"Boleiros" sob investigação

"Boleiros" sob investigação

Eles têm uma situação financeira privilegiada, mas mesmo assim se arriscam por mais dinheiro. Casos de ex-jogadores suspeitos de envolvimento com atividades ilícitas mostram que o ambiente de permissividade do futebol e a sensação de impunidade são uma combinação muito perigosa

Casos envolvendo jogadores de futebol e crimes financeiros têm sido mais frequentes, revelando um lado pouco usual dos atleta

Por
Fabricio Falkowski

Era cedo demais para um jogador de futebol recém-aposentado levantar da cama, mas aquela manhã ensolarada de uma quinta-feira, em junho de 2021, foi diferente para Anderson Luís de Abreu Oliveira, o Andershow. Naquele dia, o herói da Batalha dos Aflitos com a camisa do Grêmio, também com passagem pelo Inter e por clubes da Europa como o Manchester United, foi acordado pela visita indesejada da Brigada Militar e de representantes do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Atrás de mais provas que comprovariam um esquema acusado de desviar R$ 35 milhões de duas grandes empresas brasileiras, os agentes deflagraram naquele dia uma operação de busca de apreensão que incluiu a casa do ex-atleta e as de outros integrantes do grupo.

Segundo denúncia encaminhada pelo MP e aceita pela Justiça em agosto passado, eles burlaram o esquema de segurança digital de um banco, transferiram o valor para outras contas e, em seguida, tentaram lavar o dinheiro adquirindo criptomoedas. Naquele dia, o Rio Grande do Sul e o Brasil conheceram um outro lado de Anderson. Uma face suspeita de ser voltada para o delito e para o lucro fácil, que não deixa de ser surpreendente, mas está longe de ser uma novidade no futebol.

Anderson não é o único jogador suspeito de se envolver com o mundo do crime e com a contravenção para auferir lucro fácil. Edinho, filho do melhor jogador de futebol de todos os tempos, Pelé, foi condenado a 33 anos de prisão e atualmente cumpre pena em regime semiaberto por tráfico de drogas. Ronaldinho e seu irmão Assis ficaram presos por seis meses no Paraguai depois de tentarem ingressar no país com documentos falsos. Para voltar ao Brasil, eles tiveram que pagar multa e, até hoje, respondem por lavagem de dinheiro e falsificação de documentos. O ex-centroavante Christian, que fez enorme sucesso com as camisas do Inter e do Grêmio entre o final dos anos 1990 e o começo dos 2000, é um dos acusados pelo Ministério Público dentro da Operação Rebote, que investiga desvios milionários das contas do Inter entre 2015 e 2016. Ele responde judicialmente por estelionato e lavagem de dinheiro.

Mais recentemente, nos últimos dias de setembro, o atacante Diego Costa, do Atlético Mineiro, que acaba de voltar da Europa, passou a ser investigado pela Polícia Federal no Sergipe por participação em um esquema milionário de apostas. O jogador foi incluído na “Operação Distração”, que, de acordo com o comunicado enviado pela Polícia Federal à imprensa, apura “suposta prática de exploração de jogos de azar, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e organização criminosa envolvendo o site de apostas Esportenet, seus proprietários, operadores financeiros e financiadores”.

São nomes, lugares, acusações e atividades bem diferentes, que vão do tráfico de drogas aos crimes cibernéticos. Em comum, todos os casos apresentam a ânsia de ex-atletas, todos muito bem remunerados ao longo de suas carreiras, por amealhar ainda mais dinheiro após o fim do seu tempo nos campos. Mas o que leva esses jogadores ao ambiente do crime? O que motiva essas pessoas que, em tese, já desfrutam de uma situação financeira privilegiada, a arriscar a reputação, a tranquilidade e até a própria liberdade?

São questões nebulosas, de difícil resposta, mas que começam a ser compreendidas a partir da combinação entre a sensação de impunidade, fruto de um sistema legal complicado, que gera benefícios principalmente para aqueles com condições financeiras para sustentar um longo processo de defesa na Justiça, e um ambiente extremamente tolerante e permissivo em relação aos seus astros, como é o do futebol. Em geral, os jogadores, enquanto exercem a sua profissão em grandes centros, são excessivamente protegidos pelos clubes e vivem numa espécie de “bolha”, alheia à realidade da maioria das pessoas. Em alguns casos, isso ocasiona problemas de comportamento que eles parecem sequer compreender. É difícil para eles aceitar o fato de que todos os seus atos têm consequências.

“O futebol, em muitos aspectos, é um mundo paralelo, no qual as regras da sociedade em geral não valem. Esses jogadores, por superarem o muro da desigualdade, que é quase intransponível, e ascenderem muito e rapidamente, passam a ter um universo de possibilidades que faz com que não enxerguem a realidade como de fato ela é. Até por terem um talento especial, passam a não ver freios. Eles passam a encarar o mundo de uma forma mais tranquila, quase sem regras”, afirma o advogado e jornalista Andrei Kampff, especializado em direito esportivo e com 25 anos de cobertura dos principais clubes do país como repórter. “De maneira geral, os clubes, mas também a sociedade e a imprensa, passam a mão sobre a cabeça de quem tem um talento especial e dinheiro. Eles têm amigos, possuem acesso fácil. Depois que vence, é muito difícil um jogador receber um ‘não’ e, muitas vezes, as escorregadas éticas são toleradas”, continua.

Ao aventurar-se, Anderson, mesmo que inconscientemente, foi encorajado por uma mescla de encorajamento, fruto do ambiente no qual está inserido desde que era adolescente, que é o dos campos de futebol, com um sistema arraigado no Brasil que ainda tolera a impunidade. Em tese, ele não precisava arriscar a reputação em busca de mais ganhos financeiros, mas, segundo denúncia apresentada pelo Ministério Público e aceita pela Justiça, ele pode ter sido um dos organizadores e possivelmente o financiador e beneficiário de um esquema que desviou R$ 35 milhões de duas grandes empresas brasileiras.


CRIPTOSHOW


Segundo a denúncia do Ministério Público, Anderson e outro suspeito “atuaram na execução das ações delituosas do grupo, desde o fornecimento de contas bancárias de titularidade da empresa House Serviços em Tecnologia Ltda, da qual eram titulares e responsáveis de fato, destinatária direta de parte dos valores subtraídos da empresa lesada, até as posteriores conversões em criptoativos, de forma a dificultar a determinação da origem, movimentação e localização das quantias obtidas de forma ilícita por eles e pelos comparsas”.

O esquema passou a ser investigado pelo promotor Flávio Duarte em 2020, quando o MP recebeu a informação de que uma grande empresa do Rio Grande do Sul, que atua no setor de aço, teve a conta bancária invadida com o desvio de R$ 30 milhões em 11 transferências realizadas entre os dias 15 e 16 de abril daquele ano. Para conseguir o acesso à conta, o grupo burlou o sistema de segurança digital do banco no qual a empresa tinha conta. Para isso, utilizava empresas “laranja” com sedes em Porto Alegre, Cachoeirinha, São Paulo e Porto Velho, em Rondônia, que também tinham conta no mesmo banco. Os acusados utilizavam as senhas dessas pequenas empresas para realizar transferências, mas os valores saíam da conta da grande companhia.

As investigações, conduzidas pela Promotoria de Justiça Especializada Criminal, em parceria com o Grupo de Atuação Especial Contra o Crime Organizado (Gaeco) e com o Núcleo de Inteligência do MP, seguiram e encontraram outro desvio de uma empresa ligada à Bolsa de Valores. Com idêntica forma de atuar, o grupo conseguiu desviar R$ 5 milhões, também no dia 16 de abril.

Em paralelo à subtração do dinheiro das duas contas, o grupo, conforme investigação do MP, montou um “mecanismo de lavagem de dinheiro, de ocultação e dissimulação da origem e destinação do patrimônio obtido com o crime”. Para dificultar o rastreio do dinheiro por parte da polícia, do MP e dos próprios bancos, os acusados utilizaram exchanges (corretoras que fazem intermediação de negociação para compra e venda de criptomoedas) para onde foram transferidos os valores para a aquisição de bitcoins. Ainda de acordo com a investigação, o grupo teria utilizado as criptomoedas porque as transações com este tipo de ativo são muitas vezes realizadas no anonimato, o que dificulta a investigação e facilita a possível lavagem do dinheiro.

O MP apurou que o ex-jogador Anderson era sócio da House Tecnologia Ltda, empresa que conduziu o esquema. Além disso, algumas das transações teriam sido realizadas em endereços ligados ao jogador. Na época, em nota, ele negou as acusações, mas confirmou ser um aplicador do mercado de criptomoedas e também o fato de ser sócio da House. Durante as investigações, Anderson foi chamado de “baleia”, termo que, neste mercado, é frequentemente usado para descrever os donos de grandes quantidades de bitcoins. “Conheço e invisto há quatro anos no mercado de criptomoedas. Investi mais fortemente em 2019 no bitcoin, comprei com dinheiro declarado, conforme comprovante e imposto de renda. Desde então, negocio no mercado a compra e venda destas criptomoedas para ganhar dinheiro e também porque gosto da tecnologia. Para isso, comprei a participação na empresa House Tecnologia Ltda, que realiza as compras e vendas quando é oportuno. Uma de nossas empresas foi relacionada em um assunto que não merecíamos. Hoje, por conta disso, recebi em minha residência a polícia, com a cordialidade que lhes é merecida. Nada tenho a esconder. Nossos valores são fruto do meu trabalho e estão devidamente declarados”, manifestou-se Anderson, à época.

De acordo com nota enviada à imprensa em junho de 2021, quando foi deflagrada a ação de busca e apreensão, o MP afirma que “está clara a existência do furto qualificado (mediante fraude), cometido, em tese, diante da sofisticação do modus operandi empregado e pelo número de envolvidos, por organização criminosa, integrada pelo operador do desvio e pelos sócios e representantes das empresas diretamente beneficiadas com os recursos desviados”.

ENTOURAGE

Mas qual motivo leva Anderson e outros atletas a envolverem-se em imbróglios como esse? De acordo com o antropólogo Arlei Sander Damo, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o contexto do futebol é fundamental para explicar o fato que envolve os ex-jogadores. Essa condição, é claro, não isenta de responsabilidade qualquer ex-atleta que venha a se aventurar por atividades ilícitas.

“Qualquer jogador que constrói uma trajetória bem-sucedida, se empodera. Ele passa a ter muito dinheiro e acesso a pessoas e a privilégios muitas vezes ilimitados. Ele tem uma sensação de poder e prepotência e acha que pode muito ou tudo. Isso fica evidente nos termos usados para definir alguns jogadores, como ‘mascarado’ e ‘balaqueiro’. O problema é que muitos jogadores não sabem lidar com esse poder”, diagnostica o professor, que segue a análise: “O futebol, em geral, é ao mesmo tempo um ambiente onde há extrema cobrança e também é muito paternalista. O jogador é muito cobrado por seu desempenho em campo, mas protegido fora dele. Em geral, não é responsabilizado por pequenos deslizes durante a carreira. Ele não é educado. Ou seja, ao mesmo tempo que há regras e disciplina rígidas, há permissividade e falta de comprometimento. É como se as duas coisas, cobrança e permissividade, se combinassem de forma equilibrada, embora pareçam opostos”.

Em sua tese para doutoramento, Arlei Sander Damo analisou o contexto da formação de jogadores no Brasil e na França. “Mesmo que os jogadores de futebol venham de camadas mais populares da sociedade, onde há a experiência de punibilidade extrema, quando eles, em um espaço muito curto de tempo, ascendem na carreira, se empoderam economicamente e conquistam a sensação de que estão fora do alcance da Justiça e das leis comuns. Daí, podem usar aquela célebre expressão: ‘você sabe com quem está falando?’”, articula.

Em suas análises, o antropólogo envolveu o conceito de entourage, palavra com origem francesa que define “aqueles que cercam”, que acompanham e que convivem com determinado indivíduo, como um rei, um presidente ou um artista famoso. Adaptada ao mundo do futebol, caracteriza os agentes, amigos, parentes e chegados do jogador, que se aproximam e permanecem juntos para se beneficiar e compartilhar dos mesmos privilégios, ou, pelo menos, parte deles. Em troca, protegem, toleram, bajulam e agradam o atleta. São os famosos “parças”.

Razões que levam jogadores com salários bem acima da média da população a se envolver com atividades ilícitas envolvem uma série de questões | Foto:  Ricardo Giusti

Para Arlei, porém, a estrutura profissional que trabalha com o jogador não pode ser confundida com a entourage. “As relações profissionais são constituídas pelos colegas de equipe, membros das comissões técnicas, dirigentes de clubes, mediadores especializados, torcedores, empresários e demais agentes do campo. Já a entourage é relativamente autônoma em relação ao campo de atuação profissional. Ela é constituída por aqueles que se relacionam de modo sistemático com os jogadores, como é o caso de seus familiares e amigos”, afirma o professor, em sua tese “Do Dom à Profissão – Uma etnografia do futebol de espetáculo a partir da formação de jogadores de futebol no Brasil e na França”.

Em muitos casos, os parceiros atuam, se não incentivando, pelo menos não coibindo as possíveis falhas do atleta. “A entourage, em geral, diz amém para tudo. Ela corrobora, concorda e bajula. É responsável por criar ‘pequenos monstros’. O sujeito desrespeita as normas e, ao invés de essas pessoas dizerem ‘olha, não faz isso porque é errado’, dizem ‘se der problema aqui, te levamos para outro clube’”, finaliza o professor.

Por fim, há a impunidade, resultado de um sistema judiciário complexo, lento e não raro ineficaz. “A lentidão da Justiça alimenta a cultura e o imaginário popular de que nada vai acontecer. Eles olham para os lados e percebem que muitos fizeram coisas erradas e nada aconteceu. Olha o absurdo que houve no Inter e no Cruzeiro, onde até agora ninguém foi preso ou punido ainda. Essa demora do Judiciário em resolver as questões alimenta a cultura da impunidade”, analisa Andrei Kampff. Ele cita os casos envolvendo dois dos maiores clubes de futebol do país, que foram alvos de investigação e várias denúncias, mas cujos trâmites se arrastam há anos, sem que os responsáveis sejam punidos. Afinal, Justiça que tarda, falha.

"Se arriscaram e foram pegos. Essa é a diferença"

Nos últimos anos, o promotor Flávio Duarte, que atua na Promotoria Especializada Criminal do Ministério Público do RS, foi o responsável por diversas investigações envolvendo o ambiente do futebol. A primeira delas foi a Rebote, que descortinou um esquema criminoso que desviou pelo menos R$ 20 milhões dos cofres do Inter entre 2015 e 2016 e deu origem a outras duas, a Prorrogação e, depois, a Sindicasta. Desde o ano passado, Duarte coordena a investigação que envolve o ex-jogador Anderson dentro da chamada Criptoshow, que já se transformou em denúncia.

O promotor Flávio Duarte tem sido responsável por várias investigações envolvendo o mundo do futebol nos últimos anos | Foto: Alina Souza / CP Memória

Por que o futebol e vários dos seus atores principais, entre os quais dirigentes e também jogadores, passou a ser investigado nos últimos anos?

O futebol, de uns tempos para cá, começou a lidar com valores expressivos. Com isso, despertou o interesse de pessoas e de grupos econômicos honestos, mas também de muitos que perceberam a oportunidade de obter vantagens ilícitas. Afinal, onde circula muito dinheiro, também circulam pessoas que não têm as melhores intenções. Então, algumas delas, atraídas pela grande quantidade de dinheiro e pela circunstância de ser uma área da sociedade até então inexplorada pelas investigações, passaram a buscar o círculo do futebol para praticar condutas delituosas e enriquecer à custa dos clubes. Por isso, todo o caso que envolve o Inter foi tão importante. Ele deu origem à primeira investigação abrangente e profunda dentro do futebol realizada no país, que acarretou até agora no oferecimento de quatro denúncias já entregues à Justiça. As pessoas que praticaram os fatos podem ter pensado que o futebol nunca seria objeto de investigação. Acho que a investigação teve um caráter educativo, de que o futebol não é alheio ao restante da sociedade.
 
Há algum fato ou característica que ligue as operações Rebote, Sindicasta e Criptoshow?

Basicamente, todas essas investigações estão ligadas, de uma forma ou outra, ao futebol. A Rebote foi a primeira, começou no Inter, mas levou a outros fatos em outros lugares, dando origem à Sindicasta. A Criptoshow é mais recente, não tinha a ver com futebol, mas acabou com o envolvimento de um ex-jogador
 
Embora não seja possível falar em nomes, o senhor já investigou vários jogadores por envolvimento em diversos crimes. Há alguma característica, na forma de agir ou na postura diante da própria investigação, que os diferencie de outros investigados?

Qualquer pessoa, não só do meio do futebol, avalia os riscos e o possível retorno de uma empreitada. Isso também inclui as pessoas de má índole, que possuem menos freios morais, que avaliam o cometimento de crimes. Se elas acham que podem se arriscar em uma manobra ilegal na perspectiva de ter uma vantagem financeira interessante, podem ir em frente dentro desta avaliação, pensando, talvez, na impunidade. A diferença de uns tempos para cá, especificamente no círculo do futebol, é que em alguns casos elas foram descobertas. Se arriscaram e foram pegas. No caso dos jogadores, é igual. E, apesar de já viverem uma situação financeira boa, quando estão propensos ao cometimento de crimes, eles pesam riscos e possíveis vantagens como qualquer outra pessoa. Se julgarem que o risco vale a pena, vão em frente. Mas, repetindo, a diferença de uns tempos para cá é que alguns estão sendo investigados e denunciados para a Justiça.
 
A demora da Justiça em analisar casos de grande repercussão, inclusive o que envolve o próprio Inter (Operação Rebote), pode passar uma sensação de impunidade?

Precisamos entender as dificuldades, principalmente nos últimos meses, em razão da pandemia, mas a Justiça ideal precisaria promover julgamentos adequados e rápidos. Quando mais tempo se passa da prática do fato em tese ilícito, mais complicado é para provar o cometimento deste fato, apesar de alguns já estarem comprovados por uma quantidade grande de documentos e provas. Além disso, a impressão que passa para a sociedade é que, depois de algum tempo, os fatos caem no esquecimento, parecem menos graves e podem gerar o sentimento de impunidade. Isso é ruim.
 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895