Quero meu quinhão

Quero meu quinhão

Descubra a surpreendente jornada ancestral do autor em busca de suas raízes indígenas e as reflexões sobre a reparação histórica.

GUILHERME BAUMHARDT

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O texto a seguir é baseado em fatos nada reais. Quaisquer semelhanças com o Brasil são fruto de devaneio do autor. Desconsidere nomes, datas e registros históricos.

“Sou descendente dos povos originários. Vasculhei minha árvore genealógica, fiz exames de DNA e descobri que meus ancestrais não são alemães, mas da tribo ‘AlemonPatatuá’, que na época do Brasil colônia foi erroneamente traduzida do Tupi Guarani para ‘Alemão Batata’. Daí a confusão. O Baumhardt que os amigos leitores veem no topo da coluna tem, na verdade, origem nas aldeias distantes da Amazônia, que se estendem pelo Pantanal, cruzam os Estados que hoje conhecemos como Paraná, Santa Catarina, chegam ao Rio Grande do Sul, passam por Nova Petrópolis, Morro Reuter, até chegar a Cachoeira do Sul.

Meu velho pai, Cacique Índio Velho sempre disse que os Baumhardt eram conhecidos como ‘os vermelhos’, pelas bandas de Pertile – mais uma evidência irrefutável da minha ascendência indígena. Foi nas águas do Rio Jacuí (batizado por nós, AlemonPatatuá) que meus ancestrais pescavam o sustento da aldeia. De lambaris a dourados, tudo saía das águas caudalosas do velho rio. As raízes fincadas nesta terra não param por aí.

Meus avós eram exímios caçadores. Com o passar dos anos, substituíram o arco e a flecha por espingardas, chumbo e pólvora. Gostavam de caçar marrecas e perdizes, uma diferença e tanto com os indígenas do norte, das tribos Italianirim (equivocadamente confundidos com europeus), que preferiam aves menores – adoram tudo que é ‘primo canto’. São povos que habitam a Serra, na faixa que vai de Vacaria a Caxias do Sul, passando por Bento Gonçalves e Garibaldi. Como se vê, há diferenças mesmo nos chamados povos originários.

Nas aldeias, homens e mulheres têm comportamento distinto na hora de ir para a guerra – nem que seja a da conquista, para garantir a reprodução. Mulheres usam e abusam da pintura tribal, no rosto, especialmente nos lábios, nas bochechas e nos olhos. Chamam isso de batom, blush e rímel. Enquanto isso, os nativos do sexo masculino adotam o consumo de entorpecentes, principalmente o álcool. É para ‘criar coragem’, dizem. ‘Somos titubeantes demais para a selvageria que é encarar as onças de cara limpa’, afirmam os valentes.

Diante da discussão na Suprema Tribo Federal (STF) sobre um tal marco temporal das terras, resolvi mudar de ares. Preciso de uma nova oca. A atual está em uma região da floresta que não é das mais nobres. Falta comida, o ar está poluído e a vizinhança é barulhenta demais. Resta apenas uma dúvida: se meu destino será a área hoje conhecida como Parque Moinhos de Vento, na aldeia Porto Alegre, ou se será o Parque Knorr, na aldeia Gramado. Pode ser um, pode ser outro, mas um deles é meu e ninguém tasca. Se encrencarem comigo, preparem-se porque o bambu vai cantar (significa ‘o pau vai comer’, em linguagem eurocentrista).

É a correção de um erro histórico. Estamos sendo, finalmente, reparados. O próximo passo será a tomada de um lugar chamado Brasília, construída sobre antigo cemitério indígena. As vozes do passado sempre disseram que a área era amaldiçoada, que nada plantado lá prosperaria. O tempo é senhor da razão. Entre sementes boas e ruins, vingaram aquelas que chamamos de inço, erva-daninha. Para corrigir isso, precisamos retomar aquela região, que já tem muita coisa nossa, a começar pelo lago Paranoá. O que seria de nós, sem a nossa Suprema Tribo Federal?”


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