Poupança líquida

Poupança líquida

Produtor rural do Rio Grande do Sul enfrenta o desafio de armazenar água na propriedade para reduzir impactos das frequentes estiagens e da distribuição irregular das chuvas

Por
Danton Júnior

Castigado por duas estiagens consecutivas, o agricultor gaúcho busca alternativas para minimizar o impacto do clima. Após as frustrações das últimas duas safras – especialmente no ciclo 2019/2020 –, uma das suas principais preocupações passou a ser o armazenamento de água para uso na irrigação das lavouras. A lógica é simples: guardar o líquido como uma poupança para utilizar em momentos de escassez. Mas a concretização desse planejamento ainda enfrenta uma série de desafios no Rio Grande do Sul.

O regime pluviométrico do Estado costuma variar de 1.500 a 2.000 milímetros por ano, dependendo da região. Cada milímetro representa dez metros cúbicos por hectare. Isso significa que, do ponto de vista quantitativo, não se pode dizer que o Rio Grande do Sul seja deficitário em água – embora a Metade Norte seja mais bem servida que a Metade Sul. O problema, segundo a professora Marcia Xavier Peiter, do Centro de Ciências Rurais da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), é que a distribuição é irregular. “Há momentos em que temos déficits que, dependendo do estágio da cultura, vão provocar uma quebra maior ou menor de produção”, explica.

A alternativa, portanto, é reservar água para os períodos de necessidade. Neste aspecto, a desvantagem do rio é que ele pode não estar ligado à propriedade, além de ter volume variável ao longo do ano. “O que é garantido mesmo é aquela reserva que eu tenho dentro da propriedade”, afirma Marcia, referindo-se às barragens e cisternas. No caso das barragens, a professora ressalta que o investimento é vantajoso levando-se em conta a vida útil − há registros de algumas com 400 anos em funcionamento − e a possibilidade de múltiplos usos delas, como para a piscicultura, dessedentação animal e irrigação, entre outros.

Para construir uma barragem, a primeira coisa a ser feita é a escolha do local adequado dentro da propriedade. Também é necessário verificar se existe viabilidade, principalmente em relação ao licenciamento, e elaborar o projeto técnico para, depois das aprovações, começar a obra. A professora alerta, no entanto, que há medidas anteriores à irrigação que devem necessariamente ser adotadas na propriedade, como a adubação correta e o controle fitossanitário eficiente. “A irrigação adianta quando os outros parâmetros que vêm antes já foram conduzidos corretamenta”, resume.

O pesquisador Carlos Reisser Júnior, da Embrapa Clima Temperado, de Pelotas, observa que no Rio Grande do Sul a evapotranspiração (evaporação das superfícies) é mais baixa no inverno e mais alta no verão. Isso significa que o período ideal para “juntar” água são os meses de inverno. No entanto, em 2021 os volumes de chuva têm ficado abaixo da média, o que já acende um alerta tanto para a agricultura quanto para o abastecimento urbano.

A construção de açudes, segundo Reisser, é a principal alternativa de armazenamento de água, embora a cisterna também seja recomendada para produções menores, como no caso da horticultura. “Ter água em volumes adequados dentro da propriedade é fator fundamental para o bem-estar do produtor”, sustenta o pesquisador.

POLÍTICAS PÚBLICAS

No Rio Grande do Sul, as políticas públicas voltadas ao armazenamento de água começaram a ganhar força há cerca de 15 anos. Segundo o engenheiro agrícola Carlos Gabriel dos Santos, coordenador do Núcleo de Desenvolvimento Agropecuário da Emater, o interesse dos produtores rurais tem aumentado nos últimos anos, sustentado pela municipalização do licenciamento ambiental para obras pequenas e pela simplificação do processo para obras maiores. Neste ano, estão sendo construídos 400 açudes com recursos da Assembleia Legislativa e 200 por meio do Fundo de Recursos Hídricos.

“O produtor hoje tem muita consciência da necessidade de ter essa armazenagem dentro da sua propriedade para ter uma garantia de safra e de manutenção dos animais, tendo em vista a irregularidade de chuvas no nosso Estado”, acrescenta Santos.

Nas regiões Norte e Fronteira-Oeste, os projetos de armazenagem de água estão vinculados principalmente à irrigação de lavouras e de pastagens para o gado. Na Serra, a procura maior é do setor de fruticultura e olericultura, assim como na região de Porto Alegre e Litoral. Na estiagem ocorrida na safra 2019/2020, a produção gaúcha de soja caiu quase 45,8% e ficou num total de 10,6 milhões de toneladas. Na cultura do milho, as perdas chegaram a 30,9% e a colheita foi de 3,9 milhões de toneladas.

“Quem tem irrigação tem colheita certa”

Armazenagem de água é vista por produtor como investimento para o futuro e garantia de que eventuais estiagens não prejudicarão mais as lavouras como ocorreu nos dois anos mais recentes

Valdir Luiz Garcia decidiu usar a irrigação para garantir a alimentação das vacas / Foto: William Jean Garcia / Divulgação / CP

O agricultor Aristides João Teló, de Santa Rosa, no Noroeste do Rio Grande do Sul, vê a armazenagem de água como um investimento para o futuro. “É uma poupança natural que traz um impacto positivo, porque a água que vai embora não volta”, resume. Produtor de soja, milho e trigo, ele decidiu investir na construção de um reservatório após sofrer perdas com a estiagem ocorrida do início deste ano. A obra, que está em andamento, deve ser concluída a tempo de ser utilizada na próxima safra.

Na lavoura de milho, Teló teve perda praticamente total (avaliada pelos técnicos em 98%) nos 25 hectares cultivados. “Se estivesse pronto (o açude), poderia ter irrigado (a plantação). Quem tem irrigação tem colheita certa”, observa. Por ser uma cultura que necessita de água em abundância, o milho sofreu mais do que a soja, que deu bom rendimento ao agricultor no último ciclo.

O investimento, custeado com recursos próprios, gera uma confiança maior para a safra 2021/2022. Após dois anos de estiagem, e em meio à indefinição climática para o próximo ciclo, Teló sabe que a única coisa que está ao alcance do produtor é reservar água para a época de escassez. “Se você tem água para irrigar, você está com menos problemas. Mas se o sol permanecer mais forte, nem água vai ter”, comenta.

AÇUDE PARA PRODUÇÃO DE LEITE

A construção de açudes é uma alternativa viável não apenas para a produção de grãos, mas também para a cadeia produtiva do leite. Acostumado a ter abundância de pastagens no inverno e escassez no verão, o produtor Valdir Luiz Garcia, de Cerro Largo, na região Noroeste, decidiu fazer uso da irrigação para garantir a alimentação das 25 vacas em lactação, das raças Holandês e Jersey.

Como não pretende deixar o campo, e inclusive estimula os filhos a fazerem a sucessão rural, Garcia foi atrás de uma alternativa para minimizar o impacto do estresse hídrico que tem castigado a sua região. Hoje o produtor conta com três açudes, que, juntos, somam uma área de quase um hectare. Os reservatórios são abastecidos por vertentes localizadas próximas à propriedade. Além da irrigação, ele utiliza a água para a criação de peixes para consumo próprio.

Enquanto os açudes garantem a oferta de pastagem de tifton para os animais, a parte da propriedade que não conta com o mesmo recurso tem sido castigada pelo estresse hídrico. Entre fevereiro e março de 2020 foram cerca de 40 dias sem chuva. O clima comprometeu, na época, a safrinha de milho, cultivada com o propósito de alimentar as vacas. Mais duas lavouras do cereal foram perdidas desde então (uma de primeira safra, e a outra de safrinha). Ao mesmo tempo em que vê o preço do milho disparar, Garcia lamenta que a perspectiva de chuvas para os próximos meses não seja boa.

Não fosse a irrigação, o agricultor acredita que sua produção de leite teria caído drasticamente – hoje está em torno de 600 litros por dia. Mesmo assim, a falta de chuvas também fez com que o nível dos açudes baixasse. Na região Noroeste do Estado, as perdas da cadeia leiteira foram calculadas em cerca de 40% em razão da estiagem.

Garcia não se arrepende de ter feito o investimento. “Tendo um açude bom, tu tens água para os animais, para peixe e para a irrigação”, descreve. Porém, reclama de um detalhe. O financiamento foi feito por meio do programa Mais Água, Mais Renda, do governo estadual, que oferece subsídio de 100% para a primeira e a última prestações. A primeira foi paga em 2019, mas o agricultor ainda não recebeu o valor correspondente.

O responsável pelo Mais Água, Mais Renda na Secretaria de Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (Seapdr), Nadilson Ferreira, admite que há atrasos no pagamento, mas prevê que os recursos serão repassados. “Nos contratos de subvenção é dito que os recursos serão repassados de acordo com a disponibilidade”, observa, ressaltando que o Estado passa por restrições orçamentárias no momento.

Chuva redistribuída

Vitorino Marodin afirma que cisternas dão mais autonomia ao produtor de hortifrutigranjeiros / Foto: Luciano Zaikoski / Divulgação / CP

Para a produção em pequena escala, a construção de cisternas é uma alternativa para armazenar e reaproveitar a água da chuva. Entre os agricultores que apostaram nesta solução está Vitorino Marodin, produtor de tomates orgânicos em Passo do Sobrado, no Vale do Rio Pardo. Há sete anos, ele construiu a primeira cisterna com o objetivo de abastecer as estufas nas quais cultiva o fruto. Mais duas estruturas foram erguidas posteriormente, cada uma com capacidade para armazenar 50 mil litros – somando 150 mil litros de capacidade na propriedade.

Dependendo da temperatura, a autonomia no uso da água pode variar de 17 a 25 dias, segundo Marodin. Na estiagem de 2020, o produtor viu muitos de seus vizinhos terem perdas significativas nas lavouras de grãos. O estresse hídrico foi tão grande que ele precisou usar água dos açudes. Porém, graças às cisternas, Marodin se sente mais confiante para tocar suas atividades e colhe até 300 quilos por semana. “Tendo uma cisterna, quem trabalha com hortifrúti vai ganhar mais autonomia e não vai precisar ficar olhando sempre para o céu para ver se vai chover”, constata. As duas cisternas mais recentes foram construídas com recursos de financiamento, com prazo de dez anos para pagamento. As estruturas são feitas com um anel de ferro e revestidas com plástico. Para evitar a evaporação nos dias quentes, é colocada uma cobertura de plástico ou tela.

A decisão de investir nas cisternas veio após uma estiagem, durante a qual o poço artesiano utilizado até então não deu conta de abastecer as estufas. Antes disso, o produtor chegou a utilizar o açude como alternativa. Segundo Marodin, a vantagem com relação aos outros meios é a qualidade da água, já que a da chuva é considerada mais “pura” e sem contaminantes, o que veio ao encontro da opção pela produção orgânica. O agricultor percebe também a redução do gasto com eletricidade, já que a gravidade se encarrega de fazer com que a água chegue aos reservatórios. Esse sistema também possibilita que o desperdício de água seja mínimo.

A captação é feita por meio de calhas instaladas nas próprias estufas. Da cisterna, a água segue direto para a irrigação. “Se chove em torno de 50 milímetros, eu saio do zero para encher todas as cisternas”, calcula Marodin. Como a produção de tomates ocorre durante todo o ano, a necessidade de água é contínua. Além do produto in natura, Marodin comercializa molhos e ketchup que elabora em agroindústria própria.

A extensionista rural social da Emater de Passo do Sobrado, Ana Cláudia Miotto, diz que a cisterna é indicada para a irrigação de pequenas propriedades e manutenção doméstica, como lavagem de pisos e de áreas externas. Porém, há um fator limitante, que é a quantidade de água possível de ser armazenada, o que impede que seja utilizada nas lavouras maiores, de produção de grãos.

A cisterna pode ser feita com concreto armado, revestida de geomembrana ou com caixas d’água de volumes maiores. A Emater auxilia as propriedades interessadas em elaborar o projeto para a implantação da estrutura, levando em conta a área disponível para captar água. Ana Cláudia afirma que a procura por esse tipo de equipamento tem crescido, porém ainda abaixo do potencial. A maior demanda continua sendo por açudes.

Nascentes da propriedade rural devem ser protegidas

Pequena construção de alvenaria, com o mínimo de intervenção, possibilita o isolamento da água dos contaminantes locais / Foto: Emater / Divulgação / CP

A proteção de nascentes é uma solução alternativa para propriedades que não contam com um sistema de abastecimento de água. A Emater, que presta assistência técnica aos produtores interessados, contabiliza cerca de mil obras por ano. Segundo o geógrafo e assistente técnico estadual de Saneamento da entidade, Gabriel Katz, após a identificação do local de afloramento da água, é feita uma limpeza e, em seguida, tem início uma pequena construção de alvenaria, com o mínimo de intervenção, com o objetivo de possibilitar o isolamento dessa água dos possíveis contaminantes locais. Canos e mangueiras direcionam o líquido ao reservatório da propriedade.

O cercamento do entorno costuma ser recomendado para que se conserve a vegetação e se favoreça a regeneração natural. “A vegetação em torno da nascente condiciona tanto a disponibilidade quanto a qualidade da água”, explica Katz. A água pode ter múltiplos usos, com foco na dessedentação da família e de pequenas criações de animais e irrigação de pequenos cultivos. Mesmo que seja considerado livre de contaminantes externos locais, o líquido está sujeito a outros fatores de contaminação que precisam ser avaliados, por ser proveniente de um lençol mais superficial. A orientação é para que seja implantado um sistema de cloração para a desinfecção, visando garantir a dessedentação humana e animal. “É uma atividade socioambiental que visa garantir a saúde e a qualidade da água consumida dentro das propriedades rurais que não têm acesso ao sistema público de água, além de ser uma ação de cuidados com o meio ambiente”, resume Katz. O Conselho Estadual do Meio Ambiente (Consema) enquadra a atividade como de baixo impacto ambiental e de proteção sanitária.

Multiplicação de reservatórios

Estado incentiva a reservação de água para que produtor possa irrigar seus cultivos, criar peixes e matar a sede dos animais

Programa de Apoio e Ampliação da Infraestrutura Rural construiu cerca de 1.400 açudes desde 2017 / Foto: André Borba Afonso / Divulgação / CP

Desde 2017, o governo do Estado constrói açudes em diversos municípios gaúchos por meio do Programa de Apoio e Ampliação da Infraestrutura Rural, coordenado pela Secretaria da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (Seapdr). As obras são viabilizadas pelo Fundo de Recursos Hídricos, gerenciado pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Sema).

Segundo o engenheiro agrônomo André Borba Afonso, do Departamento de Infraestrutura e Usos Múltiplos da Água (Dinfra), até o momento foram construídos cerca de 1.400 açudes. Afonso ressalta que o armazenamento de água possui inclusive um papel social no meio rural, já que muitos jovens que deixam o campo podem optar por ficar se houver infraestrutura adequada.

Os açudes contam com capacidade de até 3 mil metros cúbicos. Entre seus usos estão a irrigação, criação de peixes e dessedentação animal. Os produtores interessados devem efetuar a inscrição junto aos escritórios da Emater.

No ano passado, o departamento assumiu também a tarefa de construir novas unidades por meio do programa do governo estadual de combate aos impactos da estiagem. Com isso foram construídos 595 açudes em 65 municípios. A segunda edição do programa aguarda o início da licitação.

O 1º vice-presidente da Fetag/RS, Eugênio Zanetti, acredita que o agricultor familiar está conscientizado da importância de reservar água na propriedade. Porém, considera que as condições para efetuar o investimento deveriam ser mais atrativas. Um aspecto que ele entende como necessário é a flexibilização da licença ambiental, já que muitas vezes, na pequena propriedade, o local apto a reservar água está em área de preservação permanente. “Um dos principais entraves em que o produtor esbarra é nas questões ambientais”, afirma. Para incentivar a instalação de um sistema de irrigação, Zanetti defende uma “política de Estado, e não de governo”.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895