A sereia e o Chile

A sereia e o Chile

Comparar o sistema chileno com o nosso é possível, mas precisa ser feito de maneira séria

Guilherme Baumhardt

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O Chile resolveu discutir sua Constituição. Proclamada ainda durante a ditadura Pinochet, foi ela a responsável por lançar as bases daquilo que transformou o país nas últimas décadas. É o melhor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da América do Sul, à frente do Brasil, Uruguai e Argentina. A nação andina integra a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) há mais de uma década. É o único país latino-americano dentro do seleto clube no qual o Brasil luta hoje para entrar. Tem ainda o melhor PIB per capita da América Latina e, na região, é a nação mais receptiva a investimentos, com o melhor ambiente de negócios segundo o ranking Doing Business. Tudo isso em uma área que, vista no mapa, lembra uma “tripa”. Comprida, fina, com pouca área e com terreno montanhoso na maior parte do território. Então qual o problema?

A origem da insatisfação parece estar no modelo de aposentadoria. Bem diferente do nosso, trata-se de um sistema de capitalização no qual o contribuinte faz a própria poupança para, ao final da vida laboral, gozar das suas economias. Os detratores abusam, usando inclusive de mentiras. Dizem que, em função das baixas aposentadorias, há uma onda de idosos atentando contra a própria vida. Falso. Em 2016, o Chile ocupava a 118ª posição no ranking mundial de mortalidade por suicídio de pessoas com idade superior a 70 anos.

A ironia é que o sistema de capitalização foi um dos grandes catalisadores do crescimento econômico do país. Com a poupança formada ao longo dos anos, o investidor chileno encontrava a segurança financeira, com taxas de juros competitivas para buscar crédito e fazer a economia girar, gerando emprego, renda, desenvolvimento e riqueza. Onde está a falha? Os patamares de contribuição estabelecidos no início do sistema projetavam uma aposentadoria confortável naquele Chile pré-explosão de crescimento, que não via no horizonte o ingresso na OCDE, que não vislumbrava os bons anos que viriam pela frente. Ou seja, graças também ao sistema de aposentadoria o chileno ficou mais rico. E hoje a poupança feita ao longo dos anos se revela insuficiente para manter o padrão de vida existente no país.

Comparar o sistema chileno com o nosso é possível, mas precisa ser feito de maneira séria. Se os valores hoje mostram uma vantagem da nossa aposentadoria em relação à deles, é necessário ver a floresta, não apenas a árvore. Nossa previdência é deficitária. Dinheiro de impostos que deveriam ser destinados a outros fins (investimentos em infraestrutura, para ficar em um único caso) são destinados a cobrir o rombo do INSS. Além disso, as contribuições de quem está na ativa não são suficientes para manter vivo o sistema. Prova disso são contribuições adicionais (PIS e COFINS) criadas ao longo dos anos para ajudar a tapar o buraco, além dos descontos de quem já está aposentado. Outro ponto: se o chileno contribuía com 10% ou 11% dos ganhos para seu fundo de aposentadoria, patamares próximos aos brasileiros, é verdade também que aqui há a contribuição patronal, algo que no sistema chileno não vigora.

Então qual a resposta? A sensação que fica, diante de um país com vários problemas resolvidos, é a de que os chilenos ficaram ludibriados, olhando vizinhos como a Argentina, balançando bandeiras velhas e surradas como se fossem a salvação da lavoura, e ouvindo uma espécie de canto da sereia. O Chile vive hoje aquilo que todos os países latino-americanos desejam, mas até hoje não tiveram coragem de enfrentar e construir – ou não quiseram trabalhar para isso. Atualmente o mundo espera ansiosamente por uma vacina contra o coronavírus. No Chile, seria bem-vinda uma boa dose de realidade sul-americana, injetada na veia, sem pomada anestésica, para mostrar que eles correm sérios riscos de jogar fora o que foi conquistado a duras penas. A sereia latino-americana canta bem, mas no playback. Na vida real, ao vivo, é de doer, desafinada, de estourar os tímpanos. Basta visitar Argentina, Venezuela e outros.


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