Expectativas cercam o NEM

Expectativas cercam o NEM

A reforma do Ensino Médio em 2022 causa ansiedade e dúvidas entre os estudantes

Por
Vera Nunes

Público-alvo da Reforma do Ensino Médio, estudantes estão na expectativa pela mudança. Pelo calendário do Ministério da Educação, a implementação do Novo Ensino Médio (NEM) será iniciada no ano que vem, de forma progressiva, com as 1ªs séries do Ensino Médio. Em 2023, com as 1ªs e 2ªs séries. E, em 2024, completa-se o ciclo de implementação nas três séries do Ensino Médio. O modelo traz nova organização curricular, dividida em Formação Geral Básica (conteúdos obrigatórios) e Itinerários Formativos (disciplinas que podem ser escolhidas pelos alunos), e a ampliação da carga horária mínima, das atuais 800 horas para 1.000 horas anuais.

Mudança

Para a estudante Gabrieli Marasca, 14 anos, aluna do 9° ano do Ensino Fundamental da Sociedade Educacional Três de Maio (Setrem), em Três de Maio, o NEM tem uma proposta muito interessante, já que o aluno vai poder escolher o conjunto de matérias que ele quer estudar. “Dependendo da escolha das matérias, poderemos levar isso para a vida e até mesmo decidir a profissão que vamos seguir”, observa. A proposta da Setrem, conforme a coordenadora-geral Ana Cláudia Leite, foi apresentada aos alunos, no início do mês, e às famílias, no dia 18/8. “É essencial que os estudantes sejam protagonistas nas suas escolhas, amparados pela família e pela escola”, salienta. Mas como toda a mudança tem seus riscos, Gabrieli confessa inseguranças quanto ao Novo Ensino Médio. “E se eu não gostar do itinerário que eu escolhi?”, “e se eu não ficar com nenhum dos meus colegas atuais?”, “vai aumentar a carga horária, dificultar um pouco mais?”, questiona a jovem, que pretende seguir a área das Ciências da Natureza. A própria “liberdade” de escolha, reflete Gabrieli, é motivo de insegurança. “Será que vou saber escolher o melhor itinerário para mim?”, pergunta, lembrando que todas essas dúvidas causam aflição e ansiedade para que 2022 comece logo e ela veja, na prática, como tudo irá acontecer.

Evasão e abandono

Para o vice-presidente regional da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES) no RS, Alejandro Guerrero, existem preocupações muito mais urgentes do que a reforma do Ensino Médio. “Estamos em plena pandemia, enfrentando os maiores índices de evasão e abandono escolar, especialmente pelos jovens”, aponta, acrescentando ao cenário o recente veto do presidente Jair Bolsonaro à lei que amplia acesso à Internet a estudantes. “Alunos com os quais conversamos recentemente nos relatam as dificuldades de aprendizado que estão sofrendo. Alguns falam que estão ‘desaprendendo’. E isso, sim, é preocupante”, diz.

A proposta do Novo Ensino Médio (NEM), na opinião de Alejandro, no papel, é interessante, porque dá uma ideia de que o estudante pode escolher a área que mais se identifica. “Entretanto, o que foi apresentado, até aqui, é justamente a implementação de cursos profissionais que não dão conta de cumprir a promessa de ampliação e qualificação do ensino técnico no país”, argumenta. O líder estudantil acredita que o NEM não vai resolver os problemas de desigualdade entre os estudantes e a divisão entre aqueles que vão continuar estudando e aqueles que vão parar porque terão que trabalhar. “A reforma do Ensino Médio é insuficiente, do ponto de vista social: ela não vai ao cerne dos problemas centrais da educação, que são a dificuldade de acesso, permanência, aprendizagem e continuidade dos estudos”, resume Alejandro.

Debate

Sem poupar críticas ao discurso conservador, no seu entender, do ministro da Educação, Milton Ribeiro, Alejandro propõe um debate amplo sobre a necessidade de uma educação libertadora e de qualidade e que forme “seres pensantes”. Para ele, a reforma do Ensino Médio está inserida num contexto de legitimação do conservadorismo no âmbito educacional. O próximo passo, deliberado em assembleia da entidade, é aprofundar a análise na proposta de mudança e a sua aplicabilidade pelos estados, já que são os entes responsáveis pela implantação do NEM. “Vamos acompanhar, junto à Secretaria da Educação, como toda essa reforma vai acontecer na prática”, destacando como ponto positivo a ideia de recuperação de conteúdos, que foi apresentada e que demonstra uma preocupação com a aprendizagem dos estudantes.

Ensino Médio para quem?

Por Mateus Saraiva
Doutor em Educação (Ufrgs)

“Ela vai poder escrever a sua história (...)”. Ao falar de uma aluna, sob a promessa de diversos caminhos a escolher, o Ministério da Educação (MEC) lançou, dia 14/7/2021, uma peça publicitária que promete um salto de qualidade na educação brasileira. Na propaganda, apresenta, em linhas gerais, as mudanças na política de Ensino Médio (Novo Ensino Médio – NEM), e assume esta ideia de liberdade como central. E é a partir dela que proponho a reflexão: o NEM garante liberdade a quem? 

Poucos a tiveram na construção da política. A reestruturação do Ensino Médio não respeitou o tempo necessário para um projeto democrático. Proposto por Medida Provisória, MP 746/2016, que decorreu na Lei n<SC120,176> 13.415/2017, foi em sentido contrário às formulações que vinham sendo feitas. Para quem não está familiarizado com o processo dos marcos legais da educação, eles têm um trâmite mais lento do que o necessário para a aprovação de uma MP. As duas Leis de Diretrizes e Bases, de 1961 e de 1996, levaram anos até serem aprovadas. E há um bom motivo para a demora: o tempo é proporcional às diversas expectativas que a sociedade sintetiza na educação. 

A construção do NEM não respeitou esse tempo. Retomou um Projeto Lei que já não estava em discussão, de forma acelerada e sem amplo debate. Houve oposição dos sindicatos de professores, do movimento estudantil e das associações de pesquisa. Mas qual o motivo de tamanha resistência? São basicamente as mesmas duas razões que preocupam as escolas para a implementação em 2022: a concepção do NEM e a inviabilidade de implementação da política sem os devidos recursos. 

O NEM, ao voltar o conhecimento ao mercado, utiliza o trabalho de forma instrumental, sem associar teoria e prática, ignorando novos olhares para as relações estabelecidas. Em termos práticos, a grade curricular que dedica praticamente 100% dos períodos ao itinerário profissional no 3<SC120,176> ano, não garante os tempos necessários para pensar sobre o mundo em que se vive. A solução apresentada é uma disciplina, denominada “Projeto de Vida”, que promete ajudar os alunos a se tornarem empreendedores de si mesmos, auxiliando no planejamento de seus estudos. Uma lógica que individualiza o fracasso e não coloca em questão as estruturas desiguais da sociedade em que vivemos. 

Segundo ponto, possibilitar escolhas demanda volumoso aporte de dinheiro. Se a promessa do NEM é garantir flexibilidade em 40% do currículo, é preciso um gasto maior, em especial na rede estadual que tem mais de 80% das matrículas. É preciso mais profissionais da educação (o último concurso no RS foi em 2013) com atividades de formação, tempo de planejamento, remuneração condigna e em dia. Sem isso, a lei abre a possibilidade de aumentar a desigualdade entre as redes. 

Mas afinal, quem tem liberdade no NEM? São justamente os que mais têm. Seja tempo, recursos ou formação. Para as escolas com mais recursos, a liberdade; caso contrário, o mínimo possível. Sem um devido planejamento, que envolve do financiamento à avaliação da política, muito provavelmente, a flexibilidade será precariedade para a maioria dos estudantes.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895