Granjas em transição

Granjas em transição

Criação de suínos terá de passar por uma série de adaptações estabelecidas por Instrução Normativa para garantir o bem estar animal

Por
Danton Júnior

Sob pressão do mercado e de organizações de defesa animal, a suinocultura brasileira vive um momento de transição. O país passou a ter, desde dezembro do ano passado, um regramento para as boas práticas de manejo e bem-estar nas granjas de suínos de criação comercial. As gaiolas de gestação, por exemplo, estão com os dias contados. Além das novas regras, grandes redes de restaurantes, varejistas e frigoríficos já anunciaram a intenção de passar a exigir o sistema de baias coletivas, o que tem feito com que os suinocultores tenham de se adaptar ao novo momento.

Nascida de uma discussão com o setor produtivo, a Instrução Normativa (IN) 113, do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) foi publicada em dezembro de 2020. O texto conta com 54 artigos, que estão alinhados com as diretrizes da Organização Mundial da Saúde Animal (OIE). O conjunto de normas chega num momento de alta nas exportações de carne suína, que deve ser potencializado pela recente conquista do certificado internacional de zona livre de febre aftosa sem vacinação por diversos estados, entre eles o Rio Grande do Sul. O Brasil é o quarto maior produtor e exportador de carne suína do mundo, produzindo 3,963 milhões de toneladas e exportando 750 mil toneladas por ano.

Uma das mudanças mais significativas diz respeito ao sistema de alojamento de matrizes. Até então, as fêmeas eram mantidas em boxes do início ao fim da gestação, o que tem sido criticado por campanhas de diversas organizações internacionais. Agora, a manutenção destes animais em sistemas de alojamento individual está limitada a 35 dias. Após esse período, os animais devem seguir para baias coletivas. Conforme o texto, as granjas que utilizam gaiolas de gestação e gaiolas para alojamento para cachaços (suíno não castrado) terão até 1º de janeiro de 2045 para adaptar suas instalações para a gestação coletiva e baias para machos.

“Nas gaiolas de gestação, as porcas não conseguem sequer se coçar ou dar a volta no próprio corpo. Isso acaba gerando problemas articulares pela falta de movimentação”, explica a médica veterinária Carla Lehugeur Marques, que integra a Comissão de Bem-Estar Animal do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Rio Grande do Sul (CRMV/RS). Por isso, a ideia das baias coletivas é que os animais tenham espaço para caminhar e interagir uns com os outros.

A norma também traz mudanças na idade do desmame. Segundo o pesquisador Osmar Dalla Costa, da Embrapa Suínos e Aves, que participou das discussões para elaboração da IN, antes dela não havia um padrão. “Cada um desmamava na idade que achava melhor”, observa. O texto prevê que projetos novos ou ampliação de granjas devem ser elaborados levando-se em conta o desmame com média de idade de 24 dias ou mais. Dentro de dez anos, as granjas também não poderão castrar animais sem o uso de anestésicos. Já o corte da cauda, adotado para evitar mordidas, agora está limitado a um terço dela. Um dos capítulos da IN é dedicado ao enriquecimento ambiental e estabelece, entre outras exigências, que devem ser disponibilizados um ou mais materiais para manipulação, que não comprometam a saúde dos animais, a exemplo de palha, feno, cordas, correntes, madeira, maravalha, borracha e plástico.

O corte da cauda surgiu como tentativa de solucionar outro problema. Leitões mantidos em grupos, sem enriquecimento ambiental, ficavam entediados e mordiam uns aos outros. Porém, a solução adotada se tornou um transtorno, já que a cauda possui funções importantes. “Os animais abanam a cauda para espantar mosca, para se coçar e, além disso, a cauda protege a genitália das fêmeas; então existe um motivo para se manter a cauda o mais próximo do tamanho natural possível”, justifica Carla Lehugeur, do CRMV/RS.

Dalla Costa ressalta que a adequação do sistema de produção representa também uma melhor condição de trabalho para os manejadores, o que repercute significativamente nos índices de produtividade. Um exemplo de perda provocada por manejo inadequado é o embarque para transporte. O novo texto prevê que as rampas devem ter inclinação de até 25 graus. No passado, a ausência de padronização fazia com que muitas vezes os condutores tivessem de utilizar a força para efetuar o embarque. “Isso tinha como consequência uma incidência muito grande de lesões na carcaça”, lembra o pesquisador da Embrapa. “Quando os animais chegam ao frigorífico nessa situação, todas as partes que têm lesão ou fratura são retiradas pelo serviço de inspeção, o que se torna um desperdício”, salienta o pesquisador da Embrapa. No passado, segundo ele, as perdas relacionadas a problemas no desembarque de animais chegavam a 0,15%, índice que ele considera significativo frente ao tamanho da cadeia produtiva. Hoje, boa parte das empresas têm taxas ao redor de 0,05%.

 

Música para os porcos

Experiência pioneira de uma granja de Charrua chegou a ser vista com desconfiança nos primeiros tempos, mas criadores garantem que o som acalma tanto os animais quanto os tratadores

Jean Fontana, ao lado do filho, João Marcelo, e do pai, Vilceu, atribui as novas exigências a uma evolução natural da humanidade | Foto: Arquivo pessoal

Na granja Fontana, em Charrua, Norte do Estado, os suínos são criados ao som de música. Pioneira na adoção do bem-estar animal, a propriedade conta com um sistema de som no ambiente em que ficam os porcos. A ideia veio do patriarca, Vilceu Fontana, que segue trabalhando ao lado dos filhos. Fã de sertanejo raiz, ele dá preferência a esse estilo musical com o objetivo de acalmar os animais.

Segundo o filho Jean, 42 anos, a utilização da música para os suínos surgiu durante um parto difícil de ser realizado devido à agitação da fêmea. Vilceu teve então a ideia de colocar um rádio ao lado do animal. “Em minutos a fêmea se acalmou e o parto correu bem”, conta Jean. Após o episódio, o criador rumou para a cidade e encomendou um sistema de som para a granja. “Chamavam ele de louco; só que ao longo do tempo se mostrou que o ambiente calmo e com som acalma tanto o animal quanto o funcionário”, explica o filho, que se espelha no pai, idealizador do negócio.

A paixão pela suinocultura e pela música sertaneja deu origem a um episódio inusitado: em 1993, a dupla Tonico & Tinoco compareceu à granja para uma apresentação ao vivo – uma história que ficou famosa entre os suinocultores.

Mas a preocupação com o bem-estar dos animais não fica restrita à música. De modo a se adaptar à Instrução Normativa 113, a granja está em obras, em especial no alojamento das fêmeas reprodutoras, que irá migrar do sistema de gaiolas para as baias coletivas. Conforme a IN, cada matriz (gestante ou vazia) deve contar com uma área útil mínima de dois metros quadrados. “Ela passa a viver em grupo e solta, que é o que preconiza a normativa”, resume Jean. Para a alimentação dos animais, a família optou pelo sistema de mini box, em que a ração é fornecida em comedouros lineares, com divisórias individuais, por meio da utilização de dosadores (drops). Uma das vantagens é uma maior facilidade de manejo dos suínos nas baias.

Quanto ao enriquecimento ambiental, também previsto no novo regramento, a granja utiliza correntes, que servem para os leitões morderem, o que ajuda a manter os animais ocupados e evita interações negativas. Com relação à saúde e nutrição dos animais, a família de produtores trabalha visando a redução do uso de antibióticos, substituindo-os por ácidos, probióticos e minerais orgânicos.

O resultado deste conjunto de ações é percebido pelo comportamento dos animais. “Eles ficam mais calmos e mais fáceis de manejar. Não tem todo aquele estresse”, descreve Jean.

Parte do investimento na reforma foi feita com recursos próprios, e outra parte foi financiada com pagamento em até seis anos. “É um 'bem' necessário. Temos de nos adaptar ao que o mercado está exigindo”, afirma Jean. De acordo com ele, a adaptação depende muito de cada propriedade. No caso de um empreendimento novo, Jean ressalta que o custo não será mais caro em relação ao sistema tradicional, ainda que possa demandar um pouco mais de área física. “Obviamente que toda a reforma e adaptação têm um custo, mas, por outro lado, a granja que não se adaptar vai estar fora do mercado”, complementa.

Apesar do trabalho e do custo necessários para ficar dentro das normas, Jean vê a adaptação com bons olhos  e atribui as novas exigências a uma evolução natural da humanidade. “Nos últimos anos, a suinocultura teve mudanças muito grandes. Entender a velocidade das mudanças é a chave para você ter sucesso no negócio”, relata o criador.

Ao todo, a família Fontana conta com 2.600 matrizes, divididas em duas granjas. A produção anual é de 65 mil a 70 mil animais, que são destinados em sistema de integração à Cooperalfa, que, por sua vez, é cooperada com a Aurora. A cooperativa catarinense, que atua também no Rio Grande do Sul, já assumiu o compromisso de migrar do sistema de gaiolas para a gestação em baias coletivas até o ano de 2026.

O fator que parece não estar ajudando os suinocultores é o aumento nos custos de produção, provocados principalmente pela alta dos preços do milho e do farelo de soja, utilizados na alimentação animal. Uma das estratégias adotadas pela granja Fontana é o uso de grãos alternativos, como os cereais de inverno, em especial o triticale. “Assim, consigo substituir o milho e baixar um pouco o custo”, calcula Jean.

 

Matrizes em baias coletivas

Iniciado há seis anos, empreendimento localizado no Vale do Taquari está praticamente pronto para cumprir as exigências da Instrução Normativa e seus sócios já percebem que o conforto dos animais reduz gastos com medicamentos e supera o modelo tradicional em produtividade

Sócios da granja conta com tecnologia de ponta, como ambiente climatizado e sistema eletrônico de alimentação | Foto: Mauro Schaefer

Criar uma granja que contemplasse o bem-estar animal era o objetivo quando Luiz Bayer, de Westfália, no Vale do Taquari, iniciou o empreendimento, junto com dois sócios, em 2015. Na época, o suinocultor já notava um movimento do mercado em relação a essas práticas. “O consumidor final vai começar a exigir isso cada vez mais”, acredita o produtor. Assim surgiu a Agro Suínos do Vale, que hoje conta com 920 matrizes.

O modelo adotado é o “cobre e solta”, em que as matrizes são inseminadas em gaiolas e, no dia seguinte, colocadas nas baias coletivas. Cada baia abriga cerca de 70 fêmeas, com espaço médio de 2,5 metros quadrados para cada uma. “A diferença é que os animais ficam bem mais calmos”, relata Bayer. Segundo ele, os animais chegam a se deitar uns por cima dos outros, manifestando conforto com o ambiente. O criador observa que há riscos de ferimentos pelo fato de as matrizes se movimentarem mais. Mas constata que animais menos estressados demandam menos medicamentos, o que representa inclusive uma economia para o criador. “Se ela fica muito presa, manifesta bastante as estereotipias (atos como morder ferros, salivar muito, gritar etc)”, ressalta Bayer.

Para promover o bem-estar dos animais, a granja conta com a ajuda da tecnologia de ponta. A alimentação se dá por meio de um sistema eletrônico, conhecido pela sigla ESF (electronic sow feeding), que permite controlar a quantidade de ração fornecida a cada animal. Cada matriz possui um chip auricular. A quantidade de ração fornecida a cada uma delas varia conforme a idade, condição corporal e fase da gestação. A granja também conta com climatização, que é acionada em dias de altas temperaturas para que os animais não passem por estresse calórico.

De acordo com Bayer, engana-se quem pensa que o sistema de baias coletivas é menos produtivo do que as gaiolas. Em muitos casos, inclusive, o desempenho é superior ao modelo tradicional. Os animais produzidos pela Agro Suínos do Vale são abatidos no frigorífico da Languiru, em Poço das Antas. A granja é uma das 20 em sistema de integração com a cooperativa, sendo que algumas delas ainda precisam se adaptar às novas exigências. No caso da Agro Suínos, o único ponto a ser alterado é evitar o corte da cauda dos leitões, que hoje é executado em um terço.

 

“Tem que ser um bem-estar que o consumidor queira pagar por ele”

Indústria já adota protocolos, destaca Santin | Foto: Edi Pereira/Divulgação/CP

Adaptação sem remuneração, diz Folador | Foto: Mauro Schaefer

Uma das discussões feitas pelos criadores de suínos diante da IN 113 foi a possibilidade de que a atividade de alguns deles ficasse inviabilizada com as novas exigências. O presidente da Associação de Criadores de Suínos do Rio Grande do Sul (Acsurs), Valdecir Folador, acredita que isso não deverá ocorrer em grande escala, somente em casos pontuais. “Concordemos ou não, não temos muito o que fazer a não ser ir colocando em ordem aquilo que precisa ser colocado nas granjas”, admite. O dirigente considera que a adoção das medidas pode ser importante para a manutenção de mercados, mas ressalta que o suinocultor não é remunerado para se adaptar às exigências. “O produtor tem que se adequar pela vontade do mercado e do consumidor”, define.

A indústria, por sua vez, alega que já está adotando protocolos relacionados ao tema. O presidente da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), Ricardo Santin, afirma que o bem-estar animal deve ser respeitado “dentro das regras possíveis”, equilibrando esses preceitos com a necessidade de levar comida à mesa do consumidor. “Tem que ser um bem-estar que o consumidor queira pagar por ele, mas, mais do que isso, um bem-estar que tenha base em ciência, onde o frango e o suíno possam ter seus movimentos naturais, mas possam ser protegidos também”, afirma, citando como exemplo a necessidade de aplicar medicamentos em caso de doenças e o risco sanitário para animais criados soltos.

 

Entidades criticam os prazos

Organizações de defesa do bem-estar animal elogiam a criação de regras para garantir conforto aos suínos, mas entendem que o período de adaptação das granjas deveria ser menor

Eliminação de situações de estresse, dor e sofrimento para os animais é meta das novas normas e também exigência crescente dos mercados | Foto:

A publicação da Instrução Normativa 113 foi motivo de comemoração entre entidades que defendem o bem-estar animal, porém os prazos para adaptação são considerados longos por essas organizações. Em alguns itens, a obrigatoriedade começa a vigorar somente em 1º de janeiro de 2045. A definição desses prazos foi uma demanda do setor produtivo. O entendimento é de que algumas das novas regras irão exigir mudanças na estrutura física das granjas, o que irá demandar tempo para adaptação.

“O problema não é o resultado final, é o tempo que vai levar para ser atingido”, afirma a veterinária Carla Lehugeur Marques, da Comissão de Bem-Estar Animal do Conselho Regional de Medicina Veterinária (CRMV/RS). De acordo com ela, o regramento é permissivo ao prever práticas como o corte da cauda e a gestação em gaiola por alguns anos. “São coisas que provocam sofrimento nos animais, causam dor e desconforto e ainda são aceitas”, aponta. Mesmo assim, Carla considera que a IN é melhor do que o que se praticava até então. Por outro lado, a veterinária observa que muitas empresas já estão adotando procedimentos de bem-estar por conta própria, ao enxergar a possibilidade de ampliar mercados.

“Existem regras internacionais de bem-estar animal que precisam ser cumpridas pelos produtores e que são demandas dos mercados com os quais o Brasil tem parceria”, acrescenta.

A representação da World Animal Protection no Brasil concorda com as ponderações de Carla. A entidade, que participou da criação da IN, lançou em 2017 a campanha Mude a Vida dos Porcos. “As novas regras não contemplam todas as mudanças que queremos, mas  são um marco para o bem-estar dos milhões de animais criados no Brasil”, reconhece o gerente de campanhas de animais de fazenda, José Rodolfo Ciocca. Segundo ele, os prazos estabelecidos são longos, mas ainda assim o Brasil tem chance de promover mudanças “sem precedentes”, já que se trata da primeira normativa para a criação de suínos no país.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895