Sucessão high-tech

Sucessão high-tech

Atraídos pelas tecnologias, jovens optam por permanecer ou retornar ao campo e modernizar a propriedade

Por
Danton Júnior

A nova geração de produtores rurais controla as atividades da fazenda na palma da mão, pela tela do smartphone. Diferentemente dos seus pais, que habituaram-se a trabalhar em tratores sem cabine e a ordenhar vacas manualmente, os nativos digitais (termo usado para designar aqueles que nasceram quando já existia a internet) encontram na agricultura 4.0 um atrativo para permanecer no campo. É fator decisivo para isso o conjunto de tecnologias disponíveis, tanto no setor de máquinas agrícolas quanto nos aplicativos, que contribui para aumentar a eficiência da atividade e reduzir a penosidade do trabalho.

Segundo a última edição do Censo Agropecuário, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a faixa etária dos 25 aos 35 anos representa 9,48% da população rural. É ela quem melhor aproveita o avanço da conectividade no meio rural. A 8ª Pesquisa ABMRA Hábitos do Produtor Rural, a cargo da Associação Brasileira de Marketing Rural e Agronegócio (ABMRA), divulgada neste ano, demonstra que o uso do smartphone entre os produtores passou de 61% em 2017 para 94% em 2021.

A adoção de ferramentas como GPS, máquinas com telemetria, aplicativos de gestão e monitoramento de animais tem permitido o controle de atividades a distância e o aumento da eficiência do setor agropecuário, que alcançou sucessivas safras recordes nos últimos anos. Tais ferramentas permitem ao produtor acompanhar, por meio do aparelho celular, o desempenho das lavouras, a movimentação das máquinas e a sanidade do rebanho mesmo estando distante da propriedade. Em grande parte dos casos, a mudança é implementada por jovens, muitos dos quais com formação universitária, que contribuíram para tornar a atividade menos braçal e mais relacionada ao toque em uma tela.

A emergência das novas tecnologias transformou o produtor do presente em um gestor de dados, graças à grande quantidade de informações que são coletadas na propriedade por meio de diversos dispositivos. “Essas ferramentas transformaram as fazendas em empresas, então a gestão ficou muito mais importante”, analisa o presidente da Associação Brasileira de Agricultura de Precisão, Marcos Ferraz. Em razão disso, o trabalho do jovem rural, hoje, é muito mais intelectual do que braçal, principalmente levando-se em conta que muitos deixaram o campo para estudar e retornaram depois de formados. Neste sentido, uma tecnologia que está ganhando espaço, e que pode representar uma “virada de chave”, segundo Ferraz, são os novos tipos de análise amparados na inteligência artificial.

“O jovem busca ficar no meio rural, mas com uma melhor qualidade de vida e com mais tempo disponível”, resume a secretária-geral da Federação dos Trabalhadores na Agricultura na Agricultura no Rio Grande do Sul (Fetag/RS), Jaciara Müller. De acordo com ela, eram comuns os relatos de pais orientando os filhos a procurar emprego na cidade, de modo a não submeter-se a um trabalho pesado. Porém, o avanço tecnológico tem alterado esse cenário – inclusive por oferecer alternativas de comercialização de produtos do campo pelas redes sociais durante a pandemia da Covid-19.

Mais do que incentivar a permanência ou retorno dos jovens, as novas tecnologias podem servir para redefinir os papéis no âmbito familiar. Segundo o professor Glauco Schultz, dos programas de pós-graduação em Agronegócios e Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), ainda há uma escassez de estudos sobre o tema na academia, mas é possível notar que as ferramentas digitais permitem que os jovens assumam uma posição de destaque dentro da propriedade. “As novas tecnologias proporcionam um ambiente favorável ao empreendedorismo, aos novos negócios na agricultura, com os jovens liderando esse processo”, avalia.

Na opinião de Schultz, esse processo tende a favorecer a comunicação no âmbito familiar e permitir que se discuta a distribuição dos ganhos. “As tecnologias podem trazer um ambiente favorável para abrir esse universo para a mudança”, afirma o professor, referindo-se a conflitos geracionais e de gênero. Na agricultura familiar, de acordo com Schultz, há uma parcela que tem conseguido adotar as novas tecnologias na propriedade, porém a realidade do segmento não pode ser vista de forma homogênea, uma vez que grande parte dos produtores ainda não tem acesso a todas as inovações.

 

No rumo da inovação

Agrônomo decidiu administrar uma propriedade rural em Horizontina por saber que pode contar com a tecnologia que facilita o trabalho e melhora os resultados da lavoura

Ames, 31 anos, prevê que as atividades no campo serão mais baseadas em dados e menos no empirismo | Foto: Arquivo Pessoal

Pela tela do smartphone, Eduardo Henrique Ames, 31 anos, manuseia dez aplicativos relacionados à agricultura. Os softwares permitem, entre outras coisas, que sejam visualizadas imagens de satélite da propriedade que ele administra em Horizontina, no Noroeste do Estado. Isso possibilita definir as taxas variáveis de insumos que são aplicados em cada talhão da lavoura de 200 hectares. As máquinas utilizadas no campo contam com tecnologia de big data, que permite gerar mapas para facilitar o planejamento da safra seguinte.

Não fosse pela tecnologia, Ames teria optado por outra profissão. “Provavelmente trabalharia em uma multinacional, como representante de vendas”, afirma o jovem, que é formado em Agronomia pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Ele não veio de uma família de agricultores – o pai é engenheiro mecânico e a mãe professora aposentada. Foi a possibilidade de trabalhar em uma agricultura cada vez mais digitalizada que atraiu Ames para o campo. Ele assumiu a propriedade, localizada a 15 quilômetros da cidade, após uma oportunidade de negócio surgida no ano passado. Metade da lavoura é destinada à soja  e a outra metade ao milho. Em janeiro, a soja safrinha é semeada na resteva do milho.

“Sempre gostei dessa lida fora de quatro paredes”, justifica o agricultor. Mesmo tendo crescido na zona urbana, Ames sabe das dificuldades que os agricultores do passado enfrentavam quando a atividade era mais braçal. “Antigamente era tudo mais sofrido; hoje a gente brinca de videogame dentro do trator”, compara. Pelo smartphone, Ames consegue acompanhar toda a operação dos tratores em tempo real, incluindo a quantidade de óleo diesel usado e se estão trabalhando ou ociosos.

Por meio de imagens de NDVI (sigla que pode ser traduzida como Índice de Vegetação da Diferença Normalizada), são montadas as zonas de manejo, o que define as taxas variáveis de aplicação de sementes e de adubo. Já os tratores contam com tecnologia que permite documentar as informações da lavoura. O mais completo deles possui câmbio automático e define qual a melhor rotação de trabalho para ser mais econômico. Todos contam com cabine e ar condicionado. A plantadeira informa ao operador quanto de semente e de adubo estão caindo na lavoura e se há algum problema operacional que possa ser corrigido. Com mais tecnologia embarcada, as máquinas também geram menos gastos com manutenção e trabalham mais horas no campo. Para aprender a manejar as novas ferramentas, o agricultor recorreu a tutoriais disponíveis na internet.

O resultado da tecnologia pode ser observado não apenas na redução da penosidade do trabalho, mas também no desempenho da lavoura. Na última safra, houve um aumento de 20% a 25% de produtividade. Mas o principal resultado, segundo Ames, foi a redução nos custos, o que se tornou ainda mais importante frente à restrição hídrica que a região enfrentou recentemente. Ao analisar de forma separada cada talhão da lavoura, o agricultor calcula que conseguiu reduzir aproximadamente três sacos de 150 quilos de adubação por hectare. Para a próxima safra, a meta é baixar ainda mais os custos.

Apesar dos avanços recentes, a qualidade da internet no meio rural continua sendo um obstáculo à conectividade no campo. Segundo Ames, isso dificulta o monitoramento em tempo real das máquinas e a comunicação dele com os funcionários. “Às vezes é preciso se deslocar para passar alguma informação simples”, constata.

Isso não impede que o jovem vislumbre um futuro cada vez mais digital para a agricultura. Na avaliação dele, a atividade será mais baseada em dados e menos no empirismo, e as pessoas serão mais profissionais e mais abertas à inovação para continuarem competitivas.

Na lógica de uma produção verticalizada, que renda mais com a mesma área, Ames vê crescer também a pressão pelo uso racional dos insumos e por uma produção ambientalmente eficiente. “Acredito que logo vai haver remuneração para o produtor que fizer uma agricultura de baixa emissão de carbono”, prevê.


Informações a distância

Aos 25 anos, Isola é graduado em Zootecnia e moderniza a produção de leite com novo métodos de controle | Foto: Arquivo Pessoal

A adoção de tecnologias de ponta no setor agropecuário vai muito além da produção de grãos. No setor leiteiro, que tem sofrido com a saída de produtores da atividade, as novas ferramentas também ajudam a garantir a sucessão rural. Isso é confirmado, entre outros casos, por José Victor Isola, 25 anos, que participa do dia a dia das atividades da Fazenda Ponderosa, em Sant’Ana do Livramento, administrada pelo pai, José Pedro. A propriedade conta com 70 vacas em lactação, todas da raça Holandês.

Graduado em Zootecnia, o jovem foi o responsável por levar à fazenda algumas das tecnologias que foram incorporadas às atividades. A mais recente delas é o monitoramento da condição das vacas por meio de um colar colocado no pescoço delas. O sistema está em fase de implantação na propriedade. O colar coleta informações do animal, como a ruminação e o estresse térmico. Esses dados são enviados para uma antena, em tempo real, e podem ser acessados por meio de um aplicativo de smartphone. “Pelo celular eu consigo saber o que essa vaca está fazendo, quanto ela está ruminando e se ela está caminhando”, conta José Victor.

Com base nessas informações, os algoritmos conseguem prever, por exemplo, se a vaca está no período do cio, o que indica que chegou a época de ser inseminada. Além disso, o sistema pode indicar, com base na ruminação, se algum animal foi acometido de enfermidade. “Quem vai ao supermercado comprar leite não tem a mínima noção do que a gente gera de informação e das decisões que precisamos tomar no sistema de produção de leite”, comenta o produtor. Boa parte dessas informações, que incluem a data em que a vaca foi inseminada ou quando ela deve tomar as vacinas, são controladas por meio de aplicativos. Antigamente, o sistema utilizado era uma planilha de Excel. Outro benefício trazido pela evolução tecnológica é a biotecnologia, que tem permitido, por exemplo, fazer uso do sêmen sexado, o que permite produzir um percentual maior de fêmeas.

A ordenha, que no passado se destacava pela penosidade, é um exemplo da evolução tecnológica da atividade leiteira. Na Ponderosa, o sistema utilizado é o espinha de peixe, onde oito vacas são colocadas de cada lado do fosso. O leite é canalizado diretamente para o resfriador.

Segundo José Victor, o conjunto de tecnologias disponíveis hoje em dia pesou na sua decisão de permanecer no campo depois de concluir a faculdade, bem como sua paixão pela atividade. Na avaliação dele, a produção leiteira continua sendo uma atividade árdua, porém mais facilitada pelas novas ferramentas. “Quanto menos tu sofres, mais vontade tu tens de permanecer na atividade”, resume.

O presidente da Comissão Jovem da Raça Holandês no Rio Grande do Sul, José Almeida, entende que as novas tecnologias na pecuária leiteira têm levado tanto ao aumento da produtividade quanto despertado a vontade dos jovens de permanecer no campo.

Ordenha robotizada

Outro exemplo de tecnologia de ponta adotada no leite é a ordenha robotizada, já presente em alguns municípios da Serra Gaúcha. O próprio sistema coloca as teteiras nas vacas de forma automática e faz a coleta. “Imagina tirar o leite a mão de 100 vacas por dia, de manhã, de tarde e de noite; com a ordenha robotizada, o processo todo é feito em duas horas”, compara Almeida. No entanto, ele lamenta que o custo ainda seja um obstáculo à popularização da tecnologia e acredita que nos próximos anos, com a possível concorrência de novas empresas, o equipamento possa ficar mais acessível.

Conforme o Relatório Socioeconômico da Cadeia Produtiva do Leite, elaborado pela Emater/RS-Ascar em 2019, mais de 98% da ordenha no Rio Grande do Sul é feita pelos sistemas de balde ao pé/de tarro, com transferidor de leite ou canalizado. A ordenha manual representava, na época, apenas 1,61% da atividade. Já a ordenha robotizada é registrada em somente 0,06% dos casos.

 

No controle da soja, milho e trigo

“Hoje há mais conforto, é mais fácil”, avalia Gregori, de 22 anos, que pretende cursar Agronomia | Foto: Arquivo Pessoal

O técnico em agropecuária Eduardo Gregori, 22 anos, de Sede Nova, viu a maior parte dos seus amigos migrarem do campo para a cidade. “Jovens, no campo, não tem mais. É uma meia dúzia de ‘gato pingado’”, resume. ​Contrariando a tendência, ele optou por ficar na propriedade, onde atua na produção de soja, milho e trigo ao lado dos pais, Carmo e Lourdes, e é o principal responsável por adotar soluções de tecnologia de ponta na lavoura de 90 hectares.

No passado, Gregori viu os pais trabalhando em uma atividade mais penosa, passando dias em cima de uma máquina sem cabine, durante a colheita, expostos à poeira. “Hoje há mais conforto, é mais fácil”, compara o jovem agricultor, que pretende cursar a faculdade de Agronomia. “Se hoje houvesse a mesma dificuldade de quando meus pais começaram, há 40 anos, acho que eu não teria ficado”, admite.

Na palma da mão, pelo smartphone, ele tem acesso ao mapeamento das áreas cultivadas, por meio de imagens de satélite. O sistema identifica, por exemplo, áreas que contam com uma população mais baixa de plantas, a fim de que isso possa ser corrigido. “Às vezes a gente olha a lavoura de algumas partes e não percorre 100%; a ferramenta me auxilia nessa questão”, justifica. O pulverizador utilizado na propriedade conta com comando via satélite e sistema de GPS. Antigamente, o trabalho era feito a olho nu. “Não tinha uma precisão”, recorda Gregori.

A adoção das tecnologias, combinada ao manejo de solo, levou a família a colher 74 sacas de soja por hectare na última safra, índice bem acima da média estadual, na faixa de 50 sacas. Para o futuro, Gregori vê uma agricultura mais técnica, com novas ferramentas que auxiliem o produtor a diminuir erros e aumentar margens. Embora admita que “o êxodo vai continuar acontecendo”, ele diz que a tecnologia vai ajudar a segurar parte dos jovens no campo.

 

Conexão com o consumidor

Agricultura familiar usa redes sociais para ofertar e comercializar seus produtos, mas poderia acelerar esse modelo se contasse com sinal de internet universalizado

Ketruin Fuhrman'n, que cultiva hortifrutigranjeiros com o marido, Maurício, diz que a tecnologia permite mostrar como o alimento chega à mesa dos clientes | Foto: Maurício Fuhrman'n

O advento das novas tecnologias conseguiu aproximar os agricultores familiares dos consumidores. Em muitos casos, as redes sociais são utilizadas para ofertar e comercializar os produtos. É o que faz o casal Ketruin e Maurício Fuhrman'n, de Campo Novo. Produtores de hortifrutigranjeiros em sistema de hidroponia e semi-hidroponia, eles investem em marketing no mundo digital, expondo seus produtos no Instagram e recebendo pedidos pelo WhatsApp. “Assim, conseguimos mostrar para os nossos clientes como o alimento chega até a mesa deles”, explica Ketruin, 26 anos.

Porém, um dos fatores que prejudicam o negócio é a conectividade. Na propriedade dos Fuhrman’n, situada em Linha Sítio Motta, ainda não há sinal de telefone celular. Segundo a secretária-geral da Fetag/RS, Jaciara Müller, a dificuldade de conexão para a agricultura familiar ficou evidente durante a pandemia da Covid-19, quando muitas escolas suspenderam atividades presenciais. Em muitos casos, os pais tinham de ir à escola buscar o material de aula impresso, devido ao fato de a propriedade não contar com internet. “No meio rural, isso ainda é normal, até porque há operadoras que não querem investir”, lamenta Jaciara.

Parte das iniciativas que visa à inclusão digital no campo tem sido executada pelo setor privado. A ConnectFarm, startup gaúcha criada em 2018, planeja atender 5 mil agricultores por meio do Projeto 5K. Em uma única ferramenta, a empresa oferece informações de vários aplicativos com o objetivo de auxiliar na tomada de decisão na propriedade. “O futuro da agricultura é o de um modelo digital”, afirma o CEO da ConnectFarm, Rodrigo Dias. “O produtor vai poder controlar sua atividade na palma da mão e fazer a gestão da propriedade a partir de um smartphone.”

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895