Por que não há gays?

Por que não há gays?

Ao contrário da grande maioria das profissões, entre jogadores de futebol masculino dificilmente alguém se assume homossexual

Por
Fabricio Falkowski

Há gays jornalistas e policiais. Há gays trabalhando como professores, advogados, médicos, engenheiros, artistas e vendedores. Há gays na construção civil, sobre um caminhão de bombeiros e pendurados em fios de alta tensão, consertando a rede elétrica de grandes cidades. Há gays em cargos dos mais elevados, como autoridades políticas. Mas não há, contrariando a lógica e todas as estatísticas, gays jogadores de futebol em grandes e médias equipes do Brasil. Ou melhor, eles existem, mas estão invisíveis, impelidos ao anonimato pelo preconceito.

Na verdade, a “ausência” de homossexuais no futebol profissional não é um fenômeno brasileiro, mas mundial. Trata-se de um reflexo de uma cultura alimentada por todos os atores deste espetáculo, incluindo os próprios atletas e também os torcedores. São raríssimos os casos de jogadores atuando em grandes ligas que “saíram do armário”. E é consenso que o primeiro a fazê-lo foi o inglês Justin Fashanu, cuja carreira desenrolou-se entre as décadas de 1980 e 1990.

Filho de uma guianesa com um nigeriano, Justin Fashanu nasceu em fevereiro de 1961. Tinha dois irmãos. Todos eles, devido às dificuldades financeiras vividas pela mãe, que fora abandonada pelo pai das crianças, foram deixados em um orfanato. O futuro jogador tinha só 3 anos quando isso aconteceu. Um tempo depois, o trio foi adotado e levado para morar em uma pequena vila de Shropham, em Norfolk, um condado no leste da Inglaterra, onde se tornaram os únicos negros do lugar. “Antes de enfrentar a homofobia, portanto, Fashanu já conhecia um preconceito tão sombrio quanto, o racismo. A Inglaterra dos anos 60 e 70 também colocava negros e brancos em lados opostos do espectro social e era nítido o avanço do conservadorismo”, pontua o jornalista João Abel em seu livro “Bicha! Homofobia estrutural do futebol”.

Aos 15 anos, Fashanu começou a treinar no Norwich City. Com menos de 18, estreou no time profissional. Depois de marcar um golaço contra o Liverpool na temporada 1979/1980, ele chamou a atenção dos maiores clubes da Inglaterra e, em seguida, acabou negociado ao Nottingham Forest, então o bicampeão da Liga dos Campeões da Inglaterra, tornando-se o primeiro jogador negro vendido por mais de 1 milhão de libras esterlinas.

Já nesta época, ele começou a ter problemas fora de campo. Passou por muitos clubes da Inglaterra e até dos Estados Unidos, já sem o mesmo sucesso. Até que, em 1990, Fashanu assumiu sua homossexualidade em entrevista ao The Sun. Na capa, o tabloide estampou “I AM GAY” (Eu sou gay) em letras garrafais, confirmando uma série de boatos que acompanharam a carreira do jogador.

Depois de assumir a sua orientação sexual, ele seguiu rodando por clubes menos expressivos, até voltar aos Estados Unidos, onde envolveu-se com outra polêmica. Acusado de estuprar um jovem de 17 anos em Baltimore, ele fugiu para a Inglaterra antes de ser preso. Escondeu-se por um mês, até que em 2 de maio pôs fim à própria vida. Em um bilhete de despedida, negou a acusação:

“Eu percebi que já havia sido considerado culpado. Não quero mais ser uma vergonha para minha família e amigos. Ser gay e uma pessoa conhecida é muito difícil, mas não posso reclamar disso. Quero dizer que não agredi sexualmente o jovem. Ele teve sexo consensual comigo e, no dia seguinte, me pediu dinheiro. Quando eu recusei, ele falou ‘espere e você vai ser só’. Se esse é o caso, eu ouço vocês dizerem, porque eu fugi? Bom, nem sempre a Justiça é justa. Senti que não teria um julgamento justo por conta da minha homossexualidade.”

A denúncia acabou arquivada por falta de provas. Fashanu suicidou-se com apenas 37 anos de idade, oito anos depois de ter assumido ser gay. Mais de 30 anos depois, ainda é o único jogador que, em plena atividade em alguma das principais ligas de futebol do mundo, assumiu publicamente sua orientação sexual.

Em sua memória, foi criada a Fundação Justin Fashanu, administrada pela sobrinha do jogador, Amal Fashanu. Foi essa entidade, inclusive, que apoiou Thomas Hitzlsperger, atleta da seleção alemã que anunciou ser gay em 2014, depois de encerrar a carreira, em entrevista à rádio Deutsche Welle. Outro caso aconteceu na Inglaterra, quando, no ano passado, o The Sun publicou carta anônima de um jogador da Premier League na qual confessa ser gay, mas não revela a sua identidade. “Sou homossexual. Escrever isto na carta já é um grande passo para mim. Apenas alguns membros da minha família e um grupo seleto de amigos sabem quem eu sou. Não me sinto preparado para partilhar com a minha equipe ou com o treinador. É difícil”, disse o atleta, até hoje anônimo. Ele continua: “Sei que pode chegar ao ponto que eu ache impossível continuar vivendo uma mentira. Se o fizer, meu plano é me aposentar cedo e sair. Poderia estar jogando fora anos de uma carreira lucrativa, mas você não pode colocar um preço em sua paz de espírito. Não quero viver assim para sempre”.

No Brasil, o único caso conhecido envolve o goleiro Messi, cuja carreira jamais alcançou o estrelato. Seu último emprego no futebol foi no Palmeira de Goianinha, do Rio Grande do Norte, em 2019. Apesar de nunca ter tido tanto sucesso por causa de suas qualidades como goleiro, ficou famoso em 2010, quando seu caso foi usado pela Revista ESPN para questionar os dirigentes da época sobre as consequências de um jogador assumir-se gay. Messi hoje tem 35 anos.

O primeiro jogador a assumir sua homossexualidade foi o inglês Justin Fashanu, em 1990, em entrevista ao The Sun. O jornal estampou “I AM GAY” (Eu sou gay) em letras garrafais, confirmando boatos que acompanharam a carreira do jogador. Fotos: Reprodução / CP

Onde estão?

De forma geral, o futebol está construído sobre um conjunto de valores extremamente masculinizados, ligados a um falso conceito de virilidade. Ou seja, segundo essa crença, um homossexual, por ser considerado frágil, não estaria apto a jogar bola. Mas isso não passa de preconceito, refutado por um ex-jogador em entrevista ao CP (reproduzida na íntegra no final da matéria). Na verdade, tudo leva a crer que os gays não assumem sua orientação sexual por medo das consequências concretas em suas carreiras.

Trata-se de uma indicação com origem estatística, matemática. Não existem dados confiáveis sobre a predominância de gays na população mundial ou brasileira, mas alguns estudos indicam que pelo menos 10% das pessoas fariam parte da sigla LGBTQIA+. Esses levantamentos demográficos de orientação sexual e identidade de gênero, entretanto, encontram diversos problemas metodológicos porque um grande número de pessoas não fala sobre o assunto, nem mesmo sob sigilo, por medo da repressão no trabalho ou na família. “A sexualidade e a experiência sexual não necessariamente estão conectadas à identidade. Ou seja, as pessoas podem ter práticas homossexuais e não se entenderem como homossexuais. Em outras palavras, elas eventualmente transam com pessoas do mesmo sexo, mas como têm uma vida pública heterossexual, não se consideram homo ou bissexuais”, pontua o professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Guilherme Gomes Ferreira.

Além disso, os dados podem ser muito diferentes conforme o método de coleta. Pesquisas virtuais, que deixam as pessoas mais à vontade, tendem a apresentar percentuais de gays, lésbicas e bissexuais muito maior do que em consultas por telefone ou pessoalmente. A diferença se explica pelo constrangimento das pessoas em admitir algo que ainda é condenado por boa parte da sociedade.

De qualquer forma, a pesquisa mais aceita por especialistas, apesar dos problemas de método, foi realizada em 2009 pela Universidade de São Paulo entrevistando pessoas em dez capitais brasileiras. Segundo ela, 10,4% dos homens que responderam se disseram gays ou bissexuais. Se apenas as séries A e B do Campeonato Brasileiro forem considerados, há atuando no país pelo menos 600 jogadores profissionais (20 clubes x duas ligas x 20 jogadores). Ou seja, estatisticamente, é improvável que só exista, neste volume populacional seres humanos, apenas um tipo de orientação sexual.

Mas a torcida também é ator importante. Com seus cânticos, muitos de natureza homofóbica, aumentam o nível de pressão sobre os possíveis gays. Além disso, não raras vezes exercem pressão sobre os dirigentes, atuando para impedir a trajetória de jogadores, em tese, gays. O caso mais emblemático no Brasil é Richarlyson. Volante com passagem por grandes clubes, ele jamais empunhou a bandeira LGBTQIA+ ou disse não ser hétero, mas ainda assim foi alvo de preconceito ao longo de toda a carreira.

Como jogador do São Paulo, foi fundamental na conquista dos últimos grandes títulos do clube, como o tri brasileiro entre 2006 e 2008. Canhoto, era um marcador implacável e, em alguns casos, violento, mas também tinha qualidade. Depois de atuar no Morumbi e chegar à Seleção Brasileira, foi transferido para o Atlético Mineiro, onde também conquistou títulos, inclusive o da Libertadores. Depois, acabou indo atuar em clubes menores. Em 2021, aos 38 anos, jogou o Campeonato Paulista da Série A3 pelo Noroeste.

Apesar da carreira de sucesso, nunca escapou das insinuações sobre sua orientação sexual. Em 2008, ele chegou a engatar um namoro com a modelo Letícia Carlos, que foi capa da revista Playboy na época. Em 2011, ela concedeu uma entrevista ao jornal O Dia na qual negou que o relacionamento tenha ocorrido para, ao mesmo tempo, proteger o jogador dos boatos e alavancar a carreira da modelo.

"Muita gente diz que foi contrato. Mas foi namoro, sim. Honesto e verdadeiro. Felizmente, ou infelizmente, não rolou sexo", disse. Letícia Carlos também admitiu que frequentemente é obrigada a responder sobre a sexualidade do atleta: "Sempre que as pessoas se aproximam de mim, a primeira pergunta que fazem é se ele é gay. Eu digo que não. Pelo menos enquanto estava comigo, não".

Apesar disso, Richarlysson enfrentou preconceito e obstáculos ao longo da vida profissional. Em entrevista a uma emissora de televisão em 2007, um dirigente do Palmeiras admitiu que ele não foi contratado pelo clube por ser gay. No próprio São Paulo, apesar das boas atuações, jamais teve relacionamento amistoso com a torcida. Depois, em 2012, a torcida Mancha Verde estendeu uma faixa na frente do CT do Palmeiras que dizia: “A homofobia veste verde”. Tratava-se de uma mensagem aos dirigentes do clube, que na época negociavam, mais uma vez, a contratação de Richarlysson. As tratativas existiam, mas foram interrompidas. Ele ficou no Atlético Mineiro e foi campeão da Libertadores. O Palmeiras, por sua vez, caiu para a Série B em 2012.

No Rio Grande do Sul, há casos de jogadores da dupla Gre-Nal que mantinham relacionamentos amorosos com pessoas do mesmo sexo. Alguns, inclusive, mantinham vida dupla. Ou seja, eram casados e tinham filhos, mas namoravam outros homens. No Inter, houve um caso em que um dono de motel na Região Metropolitana de Porto Alegre ligou para o presidente da época avisando que um dos titulares do time colorado frequentava o lugar com outro homem pelo menos uma vez por semana. No Grêmio, o caso da poltrona 36 virou lenda e motivo de provocação entre as torcidas. Nenhum jogador da dupla, entretanto, assumiu.

“O ambiente do futebol é extremamente machista, o que acaba constrangendo as pessoas que têm comportamento fora deste padrão. Essa é a realidade, mas a homossexualidade não pode ser considerada desvio de conduta ou algo pejorativo. Se o cara é profissional e cumpre sua função, não pode ser discriminado”, enfatiza o presidente gremista Romildo Bolzan Júnior. Para ele, o fato de um jogador ser assumidamente gay não poderia impedir a contratação por parte do Grêmio, mas, como qualquer outro atleta, teria de adaptar-se às regras de convívio no clube. “Cada um tem suas preferências e individualidades, mas o contexto precisa ser respeitado. Essa regra não se refere aos gays, mas a todo comportamento ou orientação. Todos os jogadores precisam respeitar o coletivo, o vestiário e o clube. Mas se o jogador gay for profissional e cumprir as suas obrigações, não teria problema em aprovar sua contratação pelo Grêmio”, segue.

Ou seja, Romildo não barraria a chegada de um reforço homossexual ao Grêmio. Claro que, isso em tese, pois uma situação hipotética como essa teria repercussões importantes na torcida, no grupo de jogadores e também nas redes sociais. “Às vezes a gente quer ser revolucionário e de vanguarda e acaba piorando a situação para o próprio jogador. Tudo precisa ser pesado”, salienta.

O colorado Alessandro Barcellos tem uma posição bastante semelhante à do colega gremista. Claro que ambos estão protegidos porque jamais estiveram frente a frente com um caso concreto. “Desde que não afete seu desempenho profissional, o que uma pessoa faz na sua vida privada e particular não interessa ao seu empregador. Se o cara jogar bem e cumprir o que é determinado pelo clube no campo e nos treinos, pode fazer na casa dele o que quiser”, reforça.

Os bastidores, já nas categorias de base, são apontados como um dos fatores que leva os gays para dentro do armário. O preconceito atua desde o surgimento do jogador, dificultando sua ascensão e chegada ao topo da carreira. Ou seja, de uma forma ou outra, o ambiente dificulta o desenvolvimento de jogadores gays, fazendo uma cruel seleção natural. “Nem eu nem o Inter fizemos questão de identificar as preferências sexuais dos nossos atletas porque o passo seguinte e importante a ser dado é a naturalização deste tema. Assim, vamos evoluir para ser uma sociedade mais moderna. Quem sabe um dia isso não será mais um tema de reportagem”, ressalta Barcellos.

De certa forma, a aceitação dos homossexuais no contexto do futebol profissional acontecerá mais cedo ou mais tarde. Não somente porque eles existem de fato, mas porque o futebol, incluindo o público, terá que aceitá-los. Foi assim com os negros, que não podiam jogar bola na maioria dos clubes até o começo do século passado, e com as mulheres, que só há poucos anos conseguiram mobilizar os grandes clubes para olhá-las como atletas e, para o futebol feminino, como um espetáculo digno dos maiores holofotes.

Também é bom lembrar que só em 1990 a Organização Mundial da Saúde (OMS) tirou a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID). Ou seja, há só pouco mais de 30 anos ser gay não é oficialmente doença. Mesmo assim, em pelo menos 70 países a homossexualidade ainda é criminalizada, com casos de prisão e até de pena de morte.

Enfim, enxergar gays no futebol profissional é mera questão de tempo, coragem e respeito. “Acho que há provavelmente pelo menos um jogador de futebol gay ou bissexual em cada time. Eles estão lá. Estou 100% certo de que é assim. Se alguém se assumisse, estou convencido de que na primeira semana haveria pelo menos cem pessoas que fariam o mesmo. O problema é que ninguém quer ser o primeiro”, afirmou, ano passado, Troy Deeney, do atacante de Watford, em entrevista a emissora britânica BBC. “Também me pergunto o motivo pelo qual muitos esperam parar de jogar futebol, rugby ou qualquer outro esporte para admitirem que são homossexuais. Acho que é algo realmente pesado para carregar durante uma carreira esportiva”, finaliza o jogador, hoje com 33 anos.

Outros esportes

No futebol feminino, as jogadoras lésbicas são acolhidas com naturalidade. A brasileira Marta, por exemplo, é abertamente homossexual. Foto: CBF / Divulgação / CP

Em geral, na comparação com o futebol, a maioria das outras modalidades esportivas aceita melhor as sexualidades dissidentes de seus atores principais. Inclusive o futebol feminino, que acolhe mulheres lésbicas com naturalidade e empatia. Ainda assim, há preconceito e casos de violência. Nas Olimpíadas, por exemplo, Douglas Souza se destacou dentro da quadra e também fora dela, atuando nas redes sociais. Abertamente homossexual, o jogador de 25 anos mostra seu namorado com alguma regularidade em seu perfil do Instagram.

Outro bom exemplo é de Carl Nassib, jogador do Las Vegas Raiders. Em junho, ele entrou para a história da Liga Norte-Americana de Futebol Americano como o primeiro jogador ainda em atividade a se declarar abertamente homossexual. “Quero aproveitar um breve momento para dizer que eu sou gay”, disse, em um vídeo publicado em suas redes sociais. “Sou uma pessoa muito reservada. Então, não estou fazendo isso por atenção. Só penso que representatividade e visibilidade são muito importantes. Espero que vídeos como esse não sejam mais necessários.” Nos dias seguintes, a sua camisa, de número 94 do Las Vegas Raiders, foi a mais vendida da NFL, superando a de outros jogadores muito mais famosos.

Antes de Nassib, houve David Kopay. O jogador de importante carreira na NFL saiu do armário em 1975, quando anunciou precocemente sua aposentadoria dos campos por causa de uma lesão e passou a ser militante da causa LGBTIA+. Outra pessoa importante na história do esporte foi Martina Navratilova, que se declarou lésbica no auge da carreira no circuito mundial de tênis e, em 2014, pediu em casamento a ex-modelo Julia Lemigova durante o US Open.

No futebol feminino, o maior ícone é Megan Rapinoe. Capitã da seleção norte-americana, não evita as manifestações em favor da comunidade gay. "Estou motivada por pessoas que gostam de mim e que estão lutando pelas mesmas coisas. Eu pego mais energia disso do que tentando provar que alguém está errado. Isso está se esgotando. Mas para mim, ser gay e fabulosa, durante o mês do Orgulho na Copa do Mundo, é ótimo", afirmou Megan em 2019.

A brasileira Marta, que é considerada a melhor jogadora de futebol do mundo, também é abertamente lésbica. Nos Jogos Olímpicos de Tóquio, ela comemorou um dos gols marcados sobre a China formando a letra T com os braços, inicial da noiva Tony Deion Pressley, que também é sua companheira de time nos Estados Unidos. Foi a primeira vez que qualquer atleta LGBTQIA+ das seleções brasileiras masculina ou feminina dedicou um gol a um companheiro, marido ou namorado do mesmo gênero.

Medo das repercussões

Na condição de anonimato, um ex-jogador de futebol gay aceitou conceder entrevista. Porém, ele nunca se “manifestou publicamente sobre o assunto” e nem pretende fazê-lo agora, por temer as repercussões em sua carreira – apesar de não atuar mais profissionalmente, ele mantém laços com o futebol. Trata-se de um atleta formado nas categorias de base de um dos grandes clubes do Rio Grande do Sul, que saiu daqui depois de conquistar a titularidade de sua equipe em Porto Alegre. Depois, jogou em outros grandes times e conquistou títulos, sem jamais assumir publicamente a orientação sexual. Hoje, ele tem mais de 40 anos e mora fora do Estado.

Ao longo de sua carreira, você conviveu com outros jogadores gays?

Claro! Como eu disse, eles existem, não são poucos e estão em todas as funções. Claro que eu convivi, mas nenhum deles admitiu ou falou sobre isso comigo. Nunca ninguém conversou comigo sobre o assunto e eu também nunca procurei ninguém para falar, mas a gente sabe que eles existem, inclusive na seleção brasileira. É uma questão lógica. Ser gay é normal. Há gays em todas as profissões. Por que não haveria de ter no futebol? Porque no futebol as pessoas precisam se esconder. É muita hipocrisia.

Você acha que isso vai mudar algum dia?

Acho que o futebol vai ser uma das últimas áreas que vai mudar. A gente percebe que o mundo está mudando e o Brasil também. Existe uma geração mais jovem que enxerga isso como uma coisa natural. Os jovens que têm 16, 18 ou 20 anos hoje um dia serão pais e certamente criarão seus filhos de outra forma. Por isso, acredito que um dia os gays poderão se assumir no futebol, mas acho que não será tão cedo.

Porque você nunca assumiu ser gay? Nem enquanto era jogador nem agora?

Eu nunca assumi nada, nunca falei sobre o assunto. A minha vida particular não interessa para ninguém. Não tenho motivo para me manifestar se sou gay ou se não sou. Não tem motivo algum para dizer por aí com quem eu saio. Eu não pergunto com quem você vai para a cama, com quem você se relaciona, então não acho certo as pessoas se interessarem pelo o que acontece com a minha vida particular. O que interessa é que nada disso atrapalhou a minha carreira.

Porque esse tema é um tabu no mundo do futebol?

Por causa da cultura do futebol. Nunca assumi ser gay e mesmo assim tive problemas ao longo da carreira de atleta. Imagina se tivesse assumido. O mesmo acontece com outras pessoas. Mas acho que é um tema que precisa ser falado. Muita gente precisa levar uma vida falsa no futebol por conta de não assumir quem realmente é. Isso é ruim. É uma vida solitária, que pode afetar outros aspectos da vida da pessoa e, inclusive, o seu rendimento como atleta. Um jogador infeliz não consegue render o que um feliz rende.

Qual é o primeiro passo?

Para começar, é preciso desconstruir a ideia de que o futebol é coisa para “macho”. Gay também pode jogar futebol de forma viril. Ser ou não ser gay não interfere na eficácia dele como jogador de futebol. Esse tipo de ideia tem que ser desconstruída. Além disso, é errada a ideia de que só porque o cara é gay vai sair atacando e agarrando todo mundo, inclusive dentro do vestiário. Gay pode se controlar dentro do vestiário sim, como qualquer outra pessoa. Isso é desinformação e preconceito puro.

A opção por não assumir a sua orientação sexual ocorreu por uma questão filosófica ou de ordem prática? Ou seja, você não assumir por acreditar que ninguém tem nada com a sua vida ou o fato de acreditar que isso atrapalharia a sua carreira pesou mais na decisão?

Não assumi pelos dois motivos. Em primeiro lugar, ninguém tem nada a ver com a minha vida. Em segundo lugar, sei que teria consequências imediatas e graves na minha carreira. Com certeza, eu não jogaria nos clubes que joguei e não construiria essa trajetória tão longa. Talvez tivesse até que abandonar o futebol. Acho que um debate sobre esse assunto é extremamente importante.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895