Posição indesejada no ranking

Posição indesejada no ranking

Brasil é segundo lugar, entre os países do G-20, com maior índice de mortalidade por acidentes de trabalho

Por
Christian Bueller

Acidentes de trabalho não são tão raros de acontecer como se imagina. Os motivos são os mais diversos. Quedas de alturas altas, por exemplo, como a que vitimou um trabalhador terceirizado que perdeu a vida ao despencar de 20 metros em um silo, em novembro de 2020, no município de Gaurama, norte do Estado. Ou como em Portão, na região metropolitana, onde um motociclista, no mesmo mês, faleceu após uma colisão quando se deslocava para uma entrega. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), um trabalhador morre por acidente de trabalho ou doença laboral a cada quinze segundos no mundo. Um estudo do Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho, elaborado pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) e a OIT apontou que, entre 2012 e 2020, 21.467 destes profissionais são brasileiros. Com uma taxa de seis mortes a cada 100 mil vínculos de empregos formais, o Brasil ocupa o segundo lugar entre os países do G-20 e das Américas no ranking da mortalidade no trabalho, perdendo só para o México. Entre 2012 a 2020, foram registrados 5,6 milhões de doenças e acidentes do trabalho que vitimaram trabalhadores brasileiros, com um gasto previdenciário que, desde 2012, ultrapassa os R$ 174,5 bilhões somente com despesas acidentárias, implicando uma perda de 430 milhões de dias de trabalho.

Moradora de Gravataí, Tania Santos Ferreira, hoje com 55 anos, tem saudade da rotina que mantinha até sete anos atrás, quando um acidente em uma fábrica de peças automotivas mudou a sua vida. Ela perdeu um dedo indicador esquerdo em uma prensa e nunca mais trabalhou na área. “Eu gostava por ser uma das poucas mulheres na ativa, na época”, lamenta. Atualmente, cozinha marmitas prioritariamente para quem trabalha nas proximidades do bairro Bonsucesso, onde mora. “Quando acontece, parece que não vamos conseguir fazer mais nada, mas resolvi batalhar porque tenho dois filhos para criar”, resigna-se. Na hora de segurar as panelas, o dedo médio, com ajuda do polegar, faz as vezes da parte do corpo perdido. “Pelo menos sou destra”, sorri Tania, timidamente. Segundo ela, a empresa prestou todos os socorros possíveis, mas a ex-funcionária revela não gostar de entrar muito em detalhes sobre o ocorrido.

O caso de Tania está entre a maioria dos acidentes no país, entre 2012 e 2020. Conforme dados do Observatório, a parte do corpo mais atingida é o dedo, com mais de um milhão de ocorrências (24%). Somente em 2020, foram 95 mil acidentes que envolveram dedos. Na sequência, em número bem menor, estão os pés, com 344 mil (8%), mãos (exceto punhos e dedos), com 316 mil (7%), joelhos, com 222 mil (5%), articulação de tornozelo, com 167 mil (4%) e pernas, com 157 mil (4%).
Já, em caso de mortes após os acidentes, as situações em que mais de uma parte do corpo são atingidas lideram as estatísticas, com 4,4 mil óbitos (22%), à frente de acidentes fatais que ferem a cabeça, 2,8 mil, entre 2012 e 2020 no país (14%). Os maiores agentes causadores de acidentes no país, segundo o levantamento, são máquinas e equipamentos: 663 mil casos (15%), seguido de agentes químicos, 589 mil (14%) e quedas do mesmo nível, 558 mil (13%).

Conforme o mapeamento das Comunicações de Acidentes de Trabalho (CAT) do Observatório, o número total de comunicações de acidentes de trabalho em 2020 é 30% menor do que o registrado em 2019, que, por sua vez, havia apresentado elevação de 2,5% em relação ao ano anterior. Dentre outros setores que sofreram aumento no número total de acidentes notificados, está o de abate de suínos, aves e outros pequenos animais, que foi de 10.880 casos em 2019 para 12.179 em 2020. Por outro lado, o setor de transporte rodoviário de carga registrou queda, com redução de 8%. Segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan) do Ministério da Saúde, incluindo os setores formal e informal da economia, o número de acidentes de trabalho graves notificados cresceu cerca de 40% em 2020, saltando de 94.353 em 2019 para 132.623 no ano passado.

Quanto às notificações no Sinan envolvendo crianças e adolescentes, desde 2007 foram registradas cerca de 29 mil ocorrências de acidentes de trabalho grave e 51 mil casos se consideradas todas as ocorrências para a faixa etária de 5 a 17 anos. Entre adolescentes de 14 a 17 anos com vínculo empregatício, foram registradas, só em 2020, 556 notificações de acidentes de trabalho em geral, e não apenas graves. De acordo com o Observatório da Prevenção e da Erradicação do Trabalho Infantil, isso é menos da metade das 1.202 ocorrências de 2019.

No período do estudo, um em cada cinco dos 18,8 mil acidentes envolvendo jovens de 14 a 17 anos com vínculo empregatício foi causado por veículos de transporte (21% do total). Em seguida, vem a operação de máquinas e equipamentos (18%), tombos (13%), mobiliário e acessórios (10%), agente químico (9%), ferramentas manuais (8%), quedas de altura (7%), motocicleta (6%), entre outras causas apontadas.

Se considerados o conjunto de ocupações e a totalidade de registros de acidentes de trabalho, os profissionais do setor de atendimento hospitalar têm a maior quantidade de registros em números absolutos e percentuais no país. Em 2020, no entanto, com o início da pandemia da Covid-19, técnicos e técnicas de enfermagem não apenas sofreram a maior quantidade de acidentes em relação a outras ocupações, mas passaram de 6% do total em 2019 para 9% no ano passado, um aumento de 15%. O Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho apontou, em 2020, o registro de 21 mil comunicações de acidente de trabalho e 51 mil afastamentos por casos de Covid-19 no país. Entre as ocupações mais frequentemente informadas nos registros estão técnicos de enfermagem (1.995 profissionais ou 9%), faxineiros (1.152 ou 5%), auxiliares de escritório (768 ou 3%), vigilantes (707 ou 3%), vendedores de comércio varejista (696 ou 3%) e alimentadores de linha de produção (624 ou 3%). O total de auxílios-doença por depressão, ansiedade, estresse e outros transtornos mentais e comportamentais (acidentários e não acidentários) passou de 224 mil em 2019 para 289 mil afastamentos em 2020, um aumento de 30%.

Quedas e colisões de moto são responsáveis por 6% dos registros de acidentes de trabalho entre os jovens de 14 a 17 anos. Foto: Mauro Schaefer

Terceiro lugar no Brasil

O Rio Grande do Sul foi o terceiro estado brasileiro com mais notificações de acidente de trabalho, com 37,2 mil, dos quais 113 foram situações que acarretaram óbitos. Empatado com o ano de 2018, 2020 foi o de menor número de mortes por acidentes de trabalho no Estado desde que o laboratório começou a analisar os dados em 2002. Em 2010 (174 pessoas), 2011 (166) e 2014 (160) ocorreram mais casos de profissionais que perderam a vida enquanto trabalhavam. Foi também no ano passado o menor número de notificações de acidentes desde 2002 (39,6 mil). Já os piores anos neste sentido foram 2008, 2009 e 2014.

Segundo o advogado trabalhista Renato Peters, o distanciamento social e consequente aumento do home office, que tirou muitos trabalhadores de suas funções presenciais, é a razão mais provável para a queda nos números. “Muitas indústrias, que são locais em que acidentes ocorrem com frequência, precisaram fechar as portas, por exemplo. O mesmo com motoristas de empresas que diminuíram ou encerraram atividades”, relata. O especialista, alerta, no entanto, para a subnotificação de casos, um problema histórico e que pode ter sido potencializado desde 2020. “Há acidentes que não são comunicados diretamente no CAT e a informação só chega ao conhecimento da Previdência por meio do sistema de saúde. Isso prejudica a apuração real dos dados”, enfatiza o advogado. Com base nas informações mais recentes neste quesito do Observatório, além dos 51,8 mil acidentes em 2018, há uma estimativa de outras 13,3 mil subnotificações, o que representa 26,6% ocorrências sem CAT.

As notificações gaúchas de acidentes só perdem para São Paulo (35%) e Minas Gerais (11%). As principais cidades em que ocorreram acidentes foram Porto Alegre (7.390, ou 20%) e Caxias do Sul (2.894 ou 8%). Passo Fundo e Canoas vêm logo atrás, com 3% cada uma). O setor mais afetado em 2020 foi o de atendimento em serviços hospitalares, com 7.786 casos, ou 23%. Vale observar que antes mesmo da pandemia, o segmento liderava a série histórica desde 2012, sendo responsável por 18% dos acidentes em geral de 2012 a 2020. Na sequência, vem o abate de suínos, aves e outros pequenos animais, com 2.908 casos (9%), seguido por acidentes no comércio varejista de mercadorias em geral, com predominância de produtos alimentícios, como hipermercados e supermercados, com 1.523 casos (5%). Com 820 casos, o transporte rodoviário de cargas representa 2%.

Os gastos previdenciários no Estado somam R$ 18,5 bilhões desde 2012, sendo R$ 1,7 bilhão somente em 2020. Segundo o procurador do MPT e cientista de dados Luís Fabiano de Assis, estima-se que doenças e acidentes do trabalho produzam a perda de 4% do Produto Interno Bruto global a cada ano. “Além dos incomensuráveis custos humanos e familiares, os custos econômicos desses acidentes e doenças se manifestam em gastos do sistema de saúde e do seguro social e, no setor privado, em uma enorme redução da produtividade derivada de dias perdidos de trabalho acumulados de trabalhadores e trabalhadoras”, observa Assis, também diretor de Investigação e Dados no Ministério Público Federal do Trabalho do Brasil. A porcentagem dos afastamentos no RS em 2020 foi liderada por técnicos em enfermagem, com 17%, à frente de faxineiros (7%) e vendedores de comércio varejista, enfermeiros, vigilantes, auxiliar de escritório em geral, operador de caixa, alimentador de linha de produção e porteiro de edifícios, todos com 3%.

Fiscalização e campanha

O Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul (MPT-RS) desenvolve um trabalho atuante na fiscalização do cumprimento da legislação trabalhista no Estado. Recentemente, por exemplo, a unidade de Passo Fundo reverteu a indenização de uma construtora que terá de pagar R$ 300 mil a título de dano moral coletivo em decorrência de um acidente fatal ocorrido em obra de ampliação do Clube Comercial da cidade, em novembro do ano passado. A empresa assinou um termo de ajuste de conduta (TAC) para beneficiar quatro projetos sociais da região.

Além da cobertura metálica da quadra poliesportiva de uma escola estadual, R$ 125 mil serão destinados a outros três projetos: reforma do prédio de uma associação que atende cerca de 60 crianças e adolescentes e 25 mulheres, capacitação profissional voltada a técnicas de panificação do Presídio Regional de Passo Fundo e distribuição de cestas básicas para a Central Única de Favelas (Cufa) de Frederico Westphalen. Tudo isso após a confirmação de irregularidades relacionadas à segurança do trabalho quanto ao trabalho em altura e à prática de terceirização ilícita, determinantes para o acidente.

Uma iniciativa para promover a conscientização sobre acidentes de trabalho foi criada pela MPT-RS e chegou às redes sociais, com o lema “Chega de Acidentes de Trabalho”. Realizada em parceria com os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerests), Senac/Fecomércio, Secretaria de Inspeção do Trabalho e Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro, vinculada ao governo federal), a iniciativa disponibiliza vídeos e textos sobre o tema. As publicações vão desde o uso adequado de equipamentos de proteção individual (EPIs) para as mais diversas profissões, até dicas de ergonomia, para evitar problemas decorrentes de má postura em frente ao computador. “Ao trabalhar com um notebook em uma mesa de escritório, ou você acerta a altura da tela ou ajusta a posição do teclado, senão vai começar a sentir dores na coluna cervical ou inflamação nos tendões, nos punhos, ombros, entre outros tipos de doença”, explica o professor e engenheiro de segurança, Luis Carlos Slavutzki.

O projeto também mostra histórias como a do ex-motoboy Marcelo Felipe Corrêa, 48 anos, conhecido como Ninja. Muito do seu apelido decorria da velocidade com que coletava determinada encomenda para entregá-la o mais rápido possível. Mas um acontecimento, do qual lembra com detalhes, mudou sua vida. Ele não esquece o que se passou no dia 12 de fevereiro de 2018 às 10h30min. “Trabalhando, ao desviar de um veículo em movimento, fui tirar um ‘fino’ de um carro estacionado. A frente da moto passou, mas o bauleto (baú) bateu na quina desse automóvel e eu caí de mau jeito”, descreve. Neste exato dia, Ninja não estava com os EPIs adequados para a função, ele reconhece. Ficou dois meses no hospital e descobriu uma lesão na medula que o deixou em uma cadeira de rodas. “Vi a realidade cruel de voltar para o barraco”, relata. Após 18 anos fazendo serviços de tele-entrega, Ninja se confessa um “cachorro louco” na estrada. “Eu entrava no automático, achando que nunca sofreria um acidente. Caía, levantava, até que, uma hora, caí e não levantei mais”, conta. O ex-motoboy aconselha aos colegas que continuam na batalha diária, mas ainda acompanhados da imprudência. “Quer ficar na motinho? Fica, mas com consciência, meu galo. Perde um minuto da tua vida, mas não perde tua vida em um minuto”, ensina.

"Perde um minuto da tua vida, mas não perde a tua vida em um minuto”, diz Marcelo Felipe Corrêa, que sofreu um acidente enquanto trabalhava em 2019. Foto: Mauro Schaefer

Meta deve ser a prevenção

O juiz Marcelo da Silva Porto, da 6ª Vara do Trabalho de Caxias de Sul, uma das poucas especializadas nos processos sobre doenças ocupacionais e acidentes do trabalho do Estado, lembra que assim como o empregador deve manter o ambiente sadio, o empregado tem a obrigação de seguir as obrigações dadas pelo patrão. Ele enfatiza a importância das Normas Regulamentadoras relativas à segurança e medicina do trabalho. As NRs devem ser seguidas por empresas privadas e públicas e pelos órgãos públicos da administração direta e indireta, assim como os órgãos dos Poderes Legislativo e Judiciário que possuam empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). “São regras mínimas, para os dois lados, um patamar mínimo social. Existem em todos países civilizados”, relata Porto. O magistrado considera que se houver um abrandamento das leis, os acidentes de trabalho aumentarão. “A indenização precisa sempre ser maior do que o investimento em prevenção. Prevenir deve ser o objetivo do empregador. Meu ambiente de trabalho não pode me causar lesões que terão que ser reparadas oportunamente”, completa.

Porto Alegre está entre as primeiras cidades em todo o país em despesas previdenciárias, segundo o Observatório de Segurança e Saúde no Trabalho. Entre 2012 e 2020, foram gastos de R$ 2,5 bilhões em auxílio-doença – R$ 206,4 milhões somente em 2020, deixando a Capital gaúcha na quarta colocação entre 5.570 municípios brasileiros. Já em aposentadorias por invalidez, o custo mais do que dobra e chega a R$ 6,1 bilhões no acumulado entre os anos de 2012 e 2020, sendo R$ 809,6 mil somente no ano passado – o sexto maior no Brasil. No levantamento, durante os nove anos aferidos por MPT e OIT, 58% dos afastamentos ocorreram por acidente e 41% por doenças. Fraturas representam 53% dos acidentes, seguidas por luxações (21%) e traumatismos (14%). As ocupações mais frequentemente vitimadas por afastamentos do tipo acidentário entre 2012 e 2020 foram os faxineiros, com pouco mais de mil casos (6%). Na sequência, vemos técnicos em enfermagem (5%), auxiliares de escritórios, assistentes administrativos, vendedores de comércio varejista, trabalhadores de serviços de limpeza e conservação de áreas públicas e serventes de obras.

Já em notificações de acidentes, classificados por setores econômicos de Porto Alegre, no período entre 2012 e 2020, lideram as Comunicações de Acidente de Trabalho em atividade de atendimento hospitalar, com pouco mais de 31 mil casos (37%). Depois, aparecem no ranking do Observatório o segmento de transporte coletivo de passageiros, com 4,4 mil pessoas (5%), comércio varejista, com 3,1 mil (4%) e atividades de correio, com 2,9 mil (3%). Com relação ao número de acidentes de trabalho com morte notificados na Capital para a população com vínculo de emprego regular, foram avaliados dados desde 2002. O ano passado registrou o menor número de óbitos: seis. Foram 15 vítimas a menos do que 2011, recorde porto-alegrense neste quesito, segundo o levantamento.

Na comparação entre as faixas etárias e gêneros, há uma paridade entre homens e mulheres. Os acidentes, predominantemente, atingiram trabalhadores (7,3 mil) e trabalhadoras (8,2 mil) entre 30 e 34 anos entre 2012 e 2020. O número acumulado de notificações de acidentes de trabalho que vitimaram crianças e adolescentes na Capital foi de 261. A maior ocorrência foi registrada em 2014, com 57 casos, um número bem acima dos sete de 2020.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895