Ajuda em quatro patas

Ajuda em quatro patas

Além de companhia, os cães-guia oferecem segurança e proporcionam confiança para a locomoção

Por
Felipe Samuel

Calçadas desniveladas, buracos, placas, orelhões, ausência de sinalização especial e preconceito são alguns dos desafios diários enfrentados pelos deficientes visuais no Brasil. Mas há um aliado para auxiliar no deslocamento de pessoas que possuem baixa visão ou cegueira: o cão-guia. Esperança para milhões de brasileiros que precisam superar as barreiras de acessibilidade, o cão-guia ainda é realidade para poucos. Instituições especializadas em adestramento estimam que apenas 150 cães estão em atividade no país.

Na maioria dos casos, entidades de assistência social são responsáveis pela formação dos animais, que leva até dois anos. Os custos elevados para treinamento, a mão de obra especializada escassa e a necessidade de encontrar um cão com perfil adequado para o trabalho impedem a popularização do cão-guia.

Conforme dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 7 milhões de pessoas apresentam alguma deficiência visual. Deste total, 580 mil são completamente cegas e mais de 6,5 milhões apresentam baixa visão, seja por consequências congênitas ou adquiridas ao longo da vida. O processo para conseguir um cão-guia envolve várias etapas, que vão desde a inscrição em programas oferecidos por instituições especializadas até a análise do perfil do candidato.

Mais autonomia

O instrutor de informática Francis Radames da Cruz Guimarães, 27, se inscreveu, em 2013, no projeto Cães-guia do Instituto Federal Catarinense (IFC), Campus Camboriú, que oferece cães-guia a deficientes visuais a partir de um processo de seleção. Guimarães, que mora em Porto Alegre, esperou cinco anos para conseguir a outorga de Elmo, um cão que carrega na genética a mistura das raças golden retriever e labrador.

Desde 2018, ele conta com a parceria do companheiro inseparável. Embora seja destinado a um usuário, o cão-guia trouxe benefícios para toda a família. Casado com Danielle Rodrigues Pereira, que também é deficiente visual, e pai de Ana Beatriz, de seis meses, Guimarães explica que a presença do cão-guia garante mais autonomia nos deslocamentos. “É um parceiro que traz o benefício de a gente conseguir se deslocar com maior velocidade, ir a um lugar específico, porque sabe que vai ser tranquilo”, destaca.

O Parque Mascarenhas de Moraes, no Humaitá, em frente ao prédio onde a família reside, é um dos locais prediletos para passeios. “Fazemos caminhadas diárias. Antes não conseguíamos”, completa. Devido a uma doença degenerativa da retina, Guimarães começou a perder a visão a partir dos 13 anos. Apesar das dificuldades, afirma que sempre teve “uma vida bastante agitada”. “Caminhei muito na rua, no centro de Porto Alegre, trabalhei como office boy”, destaca. Para realizar os deslocamentos, utilizava uma bengala. “É um equipamento importante para a pessoa cega, mas às vezes acabamos nos acidentando em obstáculos como orelhão, poças e buracos”, observa.

Guimarães explica que o cão-guia garante mais autonomia para cumprir as tarefas diárias, como no deslocamento à sede da União de Cegos do Rio Grande do Sul (Ucergs), no bairro Boa Vista, onde é instrutor de informática e trabalha na habilitação e reabilitação das pessoas cegas e com baixa visão. “Consigo embarcar em estação de trem de forma autônoma e encontrar a escada rolante. Chego na plataforma e o Elmo encontra a porta. Sem ele, essa situação precisaria de um funcionário do trem para me auxiliar”, relata.

Na avaliação de Guimarães, falta divulgar a existência do cão-guia e políticas públicas de reabilitação. “Existem pessoas com muita dificuldade de locomoção. Para essas pessoas é essencial, pois traz a segurança que a bengala não vai trazer, pode levar a lugares que a bengala não vai levar e, se levar, vai ser com muita dificuldade”, assinala. Conforme Guimarães, muitos deficientes visuais convivem com traumas em função de acidentes. “O cão te traz uma vida que não vai ter orelhão, pessoas ou postes no caminho, é uma vida mais tranquila com ele, com mais segurança”, relata.

Ele avalia que a Capital “está cada vez pior” no que se refere à acessibilidade. E lembra que, em algumas situações, por conta de chuva ou sol escaldante, prefere fazer deslocamentos apenas com a bengala. Mas são exceções. “Quando estou com o Elmo até esqueço dos problemas que enfrento na cidade. Quando saio de bengala, encontro todos os obstáculos, como a falta de identificação nas avenidas. É um grande problema que vivemos nas avenidas principais, como a João Pessoa ou avenida Farrapos, que não têm identificação no meio fio do canteiro. Perdemos a referência, não sabemos se estamos na calçada ou na rua, e esses problemas vêm à tona”, completa.

Motoristas rejeitam corridas

Além das barreiras de acessibilidade, muitas vezes os deficientes visuais ainda encontram um obstáculo maior: o preconceito. Conforme Guimarães, a Lei Federal 11.126, que assegura à pessoa com deficiência visual usuária de cão-guia o direito de ingressar e permanecer com o animal nos veículos e nos estabelecimentos públicos e privados de uso coletivo, é descumprida com frequência por motoristas de aplicativos. “Em geral somos bem aceitos, mas muitos motoristas de aplicativos descumprem a lei e não querem levar o cão, que é altamente treinando para não sujar veículos”, ressalta.

Desde que tem a companhia de Elmo, Guimarães contabiliza mais de 30 casos de constrangimentos e rejeição de corridas via aplicativos. “Não quiseram me levar em várias ocasiões. Já fui barrado nos shoppings, em restaurantes da Rua da Praia, uma coisa que normalmente a gente consegue argumentar com a lei e entrar nesses ambientes. Mas os motoristas de aplicativos cancelam a corrida e arrancam com carro para fugir”, afirma.

Caõ-guia acompanha terapeuta

A terapeuta integrativa Sharlene Teixeira de Souza, 38, conta há três anos com o trabalho de Cadu, cão-guia que tem na genética a mistura de golden retriever e labrador retriever. Após efetuar a inscrição no Cadastro Nacional de Candidatos à Utilização de Cães-Guia, Sharlene - que perdeu a visão aos 29 anos em função de diabetes - aguardou quatro anos para ser selecionada pelo IFC e ganhar a outorga do animal. “O Cadu trouxe agilidade, liberdade no caminhar e muita alegria com a presença dele em casa”, revela a terapeuta, que reside em Porto Alegre.

Nos deslocamentos ao consultório, no bairro Higienópolis, e mesmo durante os atendimentos, o parceiro inseparável está sempre ao lado de Sharlene. Foto: Mauro Schaefer

“As pessoas fazem carinho nele, têm amizade forte com o Cadu. Ele reage com pessoas estressadas, brinca, e a pessoa começa a sorrir. Ele também é terapeuta”, brinca Sharlene, que atende em horários alternativos por conta do vínculo com a CEEE, onde trabalha no setor de recursos humanos. Desde o nascimento do filho Miguel, há um ano e cinco meses, ela trabalha em regime de home office na CEEE.

Sharlene lembra que o cão acompanhou toda a gestação de Miguel e reagiu de forma positiva. “Não é comum para cães-guia, que estão vinculados a usuários, chegar um ‘ser’ novo para compor a família. Ele me guia com o Miguel no colo”, afirma, ressaltando que a experiência com o cão-guia é transformadora. “As pessoas mudam o olhar diante da pessoa com deficiência quando ela está acompanhada de um cão-guia. Quando usam bengala, os deficientes sofrem preconceitos, mas com o cão-guia as pessoas acham lindo, interagem com os cães e esquecem a deficiência. Muda totalmente o olhar das pessoas para ti, é transformador”, relata.

Assim como outros usuários, Sharlene reconhece que o animal chama atenção em locais públicos. “Tem que ter boa autoestima para ter um cão-guia. Em qualquer lugar que tu vais, hospital, igreja, loja, mercado, o cão é sensação. Tem que estar preparado para abrir mão daquela coisa de estar no centro das atenções”, afirma.

Ela também reclama da falta de sensibilidade de motoristas de aplicativos, que muitas vezes rejeitam as chamadas de pessoas com cães-guia. “Não existe uma campanha de conscientização sobre a lei (que permite embarque de usuários com cão-guia) para alertar sobre a necessidade e o benefício que é ter um cão-guia na vida do usuário”, assinala.

55 horas ao redor do mundo

A professora aposentada Marilena Assis, 58, mostra que nenhuma deficiência pode impedir as pessoas de sonharem e conquistarem objetivos. Com diagnóstico de glaucoma desde o nascimento, ela foi perdendo a visão até chegar à juventude, quando ficou com apenas 10% de visão. Por conta disso, passou a usar bengala aos 18 anos. Em 2018, após parar de lecionar, ganhou a companhia de Estrela, um cão-guia que carrega na genética a mistura de golden retriever e labrador e que a acompanha há três anos. O animal também foi doado pelo IFC.

Decidida a aprimorar o idioma inglês, em 2020, Marilena embarcou para Toronto, no Canadá, para fazer intercâmbio com duração prevista de um mês e meio. Era o início de uma verdadeira aventura ao redor do mundo. Ao desembarcar no dia 14 de março naquele país, o governo canadense decretou o fechamento das fronteiras por conta da pandemia do novo coronavírus. E o que poderia ser uma experiência traumática se transformou em uma grande história de vida. Com as restrições para deslocamento em função da pandemia, Marilena teve oportunidade de retornar para Porto Alegre, mas decidiu ficar e aproveitar os dias em solo canadense.

Passou quase três meses no país. “Fui para aperfeiçoar o inglês, pois estava habituada mais a ouvir do que a falar. E foi uma experiência rica, porque fiquei sozinha com a Estrela em uma casa de estudantes. A aula, que seria presencial, acabou sendo realizada on-line. Fui preparada para pegar metrô, fazer grupo, mas fiquei trancada na casa”, relata. A companhia do cão-guia se mostrou fundamental nos dias de isolamento. “Ninguém entrava no elevador comigo por conta da pandemia. Aluguei um espaço dividido para duas pessoas e passei 90 dias de isolamento físico e cultural com a Estrela. Percebi o quanto me virei e Estrela deu conta do ir e vir”, completa.

No dia de embarcar para o Brasil, um novo desafio. Por conta de problemas no visto americano, Marilena teve que pegar um voo até Frankfurt, na Alemanha, antes de conseguir um voo para São Paulo. “Foram 55 horas de viagem, entre escalas e horas de intervalo. A Estrela não dormiu por duas noites, me acompanhou durante todo o tempo. Quando chegou a São Paulo, precisou tomar soro”, lembra. Sobre a importância do cão-guia, é taxativa: “Hoje eu ando com mais segurança, liberdade. Meu corpo está mais relaxado para caminhar. Com a bengala andamos mais tensos. Aprendi a confiar na Estrela”, afirma.

Como ver de novo

Referência no adestramento de cães, o Instituto Magnus é o maior centro de treinamento de cão-guia da América Latina, com 15 mil metros quadrados. Localizado em Salto de Pirapora, interior de São Paulo, conta com maternidade, canil, clínica veterinária, centro cirúrgico, área de soltura, lazer e treinamento, prédio administrativo e hotel para receber futuros usuários de cães-guia. Estudante de Direito e assistente de relacionamento do instituto, Murilo Henrique Delgado Mariano, 26, que reside em Sorocaba, desde 2018 conta com a companhia da labradora Baduska. “O cão-guia facilita demais, traz muita autonomia, liberdade e segurança para andar em lugares que a gente não conhece. A questão social também, o cão tem uma influência muito grande nas interações sociais, as pessoas vêm muito mais conversar com a gente, interagem, se sentem mais à vontade com uma pessoa com deficiência por causa do cão-guia. Se a pessoa não tem contato com pessoas com deficiência, ela fica meio travada, não sabe como conversar, como te abordar, interagir com você. E o cão acaba quebrando o gelo", afirma.

Mariano nasceu com glaucoma e perdeu quase toda visão aos 18 anos. Mesmo assim, sempre se locomoveu sozinho. Com a Baduska, no entanto, ganhou agilidade. Foto: Instituto Magnus / Divulgação / CP

Mariano nasceu com glaucoma e perdeu quase toda visão aos 18 anos. Atualmente tem menos de 5% da visão do olho direito. Mesmo assim, sempre se locomoveu sozinho. Com a Baduska, no entanto, ganhou agilidade. “Hoje eu sei o que é caminhar na rua, o prazer de fazer uma caminhada, coisas que antes não sabia. Sempre que saía de casa era uma tensão, medo de a bengala passar embaixo de alguma coisa e eu não perceber, bater e me machucar. Era o tempo todo tenso. Hoje tenho essa tranquilidade de andar na rua, de ir pra qualquer lugar tranquilo, encarar qualquer desafio porque eu sei que tem ela cuidando de mim”, relata. “Ter um cão-guia é como se eu estivesse vendo de novo”, completa.

Antes da pandemia, a dupla tinha uma rotina puxada, que começava às 7h. Depois de passar o dia no instituto, no final da tarde, Mariano e Baduska pegavam ônibus em direção à faculdade, onde o cão-guia era a atração da turma. Com a epidemia, as aulas passaram a ser realizadas on-line. “Não me vejo mais sem ela. Às vezes a gente precisa se separar por alguns momentos, às vezes ela vai tomar banho, ou se está chovendo muito e vou para algum lugar que não vou precisar tanto dela. Deixo ela em casa, mas o tempo todo falta alguma coisa, como se faltasse uma parte da gente mesmo. Ela entende bem, mas acho que sinto mais falta do que ela”, diverte-se.

Desde sua inauguração, em 2018, o Instituto Magnus já doou 31 cães. “É praticamente um cão por mês doado”, explica o gerente-geral, Thiago Pereira. Atualmente a área de atuação do programa compreende as regiões metropolitanas de Sorocaba e de Campinas e da cidade de São Paulo. Ao ressaltar que o trabalho não tem fins lucrativos, Pereira afirma que o objetivo é a inclusão social e a promoção da autonomia das pessoas com deficiência visual por meio da utilização do cão.

As dificuldades para formação do cão-guia passam pela genética adequada para desempenhar o trabalho, a questão financeira e a mão de obra para treinar o cão. Conforme Pereira, a formação do cão-guia pode levar até dois anos, período que envolve um ano com uma família socializadora e mais um período de treinamentos no instituto. Segundo Pereira, de 10 cães que iniciam o programa, de 4 a 6 se tornam cães-guias. Atualmente, 40 cães estão com famílias socializadoras, que têm o papel de expor o animal às mais diversas situações do cotidiano para promover seu desenvolvimento e acostumá-lo à rotina do dia a dia.

Após um ano, eles retornam ao instituto, onde passam por novos treinamentos e ficam aptos à adoção. Os socializadores não têm custo nenhum para receber o cão em sua casa, pois todas as necessidades médicas e de treinamento são de responsabilidade do Instituto. “O cão tem que estar feliz com o que está fazendo, tem que demonstrar vocação para isso. Quem escolhe se vai ser cão-guia é ele”, afirma.

Acessibilidade

O Conselho Municipal dos Direitos da Pessoa com Deficiência de POA (Comdepa) garante que os problemas enfrentados por pessoas com alguma deficiência são históricos na cidade, com calçadas esburacadas, ausência de rampas de acesso e presença de ambulantes no Centro Histórico. Segundo o presidente da entidade, Nelson Khalil, o cão-guia é importante para auxiliar na condução de pessoas que possuem baixa visão ou cegueira, mas a formação dos animais precisaria ser popularizada.

Khalil destaca que, no Rio Grande do Sul, o número de cães-guias não passa de dez. “Seria uma ajuda fantástica para muitas pessoas”, afirma. Mais do que ajudar na locomoção, o animal também pode ajudar na interação social. “Além de ser o condutor, ele pode ser os olhos do deficiente visual”, reforça. Na avaliação de Khalil, a recriação da Secretaria Municipal de Pessoas com Deficiência poderia garantir políticas públicas para melhorar a acessibilidade na cidade. “Boa parte das pessoas com alguma deficiência não sai à rua porque não tem acessibilidade. O Centro Histórico é um horror para andar e os cegos passam trabalhos imensos”, destaca.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895