Soluções vindas do gelo

Soluções vindas do gelo

Pesquisas feitas na Antártica podem beneficiar a agropecuária brasileira com cultivares mais resistentes ao frio e às estiagens, defensivos menos tóxicos e medicamentos veterinários mais eficazes

Por
Carolina Pastl*

Desenvolvimento de pesticidas e herbicidas menos tóxicos, formulação de medicamentos veterinários mais eficientes, criação de plantas geneticamente modificadas mais resistentes ao frio e à escassez de água e nutrientes. Esses são alguns dos avanços científicos já sinalizados por uma pesquisa voltada ao agronegócio que está entre as 20, de diversas áreas, que o Brasil faz na Antártica. A divulgação do andamento e dos resultados já existentes dos estudos ocorreu no início deste mês, durante o minicurso de inverno “Regiões Polares e Relações Internacionais”, promovido pelo Grupo de Pesquisa em Relações Internacionais e Meio Ambiente (Gerima) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs) e pelo centro de pesquisa da Earth System Governance  no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB).

Iniciada em 2018, após ser aprovada pelo Comitê Científico de Pesquisa Antártica, a pesquisa denominada “Mycoantar” busca fungos que são encontrados somente no Sul do planeta para servir como insumo para medicina, indústria e agronegócio. “Apesar da paisagem parecer monótona, a Antártica tem uma rica biodiversidade de micro-organismos que são adaptados a situações extremas e cujos genes podem ser úteis”, justifica o coordenador do trabalho, Luiz Henrique Rosa, que é professor de microbiologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Professor Luiz Henrique Rosa e, ao fundo, a nova Estação Comandante Ferraz, na Antártica | Foto: Arquivo pessoal

No caso da linha de pesquisa voltada ao agronegócio, Rosa trabalha em três frentes. A primeira é a criação de pesticidas e herbicidas menos tóxicos que o glifosato e mais eficientes contra a doença da ferrugem asiática da soja. No caso do defensivo, que é utilizado comumente em ervas daninhas em lavouras de soja e milho, a toxicidade é o que mais preocupa os estudiosos. “Nossa ideia, então, é desenvolver um produto natural que se assemelhe à eficiência do químico”, explica o pesquisador.

Já em relação à doença da soja, o problema é a sua alta proliferação. Na safra 2020/2021, por exemplo, 138 de 376 casos registrados ocorreram no Rio Grande do Sul, de acordo com o Consórcio Antiferrugem. “O fungo, que é o causador da doença, precisa de água para infectar”, esclarece a pesquisadora da Embrapa Soja, Cláudia Godoy. Na safra 2016/2017, uma pesquisa do Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, vinculado à Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Cepea/Esalq/USP), expôs uma das grandes dimensões do problema ao mostrar que o custo dos produtores de soja com fungicidas foi de R$ 8,3 bilhões, sendo que 96% gastos foram para o controle da ferrugem. Caso não usassem fungicidas, a produção cairia em 30%.

Até o momento, a equipe de Rosa já coletou amostras de cerca de 30 micro-organismos em neve, gelo, solo e plantas e testou se havia atividade biocida em meio de cultivo, ou seja, se os fungos inibiam realmente a ferrugem ou o crescimento de erva daninha. Se inibissem, significaria que seriam capazes de produzir substâncias fungicidas ou herbicidas. “Já temos vários fungos identificados; agora estamos caracterizando as substâncias purificadas para testar sua efetividade”, explica o pesquisador, que diz que, até o momento, foi detectada a inibição máxima de 25% da ferrugem asiática e de 100% de ervas daninhas.

A segunda frente da pesquisa quer desenvolver plantas geneticamente modificadas mais tolerantes ao frio e à escassez de água e nutrientes. “Existem plantas que ficam durante seis meses debaixo da neve e sobrevivem, então tive a ideia de identificar quais genes são responsáveis por essa resistência para tentar enxertá-los numa planta”, contextualiza Rosa. O estudo já sequenciou o genoma de dois fungos e está procurando genes com essas características. Segundo o pesquisador, a ideia do trabalho é reduzir prejuízos gerados por estiagens e evitar o desmatamento de áreas nativas. No Rio Grande do Sul, a última estiagem ocorreu na safra 2019/2020, quando a produção de soja caiu 42% e a de milho grão 28%, fechando em 10,6 milhões e 4,4 milhões de toneladas, respectivamente, conforme levantamento da Emater/RS-Ascar.

A terceira frente é a que está mais próxima da consolidação de um produto. O trabalho dela começou quando, em uma dessas caracterizações de fungos, se encontrou uma levedura com atividade probiótica. Desde então já foram feitos testes em camundongos que indicaram que a substância consegue controlar doenças bacterianas, resultados que foram publicados em artigo científico, em março. “Nossa ideia agora é fabricar um medicamento de uso veterinário que regule a microbiota animal”, afirma Rosa, que estima que o produto chegue ao mercado em um ano e meio.

Colônias de fungos antárticos estão no foco dos trabalhos | Foto: Luiz H Rosa / Divulgação

No entanto, em relação às duas primeiras frentes, Rosa admite que não há previsão de conclusão dos trabalhos. Muitos pesquisadores apontam como problema do Programa Antártico Brasileiro (Proantar) a falta de investimento público a longo prazo. No caso de Rosa, que coletou mais de 15 mil fungos do continente, o contrato financeiro termina no ano que vem. “Se eu quiser seguir com o projeto, terei que participar de outro edital, quando abrir”, esclarece. O Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) não tem previsão de quando haverá novo edital.

De acordo com levantamento feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), entre 2008 e 2017, o Brasil investiu quase meio bilhão de reais na Antártica. No entanto, a distribuição dos recursos não foi uniforme no período. O principal investimento feito foi a reconstrução da Estação Comandante Ferraz, destruída por um incêndio em 2012.

O Proantar

O Proantar, desenvolvido pela Marinha Brasileira em parceria com o MCTIC, foi lançado em 1982 para a exploração científica da Antártica. Desde então, instituições de pesquisa podem participar do programa a partir de editais que são lançados conforme a disponibilidade financeira do governo federal. Caso o trabalho inscrito seja aprovado, os pesquisadores coletam e fazem análises de suas amostras tanto na Estação Comandante Ferraz como a bordo do navio polar Almirante Maximiano, que é uma espécie de laboratório flutuante.

 

Evidências promissoras no combate ao cancro cítrico

Pesquisadora Daiane Cristina Sass, da Unesp, busca micro-organismos capazes de combater doenças de cultivos agrícolas | Foto: Divulgação Svalbard Global Seed Vault

Na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), uma pesquisa iniciada em 2016 com fungos coletados da Antártica já tem apresentado resultados sólidos. O estudo, coordenado pela professora do Instituto de Biociências da Unesp Daiane Cristina Sass, comprovou que esses organismos podem combater doenças causadas por bactérias na agricultura, como o cancro cítrico. Neste caso específico, o composto analisado com concentração de 25 microgramas por mililitro inibiu 90% do crescimento bacteriano in vitro e reduziu em até 75% as lesões das folhas após 40 dias. “São resultados muito promissores para a formulação de um futuro biodefensivo”, afirma a pesquisadora.

Ainda que não existam medidas de controle capazes de eliminar completamente o cancro cítrico, o principal método de combate é a aplicação de compostos de cobre nos pomares por meio de pulverizadores. “O problema é que o cobre pode se acumular nos frutos, no solo e nas águas e contaminar todo o meio ambiente; e é por isso que buscamos novos compostos que sejam menos prejudiciais ao ser humano e ao meio ambiente”, explica Daiane.

A doença, que é causada por bactérias do gênero Xanthomonas, gera lesões em laranjas, limões e tangerinas, prejudicando a aparência e as vendas das frutas in natura. No Rio Grande do Sul, a engenheira agrônoma do Escritório Municipal da Emater/RS-Ascar de São Sebastião do Caí, Katia Huber, relata que, atualmente, o prejuízo do cancro é insignificante. Mas no passado muitos citricultores deixaram de cultivar laranjas por causa da doença.

Na fase inicial do estudo foram cultivados alguns fungos retirados de um banco com mais de 1,5 mil micro-organismos isolados e coletados pela equipe da professora Lara Durães Sette ao longo de quatro expedições do Programa Antártico Brasileiro (Proantar), entre 2013 e 2015. Depois de 20 dias, verificou-se que os fungos produziram substâncias. Foram separados, então, os organismos dos respectivos líquidos, e esterilizados os primeiros para evitar contaminações. Em seguida, os líquidos foram colocados em contato com bactérias e se analisou a atividade de cada amostra.

Uma vez identificados os extratos com ação contra as Xanthomonas, procurou-se saber quais eram os compostos químicos presentes que lhes conferiam a ação antibacteriana. Esta é a etapa atual da pesquisa, que tem purificado e identificado alguns compostos que demonstraram maior bioatividade. “O mais promissor até agora foi aquele em contato com a bactéria do cancro cítrico que precisou de concentrações bem baixas para agir”, conta Daiane.

A próxima etapa do trabalho será fazer testes de toxicidade e de viabilidade do composto para aplicação no campo. “Iremos analisar se mesmo com sol, chuva e vento o produto surte efeito”, contextualiza a pesquisadora. Além disso, ela conta que já está em contato com empresas interessadas em continuar a pesquisa com este futuro biodefensivo.

A pesquisa tem apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

 

“Fenômenos tensos vão ganhar envergadura e impactar o agro”

A Antártica também é uma região muito procurada por pesquisadores por conta da sua condição geográfica. Neve e gelo são fundamentais para o resfriamento da água e do ar e, por isso, têm sido apontados por muitos estudiosos como indicadores do agravamento do aquecimento global. No Estado, o climatologista e diretor substituto do Centro Polar e Climático (CPC) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Francisco Eliseu Aquino, que também participou do minicurso de inverno, tem analisado ocorrências climáticas locais em associação com a Antártica nos últimos anos e traçado algumas perspectivas para o futuro. “Fenômenos tensos como a seca devem ganhar envergadura, o que, com certeza, impactará o agro”, resume.

Chuvas intensas, ciclones e estiagens prolongadas estão nas perspectivas climáticas do Rio Grande do Sul nos próximos anos. “A precipitação esperada para um mês inteiro ocorrerá em um ou dois dias; no restante, haverá estiagem”, projeta Aquino. O problema é que a chuva concentrada não recuperará o solo que estava seco, explica o pesquisador, já que este não conseguirá absorver tamanha quantidade de água em tão pouco tempo. Como consequência dessa situação, o Rio Grande do Sul deverá aprender a conviver com um solo mais seco, que reduzirá a capacidade produtiva da cadeia agropecuária, e frequentes erosões, que poderão culminar na degradação de terras agrícolas.

Ainda que o Estado viva eventos climáticos extremos como a estiagem de tempos em tempos, o problema tem aparecido de forma mais frequente nos últimos tempos. Em 20 anos, a agropecuária gaúcha enfrentou pelo menos cinco períodos de severa escassez de chuva. “O planeta naturalmente passa por períodos de aquecimento e resfriamento, motivados pela condição atmosférica da Antártica e do Ártico ou dos trópicos, mas o atual aumento da temperatura média no planeta é antropogênico”, avalia Aquino. “O que não aqueceria em 2 mil anos está acontecendo em 100”, pontua, ainda.

No ano passado, a temperatura média global ficou 1,2ºC acima do nível pré-industrial, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), indicativo “perigosamente próximo” do limite de 1,5ºC defendido por cientistas para evitar os piores impactos das mudanças climáticas.

 

Garantia para futuras gerações

No Ártico, um cofre guarda sementes de diversos países do mundo, inclusive o Brasil, como medida de segurança alimentar para o caso de o mundo enfrentar catástrofes naturais ou antropogênicas

Rosa Lía Barbieri, da Embrapa Clima Temperado, no depósito de Svalbard, considerado uma espécie de backup da produção mundial de alimentos | Foto: Arquivo pessoal

Ao mesmo tempo que é fonte de matéria-prima para o desenvolvimento de produtos agropecuários, o gelo também pode servir como um meio para conservar o futuro da alimentação do planeta. Foi dentro desta lógica que a Embrapa enviou, pela segunda vez, no início do ano passado, 3.438 variedades de sementes ao Banco Mundial de Sementes de Svalbard, localizado no arquipélago Ártico de mesmo nome. A remessa brasileira continha sementes crioulas de arroz, milho, pimenta, cebola, abóbora, pepino, melão e melancia da agricultura familiar de todo o país, inclusive gaúcha. O envio ocorreu junto com outras 35 instituições de diferentes países e foi o maior até o momento, já que totalizou 60 mil amostras, cada uma com cerca de 500 sementes.

Sementes são lacradas antes de entrarem no cofre | Foto: Divulgação Svalbard Global Seed Vault

Conhecido como “o cofre do fim do mundo”, o depósito foi criado pela Noruega há 13 anos para servir como um último “backup” de produção de alimentos em caso de catástrofes naturais ou antropogênicas, como mudanças climáticas ou pandemias. “Assim como acontece conosco, as plantas também são atacadas por vírus, bactérias e fungos que, ao se tornarem resistentes ao manejo adotado pelo agricultor, podem dizimar plantações e variedades genéticas”, exemplifica a bióloga e pesquisadora da Embrapa Clima Temperado, de Pelotas, Rosa Lía Barbieri, que integra o Painel Consultivo Internacional do cofre.

O investimento de 9 milhões de dólares aproveitou as escavações de uma antiga mina de carvão para construir toda a instalação, envolta por uma rocha sólida. As três câmaras onde ficam as sementes se localizam a 100 metros da única porta. O túnel fica 130 metros acima do nível do mar e é à prova d’água. O ambiente é refrigerado a −18°C. Há ainda geradores, mas, caso aconteça algum problema elétrico, o montante de gelo e neve que naturalmente recobre o silo consegue manter os produtos ainda viáveis em uma temperatura média de −4°C. “A baixa temperatura aliada a uma baixa umidade e ao correto envelopamento das sementes mantém suas capacidades germinativas por séculos”, explica Rosa.

Governo norueguês aproveitou escavações de uma antiga mina de carvão para construir toda a instalação do cofre | Foto: Divulgação Svalbard Global Seed Vault

Os depósitos são totalmente gratuitos e mantêm o título de propriedade da instituição depositante, que arca com o custo da caixa e do seu envio. Enquanto isso, o Ministério da Agricultura da Noruega, junto com o Nordic Genetic Resource Center (Nordgen) e o The Crop Trust, financiam a manutenção do silo.

Hoje, o local conta com um terço de todas as variedades de alimentos mais importantes do mundo, distribuídas em 1,1 milhão de amostras de 87 instituições, sendo que a única brasileira é a Embrapa. Como ainda há capacidade de abrigar mais dois milhões de amostras, a Embrapa planeja enviar mais sementes no início do ano que vem, desta vez nativas, como de maracujá e caju.

*Sob supervisão de Elder Ogliari

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895