas são únicas, individuais, e virão com o passar do tempo. Cada um sabe onde a pandemia foi mais cruel. Alguns talvez celebrem o abraço de um familiar que ficou distante. Outros talvez comemorem a conquista de um emprego. O ponto principal, porém, que toca a todos nós, são as lições a serem aprendidas. A principal delas talvez seja a descoberta do poder incomensurável do medo e do que ele é capaz de provocar. Não há maior demonstração de poder nesta pandemia. Foi, sem dúvida, nossa maior exposição de fraqueza.

A história nos ensina. Se o medo saísse vitorioso, os bravos combatentes que lutaram contra o nazismo sucumbiriam. E um regime totalitário teria tomado conta da Europa. A maior parte dos que vestiram uma farda ou embarcaram rumo ao Velho Continente sabia que as chances de retornar vivo eram pequenas. Além do medo, derrotaram os exércitos alemão e italiano. Todos temos nossos traumas de vida, situações que nos marcam com cicatrizes profundas. A perda de alguém que amamos, uma tragédia pessoal. Mas buscamos meios para superá-los.

Se médicos e enfermeiros não tivessem superado o medo, não teríamos recebido tratamento em hospitais mundo afora. Se produtores rurais, caminhoneiros, industriais não superassem o medo, não teríamos comida nos supermercados ou itens básicos, como remédios e combustíveis. Enfrentar nossa fraqueza é necessário. Não de maneira estúpida, mas planejada, reduzindo riscos. Um soldado não vai para a guerra desarmado, assim como um médico ou enfermeiro não adentra uma emergência sem equipamentos de proteção – máscaras, luvas, óculos...

O medo nos paralisa, mas ao mesmo tempo nos move. Após a enxurrada de informações sobre novos casos e óbitos, nosso instinto e nosso medo recomendam cautela. Mas o que leva um pequeno comerciante a abrir as portas da sua loja, em meio à pandemia, contrariando um decreto que o proíbe de trabalhar, sob o risco de multa ou ter um alvará cassado? O medo. Não da Covid-19, mas de ver os filhos passando fome, de ficar sem teto sob o risco de ser despejado de casa.
Sem confundir coragem com irresponsabilidade, lembro que todos prezamos pela vida, mas lembro que sem desafios, sem riscos, ela, a vida, não acontece. A irresponsabilidade, por vezes, cobra um preço alto demais. Mas o medo, ele sim, é o nosso maior inimigo. Ter medo não é ruim. Ruim é não enfrentá-lo.


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