Rentabilidade é atrativo para plantar trigo

Rentabilidade é atrativo para plantar trigo

Principal cultura de inverno no Rio Grande do Sul, plantio do cereal se inicia no final de maio sob a influência positiva da alta de demanda e dos preços aquecidos no mercado externo, mas com o dilema do crédito escasso

Por
Patrícia Feiten

Quando colocarem as plantadeiras em campo a partir do final deste mês, os agricultores gaúchos começarão a lançar as sementes de uma necessária virada. Após a estiagem que impôs uma quebra histórica à produção de soja e milho no Rio Grande do Sul, devastando lavouras inteiras, a safra de inverno é a aposta para reverter os prejuízos amargados com as culturas de verão. A valorização alcançada pelo trigo desde o ciclo passado e a perspectiva de maior demanda internacional, em meio aos problemas de suprimento decorrentes da guerra entre Rússia e Ucrânia, devem estimular a expansão da área cultivada com o cereal no Estado.

Na safra 2021, o plantio de trigo atingiu 1,17 milhão de hectares e resultou na colheita de 3,4 milhões de toneladas, de acordo com dados consolidados pela Emater/RS-Ascar. O coordenador da Comissão do Trigo da Federação da Agricultura do Estado (Farsul), Hamilton Jardim, acredita que, neste ano, a área de cultivo possa chegar a 1,5 milhão de hectares. “Estamos encerrando uma safra de verão tremendamente prejudicada, e isso vai trazer um baque na receita dos produtores, que estão enxergando no trigo uma recuperação pelo menos parcial de renda”, destaca Jardim. 

Para o agricultor, o grande dilema nesta temporada está no financiamento das lavouras – as linhas de crédito subsidiadas do Plano Safra 2021/2022 foram congeladas em fevereiro, e apenas no dia 28 de abril o Congresso Nacional aprovou o projeto de lei que garantiu R$ 868 milhões em recursos extraordinários, no Orçamento da União, para a reabertura das operações. “Crédito no momento oportuno é indutor de tecnologia e alta produtividade, mas o produtor vai plantar de um jeito ou de outro e a área vai crescer”, afirma Jardim.

A Rede Técnica Cooperativa (RTC), que reúne 30 cooperativas associadas à CCGL, projeta um aumento de 12,1% na área plantada de trigo em sua região de abrangência neste ano em relação à safra 2021. O presidente da Federação das Cooperativas Agropecuárias do Estado (FecoAgro-RS), Paulo Pires, diz que a alta demanda da indústria de proteína animal pelos cereais de inverno e o ritmo acelerado dos embarques garantem liquidez ao trigo. No primeiro trimestre do ano, o Brasil exportou 2,2 milhões de toneladas do grão, um salto de 440% frente ao mesmo período de 2021. “O produtor colhe e, se quiser vender toda a produção num mês, vende”, observa Pires. 

Para a safra deste ano, ele estima uma alta de 50% no custo. “De certa forma, o produtor está sendo compensado pelo aumento do preço, em função da guerra”, explica Pires. Sem um cessar-fogo no horizonte, o conflito entre Rússia e Ucrânia agita os mercados porque os dois países são grandes exportadores de trigo. Desde o início da guerra, as cotações internacionais da commodity dispararam. No Estado, a tonelada do trigo estava em 316 dólares em 23 de fevereiro, na véspera da invasão orquestrada por Moscou; chegou a 391 dólares em 24 de marco, fechou em 377 dólares em 2 de maio, e subiu a 380 dólares no último dia 5, de acordo com o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea) da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq/USP).

A escassez de fertilizantes, com a redução dos fluxos de importação da Rússia, não deve ser um fator limitante para o avanço da triticultura, afirma o chefe-geral da Embrapa Trigo, Jorge Lemainski. Como a estiagem frustrou o desenvolvimento de grande parte das lavouras, explica o agrônomo, essas áreas contêm uma “reserva” de nutrientes que não chegaram a ser absorvidos pelas plantas e servirão às culturas de inverno. Segundo Lemainski, a nova safra deve ser guiada pelo uso eficiente de recursos. “Há medidas ao alcance de todos: análise de solo para saber o que ele tem e o que a planta necessita, uso de uma genética que requeira menos tratamentos fúngicos e ajuste de quantidade de sementes por metro quadrado”, recomenda. 

A indústria acompanha com interesse as projeções de expansão dos trigais. “O Rio Grande do Sul vai entrar num ciclo muito positivo para as safras futuras, à medida que vai crescendo o potencial da área plantada”, comenta o vice-presidente da Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo), Rogério Tondo. No curto prazo, porém, o setor teme falta de produto ao longo da entressafra, segundo o empresário. Com estoques baixos, os moinhos brasileiros deverão aumentar as importações de trigo neste ano. “Os moinhos do Estado vão se abastecer da Argentina e do Uruguai até a entrada da safra do Paraná, em setembro, e os do Sudeste, Norte e Nordeste, sobretudo dos trigos americano e francês”, afirma.

Clima Favorável

O fenômeno La Niña, que causou estiagem no verão no Rio Grande do Sul e deverá se estender até meados de junho, terá pouco impacto na safra gaúcha de inverno. Segundo o meteorologista Flavio Varone, coordenador do Sistema de Monitoramento e Alertas Agroclimáticos (Simagro) da Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (SEAPDR), a tendência é retorno à normalidade no fim do outono e durante todo o inverno. Para maio, as previsões indicam distribuição irregular de chuvas, com volumes próximos da média na maior parte do Estado e um pouco abaixo dos níveis históricos nas regiões oeste e noroeste. 

O inverno, explica Varone, será marcado por frequentes deslocamentos de frentes frias. “Nos meses de junho, julho e agosto, os totais de chuva deverão ser normais ou acima da média em grande parte das regiões”, afirma. As temperaturas deverão apresentar comportamento semelhante. “O ingresso regular de massas de ar frio vai proporcionar períodos de temperaturas baixas e fenômenos típicos da estação em todo o Estado, como nevoeiros e geadas”, conclui o meteorologista.

Hora de investir para recuperar perdas 

Na reta final da colheita da soja, o agricultor Ricardo Gasparin ainda não tem uma dimensão precisa dos estragos causados pela estiagem na propriedade da família em Lagoa Vermelha (nordeste do Estado), onde a oleaginosa ocupou 90 hectares nesta safra de verão. Na soja plantada no cedo, a produtividade não passou dos 20 sacos por hectare, frente à expectativa inicial de 60 a 70 sacos por hectare. Para compensar pelo menos parte das perdas, Gasparin, que lidera a lavoura ao lado do pai, Rosalino, aumentará em 40% a área cultivada com cereais de inverno neste ano. Serão 70 hectares semeados com trigo e 20 hectares com aveia branca a partir de 10 de junho.

“A seca judiou, é hora de investir no trigo e tentar tirar o prejuízo da planta do verão”, diz o agricultor. Gasparin conta que a família se lançou na aventura do trigo há 22 anos, mas na década passada chegou a interromper o cultivo por três anos. Na época, as perdas decorrentes de geadas e chuvas de granizo e as cotações pouco animadoras na venda do cereal tornaram inviável a atividade, que foi retomada na fazenda a partir de 2018. 

Gasparin deve plantar 70 hectares de trigo e 20 hectares de aveia branca, área 40% superior à que semeou no ano passado. Foto: Ricardo Gasparin / Arquivo Pessoal

Com a valorização recente do trigo e o aumento no consumo de cereais de inverno para substituição do milho na composição das rações animais nos últimos anos, o cenário em 2022 é bem diferente. O conflito entre Rússia e Ucrânia, grandes produtores de trigo, pode abrir boas oportunidades para o grão brasileiro, acredita Gasparin. “Os estoques mundiais estão baixos, a gente espera que tenha boa produção e bom preço”, avalia.

Se no verão a estiagem monopolizou as preocupações, nesta temporada o grande dilema se resume no custo de produção, que, nos cálculos do agricultor, deverá aumentar entre 30% e 40% na comparação com a safra de inverno passada. Traduzida em cifras, essa alta poderá significar um gasto de até R$ 5 mil por hectare, ante R$ 3 mil investidos na lavoura em 2021. “Se for fazer (o plantio) com tecnologia de ponta, isso se torna inviável”, destaca Gasparin.

Bons resultados com adubo alternativo

Adepto da agricultura de precisão, o produtor Alceo Bandera cultiva em torno de 850 hectares de grãos nas duas propriedades mantidas pela família nos municípios de Cruz Alta e Júlio de Castilhos, no centro-norte e centro do Estado, respectivamente. O plantio do trigo na região começa no final de maio e se estende até o final de junho. Para cobrir as despesas com insumos, Bandera estima que terá de colher neste ano pelo menos 50 sacas do cereal por hectare – a unidade de 60 quilos é negociada hoje a R$ 93,72 no Rio Grande do Sul, de acordo com o Informativo Conjuntural da Emater/RS-Ascar de 28 de abril. “O trigo subiu um pouco, mas os insumos subiram muito mais, e o diesel, também”, observa Bandera. 

Uso de remineralizadores de solo e de fertilizantes orgânicos rendeu a Alceo Bandera, de Cruz Alta, trigo de qualidade superior. Foto: Christian Weege / Divulgação

Assustado com a disparada dos custos da lavoura, Bandera pretende repetir neste ciclo práticas importadas do sistema agroecológico que reduziram o uso de adubos químicos e fizeram a diferença em sua última colheita. Entre essas medidas, estão a aplicação de remineralizadores de solo, conhecidos como “pó de rocha”, e esterco de aves associados à ureia agrícola, fertilizante nitrogenado mais usado no país. “Sem nitrogênio, não se colhe trigo, então desse não tenho como escapar”, destaca Bandera. Segundo o produtor, os resultados obtidos com a substituição dos macronutrientes químicos foram surpreendentes, tanto em termos de produtividade quanto do chamado peso do hectolitro (PH), que determina a qualidade do trigo e influencia o valor pago aos produtores pelo cereal. No Brasil, o trigo considerado adequado para panificação apresenta PH entre 78 e 80 quilos por hectolitro. “Tive trigo com 85 de PH, nunca na minha vida eu tinha colhido isso. Estou muito contente com a sanidade, o vigor”, comemora Bandera.

Diminuir a dependência dos compostos químicos, porém, não é simples. Desde o início da guerra entre Rússia e Ucrânia, o agricultor vem tendo dificuldades em encontrar as matérias-primas alternativas no mercado. O país euroasiático é um dos maiores produtores mundiais de fertilizantes fosfatados, potássicos e nitrogenados, e a instabilidade no suprimento desses produtos aumentou a procura pelos bioinsumos e agrominerais. O estoque de adubo orgânico necessário para o plantio, de duas toneladas, foi adquirido em dezembro, conta Bandera. No caso do pó de rocha, a saída será ajustar as doses planejadas. “A ideia era (aplicar) cinco toneladas, como no ano passado, mas acho que não vou conseguir, vou botar três”, calcula o produtor.

Redução de custos em ano "complicado"

Os bons preços atingidos pelo trigo no mercado interno animam o agricultor Fauro Loreto da Rocha a ampliar o cultivo do cereal neste ano. Da área total de 480 hectares reservada a culturas de inverno em sua propriedade em Santa Bárbara do Sul, até 25% serão destinados ao trigo grão e 33% serão plantados com o trigo duplo propósito, cultivar desenvolvida pela Embrapa que serve tanto à produção de grãos para consumo humano quanto à nutrição de bovinos de corte e leite.

Com ciclo mais longo, o trigo duplo propósito pode ser semeado mais cedo, fornecendo a cobertura de massa verde para alimentar os animais em piquetes durante o inverno, período caracterizado por escassez de forrageiras. Segundo Rocha, que trabalha no sistema de integração lavoura-pecuária, o primeiro pastejo ocorre 60 dias após a semeadura, e é possível realizar de três a quatro pastoreios antes do rebrote da planta para a colheita de grãos ao final da safra. A produtividade impressiona, afirma o produtor. “No ano passado, colhi no trigo grão 62 sacas em média, e no trigo duplo propósito, de 28 a 30 sacas”, compara.

Fauro da Rocha aumentará área plantada com trigo de duplo propósito, útil para alimentação humana e ração animal. Foto: Fauro da Rocha / Arquivo Pessoal

A substituição total dos fertilizantes químicos por agrominerais e adubos orgânicos, como a chamada “cama de aviário” e inoculantes com bactérias do gênero Azospirillum, também é um estímulo para a expansão da lavoura de trigo neste inverno. Em 2021, Rocha precisou colher 10 sacas de trigo por hectare para recuperar o capital investido na safra de inverno. Neste ano, ele estima que essa relação de troca deve subir para até 15 sacas por hectare, valor ainda considerado baixo se comparado com o custo das plantações baseadas em adubação química. “Este ano está bem complicado, a gente tem de tentar fazer dinheiro de outras formas, já que a (safra da) soja vai deixar a desejar”, observa Rocha.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895