A conquista do espaço feminino na Brigada Militar

A conquista do espaço feminino na Brigada Militar

Presença das mulheres no quadro da BM teve início em 1985 e hoje, mais de três décadas depois, as pioneiras relembram os desafios

Por
Giullia Piaia

Os primeiros registros da presença feminina em forças de segurança pública ao redor do mundo datam do final do século XIX e início do século XX. Marie Owens se juntou ao departamento de polícia de Chicago, nos Estados Unidos, em 1891, atuando em casos envolvendo mulheres e crianças. Henriette Arendt, por sua vez, em 1903 foi a primeira mulher a ser empregada como policial na Alemanha. Em 1908, a Suécia seguiu o exemplo alemão e contratou as primeiras mulheres para suas forças policiais. 

O estado de São Paulo foi pioneiro na América Latina na inserção feminina em forças policiais militares, em 1955. A ideia surgiu em 1953, quando Hilda Macedo, assistente da cadeira de criminologia da Escola de Polícia, apresentou sua tese sobre a necessidade de criação de uma polícia feminina, ressaltando a competência igualitária de homens e mulheres, durante o 1º Congresso de Medicina Legal e Criminologia.

Dois anos depois, 12 mulheres foram selecionadas para um curso intensivo na Escola de Polícia, servindo de modelo para a criação de contingentes femininos nos demais estados brasileiros e também nos países latino-americanos. Hilda veio a ser a primeira mulher comandante de tropa no país. De início, o trabalho das paulistas se deu em juizados de menores, rodoviárias e aeroportos. Com o passar do tempo, contudo, o efetivo foi ampliado e constituiu um batalhão.

Integrantes da primeira turma feminina da BM em 1986, sendo apresentadas ao Comando da BM. Foto: Coronel Cristine Rasbold / Arquivo Pessoal / CP

O RS foi um dos estados com a entrada mais tardia de mulheres no quadro militar de sua Brigada Militar (BM), apesar de a corporação já contar com trabalho feminino em seu quadro civil, em atividades administrativas e de serviços gerais. Com a chegada do sesquicentenário da corporação, passou a se pensar na criação de um segmento feminino. Assim, em 1985, foi criada a Companhia de Polícia Militar Feminina (Cia PM Fem), com o efetivo de 135 policiais. Em fevereiro de 1986, houve o ingresso da primeira turma do Curso de Habilitação de Oficiais Femininos, com término em julho do ano seguinte. Alguns dias depois, ainda em julho, e em setembro do mesmo ano, se formaram as primeiras sargentos e soldados, respectivamente.

Formatura das primeiras oficiais, em 1987. Foto: Coronel Cristine Rasbold / Arquivo Pessoal / CP

Policiais mulheres foram para as ruas do Estado há 35 anos, em 1987

Foi em setembro de 1987 que as PMs passaram a ser vistas nas ruas gaúchas, com a instalação da Companhia PM Feminina e a incorporação ao 9º Batalhão de Polícia Militar (BPM), realizando policiamento ostensivo na Capital, no interior e na Operação Golfinho. Em 1988, a Cia. ganhou sede própria, sendo desincorporada da do 9º BPM. Em junho então, foi criada a 2ª Cia. PM Fem.

A 1ª Cia. PM Fem foi comandada por oficiais masculinos até 1991, quando o comando foi passado para as oficialas. Como em outros locais, as PMs atuaram inicialmente junto ao público feminino, infantil e idoso, no policiamento de rodoviárias, aeroporto e escolas, shows e eventos esportivos. As PMs femininas foram igualadas aos seus colegas homens em 1993, quando as duas Cias. PM Fem foram incorporadas ao 1º, 9º e 11º BPMs. A partir daí, as mulheres passaram a desempenhar as mesmas funções que os homens, ainda que integrando quadros diferentes. O que finalmente mudou em 1997, com a unificação dos quadros, garantindo às PMs a mesmas oportunidades que aos colegas do sexo masculino.

Foto: Coronel Cristine Rasbold / Arquivo Pessoal / CP

Em 2011, mais um marco na história das mulheres na BM: a promoção das quatro primeiras tenentes-coronéis, depois de 25 anos de serviço. Uma delas foi Cristine Rasbold, hoje Coronel da reserva, após se aposentar em 2021, com 35 anos de serviço. “Eu sempre tive uma admiração pelas Forças Armadas e pelas polícias militares. Eu sempre me interessei muito pelo assunto, mas não existia a oferta de carreira para as mulheres. Quando a Brigada, então, resolveu abrir as suas portas para o ingresso das mulheres, foi algo que me chamou bastante atenção. Algo novo pelo desafio, pelo ineditismo e, em particular no meu caso, eu já tinha essa admiração”, diz a coronel, elencando as razões que a levaram para a BM, em 1986. Ela ainda foi a primeira mulher a assumir uma posição no alto escalão da BM, na função de Chefe do Estado-Maior.

Lembranças do bom convívio e dos desafios dos primeiros anos

A tenente da reserva Jane Melo Soares é filha de brigadiano e foi com o incentivo do pai que se inscreveu no concurso para a Companhia PM Fem., em 1986. “Eu tinha 18 anos, estava começando a vida. Isso me chamou atenção por ser uma profissão nova. Ninguém conhecia como ia ser empregado efetivo, a gente foi descobrindo junto com a Brigada, eu acho. Porque a Brigada Militar fez esse concurso, mas também para eles era novidade”, relembra ela. 
Jane tem boas lembranças de seu tempo junto ao 9º BPM, logo no início de sua atuação. “O pessoal tinha bastante cuidado conosco. Eles tinham, às vezes, medo de atuar junto conosco, queriam nos testar. Mas quando a gente é jovem, a gente não tem medo do novo, não tem medo do que pode acontecer. Para mim foi uma experiência incrível”, relembra. A tenente diz que, caso tenha outra vida, será brigadiana de novo. “Foi a melhor decisão que eu tomei na minha vida, fazer o concurso e continuar na Brigada”, afirma, com convicção.

Foto: Coronel Cristine Rasbold / Arquivo Pessoal / CP

A também tenente da reserva Aline Winck é outra que participou dos primeiros cursos oferecidos para as mulheres. Em 1987, ela se formou soldado da Brigada Militar, aos 18 anos. “Há 35 anos, o brigadiano tinha muito mais aquela coisa mais durona. Eu acho que a presença da mulher ali trouxe aquela coisa mais feminina. Às vezes, as pessoas falavam ‘eu prefiro ser abordado por uma mulher do que ser abordado por um homem’. Justamente por ter mais tato”, lembra.
Mas a trajetória feminina no efetivo militar também encontrou desafios. “Quando alguém queria se prevalecer, com uma mulher ficava mais difícil. Não só na rua, como também dentro do quartel. A aceitação da mulher dentro do quartel também teve as suas dificuldades”, relata Aline. 

Estranhamento inicial foi superado com o tempo

Durante o curso, em 1986. Foto: Coronel Cristine Rasbold / Arquivo Pessoal / CP

Também entre a população civil as militares precisaram conquistar sua posição de respeito. “No início, chegou a ter um certo estranhamento. E com o trabalho sério, a conquista do espaço foi aos poucos sendo construída. Hoje, a sociedade em geral não distingue. Nos veem como um policial que está ali, é de igual para igual”, garante Cristine. “No início, as pessoas ficavam surpresas conosco. Comigo aconteceu, era meu segundo serviço, talvez, e uma mulher estava na minha frente e falou ‘Um brigadiano de brinco’. Aí eu olhei para ela e disse: ‘Eu sou uma mulher, senhora’. Ela respondeu: ‘Tem mulher na Brigada, que barbaridade’. As mulheres achavam que a gente tinha entrado para a Brigada Militar para conseguir casamento”, complementa.

Atualmente, 3.105 mulheres integram o efetivo militar da corporação. Pouco mais de 17% do total de 18 mil PMs, um número ainda minoritário. “Por ser a primeira turma, acredito que nós tenhamos passado o pior, no sentido de enfrentar barreiras, de mostrar que nós éramos capazes. Mesmo com as barreiras, sou muito agradecida a todos que me ensinaram, às muitas coisas que eu nem imaginava fazer. Eu acredito que seja uma instituição maravilhosa de se trabalhar”, pondera a tenente Jane, que vê como importante a contínua e crescente presença feminina nos quadros da BM. 

“Nós fomos conquistando esse referencial da mulher na Brigada e chegamos em um patamar em que a mulher ingressa de igual para igual com o homem, no mesmo concurso. As conquistas são conforme o potencial de cada um dentro da sua carreira”, complementa a Coronel Jane. “Eu acho um excelente espaço para as mulheres. Claro que tem que ter um perfil, como tem perfil para jornalista, para médica, para advogada. Mas é mais um espaço que a mulher pode buscar, mais uma oportunidade de trabalho para as mulheres e a qualificação de serviços para o público feminino”, afirma

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