Hora da decolagem

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Crescimento do número de granjas que transformam dejetos em energia limpa vem ganhando velocidade nos últimos anos

Por
Danton Júnior

A transformação de dejetos das granjas em energia limpa tem atraído cada vez mais a atenção do setor agropecuário no Rio Grande do Sul. Segundo dados do Centro Internacional de Energias Renováveis - Biogás (CIBiogás), o Rio Grande do Sul conta atualmente com 31 plantas de biogás em atividade, sendo que a maioria delas (16) entrou em operação a partir de 2016. Além de contribuir com a redução de gastos com combustível e com energia elétrica e térmica, o biogás tem sido apontado como um elemento fundamental para alcançar as metas do Brasil relacionadas à redução de gases do efeito estufa.

Em 2020, segundo a Associação Brasileira do Biogás (ABiogás), a produção nacional de biometano (biogás purificado) ficou em 365 mil metros cúbicos por dia. A entidade calcula que o país tenha um potencial de produzir 120 milhões de metros cúbicos por dia. Para contribuir com a redução da pegada de carbono até 2030, a meta traçada pelo setor é avançar para 32 milhões de metros cúbicos por dia ao final desta década.

Segundo o vice-presidente da ABiogás, Gabriel Kropsch, o marco regulatório do segmento avançou ao longo dos últimos anos, trazendo segurança para investidores e consumidores, mas ainda há questões de ordem tributária a serem resolvidas. “Não queremos subsídios, mas condições de competição com outras energias”, explica, ressaltando que, em alguns estados, o ICMS do biogás é maior do que o do diesel.

Apesar do avanço registrado nos últimos anos, é consenso no setor que a produção de biogás encontra-se muito abaixo do potencial, tendo em vista a grande produção de aves, suínos e gado presente no Rio Grande do Sul e, consequentemente, o grande volume de matéria orgânica disponível. O Paraná, por exemplo, conta com 146 plantas. “Estamos enterrando energia”, resume a professora Suelen Paesi, do Laboratório de Diagnóstico Molecular da Universidade de Caxias do Sul (UCS). Na avaliação dela, falta fazer com que a informação chegue aos interessados, pois os financiamentos estão disponíveis, inclusive por meio de recursos internacionais. Suelen coordenou, no final de março, o 3º Fórum Sul Brasileiro de Biogás e Biometano, realizado em formato on-line com o objetivo de discutir o desenvolvimento da cadeia.

Conforme a ABiogás, o Rio Grande do Sul conta com um potencial de geração de energia elétrica a partir do biogás na ordem de 8.271 GWh por ano. “No Brasil, o que é explorado representa menos de 2% do potencial. Temos muito chão para crescer ainda”, calcula Kropsch. Diferente do que ocorre com os combustíveis fósseis, o biogás é produzido pela decomposição da matéria orgânica, o que é um processo natural. Esse processo pode ocorrer de forma descontrolada, na natureza – gerando um passivo ambiental –, ou dentro de um ambiente controlado, aproveitando o produto para a geração de energia. De acordo com Kropsch, se todo o biogás gerado no Brasil fosse aproveitado, haveria produção suficiente para substituir cerca de 25% da energia elétrica no país, ou 70% do consumo de óleo diesel.

No meio rural, a instalação de biodigestores – reatores onde ocorrem os processos biológicos que geram o biogás – cresceu nos últimos anos, favorecida pelo surgimento de novas tecnologias, linhas de financiamento e oportunidades de negócios. “Os bancos são sensíveis a isso de uma maneira muito positiva. Eles têm interesse em financiar projetos que sejam amigáveis ao meio ambiente”, ressalta o pesquisador Airton Kunz, da Embrapa Suínos e Aves, de Concórdia (SC).

O equipamento tem sido utilizado por produtores rurais principalmente para a geração de energia elétrica. Porém, o sistema também possibilita a geração de energia térmica, que pode ser utilizada, por exemplo, em sistemas de secagem de grãos ou no aquecimento de aviários. A matéria orgânica utilizada para a produção do biogás é composta por dejetos da produção agropecuária, em especial da avicultura, suinocultura e bovinocultura de leite. “As fezes dos animais são materiais de excelente biodegradabilidade”, complementa Kunz.

Com a sustentabilidade na ordem do dia, a busca por energias renováveis envolve cada vez mais esforços, em especial nos países desenvolvidos. A preocupação dos consumidores com a busca por energias mais limpas abre espaço, inclusive, para a valorização comercial dos produtos. “Os produtos de suínos e aves que têm biodigestão nas suas granjas vão, logo mais, ter uma valorização extra, porque o consumidor vai exigir esse nível de certificação”, afirma o presidente da Associação Brasileira de Proteína Animal (ABPA), Ricardo Santin.

 

Transição para o futuro

Produtores que apostaram em biodigestores demonstram preocupação com a preservação do ambiente, percebem que isso vai se tornando exigência do mercado e contabilizam redução de gastos com energia que vai compensando o investimento com o passar do tempo

Kist admite que está preocupado em legar um mundo sustentável para as novas gerações. | Foto: Arquivo Pessoal

Suinocultor há 28 anos, Edson Kist, de Santa Rosa, investiu na aquisição de um biodigestor em 2019. Com 2 mil matrizes, a granja comercializa leitões com até 23 quilos e abriga, geralmente, cerca de 14 mil animais. “Uma granja como a nossa polui tanto quanto uma cidade de 50 mil habitantes”, calcula o agricultor. O investimento garantiu uma produção mais limpa, ao mesmo tempo em que reduziu o gasto mensal com energia elétrica. “Temos de deixar um legado para os nossos filhos. Estamos gerando uma energia limpa e deixando de poluir, que é o mais importante”, resume.

A motivação inicial de Kist era produzir energia para a própria granja. O gasto mensal com eletricidade chegava a R$ 17 mil. O valor alto era imposto principalmente pela necessidade de climatização dos pavilhões onde ficam alojados os suínos. Com a implantação do biodigestor, o custo com energia caiu para cerca de 10%. Além da eletricidade, há o benefício da geração de calor. A creche de suínos, inaugurada há poucos dias, conta com piso térmico, com temperatura em 28 graus – considerada ideal para o desenvolvimento, ganho de peso e conversão alimentar do animal. O sistema utiliza água aquecida, que circula por mangueiras e tubulações embaixo do piso.

“Isso é essencial, pois moramos em uma região muito fria. O porco precisa de muito calor para não perder peso e não ficar doente”, justifica o suinocultor. Na maternidade, o sistema garante uma temperatura do piso em até 36 graus quando o leitão nasce. No verão, há a necessidade de refrigeração, também possibilitada pelo mesmo sistema. A modernização cada vez maior da produção de suínos, segundo Kist, deverá fazer com que o consumo de energia pela atividade cresça ainda mais nos próximos anos.

O equipamento adquirido pela propriedade rural conta com tecnologia alemã. O chorume coletado de todos os pontos da granja é direcionado a uma pequena lagoa, onde uma bomba centrífuga tritura todo o material mais pesado. Embaixo de uma lona, ocorre o processo de decomposição da matéria orgânica pelas bactérias. O oxigênio é jogado para dentro do balão, de modo a deixar o gás menos pesado. Em seguida, o gás é colocado na temperatura certa para entrar no motor a diesel, instalado junto a um gerador de 75 KVAs. A capacidade de geração de energia é de 1.500 KW por dia. Tanto no verão quanto no inverno, a produção funciona 24 horas por dia.

Qualidade

O empreendimento custou cerca de R$ 600 mil, financiados pelo Finame com dois anos de carência e oito anos de prazo, porém, o produtor pretende quitar o valor em cinco anos. Kist, que mora na granja onde também estão  seis casas de funcionários, diz que a qualidade da energia consumida no dia a dia não deve nada ao sistema convencional. O investimento se dá num momento “razoável” para a suinocultura, segundo Kist. Ele afirma que os preços pagos pelo suíno estão bons, mas o custo com a alimentação dos animais sofreu aumento expressivo devido aos preços do milho e do farelo de soja. A granja é administrada junto com a sócia Danieli Rambo.

Definições e leis

Biometano é um biocombustível gasoso obtido a partir do processamento do biogás. Por sua vez, o biogás é originário da digestão anaeróbica de material orgânico (decomposição por ação das bactérias), composto principalmente de metano e dióxido de carbono (CO2).

O biometano obtido de resíduos essencialmente orgânicos é aquele proveniente das atividades agrossilvopastoris ou de certas atividades comerciais (por exemplo, alimentos descartados por bares e restaurantes), excluídos daí o gás de aterro sanitário e o proveniente de estações de tratamento de esgoto, uma vez que estes podem conter outros resíduos não orgânicos.

As etapas de purificação do biogás resultam no biometano, com elevado teor de metano em sua composição, que reúne características que o torna intercambiável com o gás natural em todas as suas aplicações ou passível de ser transportado na forma de gás comprimido por meio de caminhão-feixe (gasoduto virtual) ou na forma de gás liquefeito, denominado biometano liquefeito – Bio-GNL.

As especificações do biometano no Brasil são regulamentadas pelas seguintes resoluções:

Resolução ANP nº 685/2017 – Estabelece as regras para aprovação do controle da qualidade e a especificação do biometano oriundo de aterros sanitários e de estações de tratamento de esgoto destinado ao uso veicular e às instalações residenciais, industriais e comerciais a ser comercializado em todo o território nacional.
Resolução ANP n° 8/2015 – Aplica-se ao biometano oriundo de produtos e resíduos orgânicos agrossilvopastoris e comerciais destinado ao uso veicular (GNV) e às instalações residenciais e comerciais.

Energia limpa agrega valor aos produtos da fazenda

Trevisan percebe que o consumidor está cada vez mais atento à origem e às condições em que foi produzido o que compra. | Foto: Arquivo Pessoal

Quando a Fazenda Trevisan, de Farroupilha, implantou os primeiros biodigestores, há oito anos, a preocupação maior era com a destinação correta dos dejetos. Com 350 vacas da raça Holandês em lactação, a propriedade estava fazendo a transição do sistema de criação a campo para o confinamento free stall. “Quando tu começas a confinar os animais, acabas tendo bastante dejeto em pouca área”, observa Jean Trevisan, que administra a propriedade ao lado dos pais, Osmar e Carmen, e do irmão, Cristiano.

Hoje, com três biodigestores, a fazenda consegue produzir 35% da energia que consome. O índice chegou a ser ainda maior, de cerca de 50%, antes de a família iniciar a industrialização e o envase do leite tipo A, o que demandou maior consumo de energia. Já a energia térmica é utilizada para aquecer a água usada para lavar as ordenhadeiras. Os dejetos também dão origem aos biofertilizantes, posteriormente aplicados na lavoura. O esterco dos animais é coletado e levado até uma lagoa de equilíbrio, onde é feita a homogeneização dos dejetos. A parte fibrosa é peneirada e levada a um galpão, onde é feita a compostagem aeróbica. Depois de seis meses, a parte sólida estará pronta para ser aplicada na lavoura como biofertilizante. Já a parte líquida vai para os biodigestores, onde é feito o tratamento do efluente, de forma anaeróbica. Esse processo gera o metano, que é coletado e jogado em um gerador de energia elétrica.

Para Jean, a geração de energia limpa acaba por impactar também na marca da fazenda, agregando valor ao produto final. “O consumidor está cada vez mais questionando sobre a origem dos produtos”, observa. “A demanda energética está crescendo muito, então precisamos ter fontes alternativas. Não dá para depender apenas da energia solar e das fontes hídricas”, sustenta.

 

Planejamento para os benefícios

Equipamentos podem suprir necessidades de calor para a criação de animais e de energia elétrica para toda a propriedade rural. | Foto: Marcos Labanca/Divulgação/CP

Embora tenha ocorrido um avanço significativo no número de plantas nos últimos anos, a discussão sobre o biogás não é algo tão recente. Na Embrapa Suínos e Aves, por exemplo, o primeiro biodigestor foi instalado em 1981. Desde então, tem sido observada uma evolução nos processos de geração do gás. Para o pesquisador Airton Kunz, as conquistas recentes, como a legislação sobre o tema e a existência de um grupo de fornecedores bem estabelecido, consolidou a visão do biogás como uma cadeia, e não como algo marginal. “O potencial é algo já conhecido e consolidado. Os desafios que nós temos são de logística, ou seja, como usar e consorciar esses resíduos para a geração de biogás”, observa.

Ao produtor que pensa em investir em um biodigestor, Kunz recomenda que seja avaliado o uso que ele pretende dar ao biogás, para que as decisões sejam tomadas conforme a real necessidade. Em uma granja onde há muita demanda por sistemas de calor, por exemplo, o equipamento pode ajudar a suprir essa necessidade. Caso haja utilização de GNP para aquecimento de aviário, essa fonte pode ser substituída pelo biogás. Para geração de energia elétrica, deve-se avaliar a escala de produção e o volume de resíduos. “A primeira coisa é pensar na necessidade do uso. Hoje já temos vários modelos de biodigestores que, obviamente com diferentes custos, dão estabilidade e qualidade de maneira diferente”, analisa.

A professora Suelen Paesi, da Universidade de Caxias do Sul (UCS),  observa que o investimento é recomendado para produtores médios e grandes, porém, os pequenos podem se organizar por meio de condomínios. Já estão em funcionamento modelos em que a geração de biogás está interligada em pequenas propriedades, de modo que dutos conduzem o gás até uma central, onde ele é convertido em energia elétrica. “A saída para os pequenos é a cooperação. Se tivermos dez produtores rurais organizados dentro de um espaço geográfico razoável, é possível fazer essa associação”, explica. Ela observa, ainda, que a produção não está restrita à criação de animais, já que o cultivo de hortifrutigranjeiros também produz matéria orgânica em quantidade, que pode ser aproveitada para gerar energia.

A importância do biogás na segurança energética é outro ponto destacado por Suelen. A falta de energia em um aviário, por exemplo, pode ocasionar prejuízos ao avicultor. “Se nós temos o nosso próprio gerador, há uma segurança de que a falta de energia não resulte em sacrifício de animais”, constata.

Na questão da substituição dos combustíveis fósseis pelo biometano, há a redução da dependência de fontes que, além de não serem renováveis, contam com constantes oscilações de preço. Uma necessidade apontada por Suelen é a criação de cursos de pós-graduação, nos níveis de mestrado e doutorado, que possibilitem avançar nas pesquisas sobre o tema.

Biometano também vai mover veículos e máquinas

O trator T6 Methane Power, movido a biometano, começa a ser produzido neste ano na Europa. | Foto: New Holland/Divulgação/CP

A utilização do biometano na propriedade rural não fica restrita à geração de energia elétrica e térmica. A alternativa já tem sido utilizada também para abastecer veículos, tanto leves quanto pesados. A fabricante de máquinas agrícolas New Holland anunciou que vai começar a produzir neste ano, na Europa, o trator T6 Methane Power, movido a biometano. A previsão é de que a máquina esteja disponível para o mercado sul-americano, por meio de importação, a partir de 2022. O usuário poderá utilizar o biogás gerado dentro da propriedade para abastecer o equipamento. O biometano é armazenado em tanques e o trator conta com autonomia de pelo menos meio dia de trabalho durante a operação normal.

“A tecnologia de propulsão por biometano oferece inúmeras vantagens ambientais, incluindo a redução de até 80% das emissões em comparação com um motor diesel padrão”, compara o gerente de portfólio agrícola da CNH Industrial, Nilson Righi.

Segundo Gabriel Kropsch, da ABiogás, o biogás é um substituto real para o diesel, já que é tecnicamente viável e mais barato. Ele afirma que existem dois caminhos para a sua utilização no transporte. Um delas é a conversão de veículos movidos a diesel, que podem ser adaptados para o modelo chamado bicombustível, que utiliza o gás e o combustível fóssil ao mesmo tempo, numa proporção de cerca de 50% para cada um. A outra opção é a aquisição de um equipamento 100% movido a gás, de fábrica. “Para comprar uma máquina nova, 100% a gás, o investimento é elevado. A adaptação requer um investimento menor, mas o ganho também é menor”, observa Kropsch.

 

Seapdr prepara programa

Estado já criou política para o biometano e biogás e agora trabalha na viabilização de uma linha de crédito para a instalação de biodigestores

Viabilidade do empreendimento está vinculada ao volume de dejetos e demanda de aquecimento e energia elétrica da propriedade rural. | Foto: Alexandre Marchetti/Divulgação/CP

No Rio Grande do Sul, a Política Estadual do Biometano foi instituída em maio de 2016, por meio da lei nº 14.864. Posteriormente, o biogás também foi contemplado pelo mesmo programa. No momento, a Secretaria Estadual da Agricultura, Pecuária e Desenvolvimento Rural (Seapdr) trabalha na criação de um programa que disponibilize linhas de crédito para a instalação de biodigestores. Segundo a secretária Silvana Covatti, a ideia é criar uma iniciativa nos moldes do Pró-Milho e do Mais Água Mais Renda. A deputada estadual Zilá Breitenbach, que preside a Frente Parlamentar da Matriz Produtiva dos Biodigestores, reuniu-se na última semana com as secretarias da Agricultura e de Ciência e Tecnologia para tratar do tema, visando alcançar incentivos à inovação, capacitação, informação e diretrizes das instituições financeiras para viabilizar recursos.

O presidente da Associação de Criadores de Suínos do Rio Grande do Sul (Acsurs), Valdecir Folador, considera que o biodigestor representa um investimento elevado para o suinocultor e que demanda o manejo adequado para que a entrada e saída de dejetos seja operada. De acordo com ele, para que esse investimento seja viável economicamente, é necessário que a granja tenha um certo porte e um certo volume de dejetos produzidos, assim como demanda para poder usufruir dos benefícios, como o aquecimento da granja ou a geração de energia. Por outro lado, Folador defende que, mesmo sem contar com o equipamento, as granjas de suínos do Rio Grande do Sul estão adaptadas à legislação ambiental. “A suinocultura não gera passivo ambiental pela questão do dejeto”, sustenta. “Se tiver um ou outro que não está cumprindo a legislação, vai ser achado e a granja, fechada”, ressalta.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895