Uma história de engajamento

Uma história de engajamento

Atletas pelo mundo, principalmente nos Estados Unidos, recusam-se a ficar alheios a problemas da sociedade, como o racismo. Por que no Brasil não se veem tantas manifestações?

O piloto inglês de Fórmula 1 Lewis Hamilton tem se posicionado fortemente sobre questões sociais.

Por
Chico Izidro

Durante muito tempo se exigiu dos atletas de alta performance que eles tivessem mais consciência política, que não vivessem em uma bolha, distante dos problemas da sociedade. Talvez o medo de desagradar ao público e perder contratos ou a blindagem que existe ao redor dos homens e mulheres mais famosos do mundo tenha deixado muitos alheios. Desde os tempos do “pão e circo” no Império Romano, convencionou-se associar o esporte à alienação política. Recentemente, porém, inspirados no histórico de raros pioneiros do passado, alguns profissionais do esporte têm levantado suas vozes contra as injustiças.

As primeiras reações contra o racismo, assunto que está novamente em evidência hoje, surgiram nos Estados Unidos nos anos 60, na NBA. Os Jogos Olímpicos da Cidade do México, em 1968, registraram protestos que até os dias de hoje ainda fazem eco. No Brasil, que passou por um regime militar, o silêncio acabou abafando muitas vozes. Mas o esporte traz em seu DNA a política e muitas vezes os atletas incomodaram os dirigentes políticos.

A NBA está à frente dos protestos contra o racismo, iniciados em maio após o assassinato de George Floyd por policiais em Minneapolis. O esporte estava paralisado em todo mundo em função da pandemia e os astros da NBA saíram de suas casas e foram às ruas marchar com o povo pedindo justiça, gritando que “vidas pretas importam”. Na Inglaterra, quem tomou a dianteira foi o piloto de Fórmula 1 Lewis Hamilton. Entre os brasileiros, Vinícius Júnior, do Real Madrid, e Richarlison, do Everton, participaram dos atos, enquanto Neymar foi fortemente criticado por omissão.

Astros da NBA, como LeBron James, apoiam movimentos sociais. Foto: Kevin C. Cox/Getty Images/AFP/CP

A Bundesliga, campeonato alemão de futebol, apoiou os jogadores nos protestos antes das partidas. Muitos atletas, entre eles o francês Marcus Thuram, do Borussia Mönchengladbach, se ajoelharam no gramado durante a comemoração de um gol, gesto popularizado pelo jogador de futebol americano Colin Kaepernick para reclamar das injustiças contra os negros nos Estados Unidos. Marcus é filho de Lilian Thuram, campeão mundial pela França em 1998 e uma das vozes mais ativas no combate ao preconceito no esporte.

Nesta atual onda de protestos, Kaepernick voltou a ser lembrado – em 2016, após uma sequência de assassinatos de cidadãos negros, o jogador do San Francisco 49ers ajoelhou-se durante o hino nacional. A atitude inspirou muitos outros jogadores e foi aprovada pelo então presidente, Barack Obama, mas provocou represálias. Kaepernick teve o contrato rescindido e as outras franquias lhe fecharam as portas. Recentemente, o quarterback, hoje com 32 anos e líder de organizações sociais, tentou voltar a atuar na liga, mas não conseguiu.

Em agosto, a NBA retomou os jogos no Complexo da Disney na Flórida, promovendo referências de apoio a movimentos por justiça social e contra o racismo. O nome Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) está estampado nas quadras de Orlando e nas camisetas dos jogadores. Até que, há duas semanas, o cidadão negro Jacob Blake levou sete tiros nas costas de um policial branco, no estado do Wisconsin. Ele sobreviveu, mas o episódio disparou nova onda de manifestações, e a NBA foi protagonista. 

Os atletas do Milwaukee Bucks, de Wisconsin, decidiram boicotar a rodada, proposta que foi encampada pela diretoria. “Apoiamos completamente a decisão dos nossos atletas. A única maneira de conseguir mudanças é jogar luz sobre as injustiças raciais que estão acontecendo diante de nós”, afirmou a direção dos Bucks, em nota. Na WNBA, a liga de basquete feminina, as jogadoras vestiram camisas com o nome de Jacob Blake. Os jogos boicotados impactaram tanto que Donald Trump disparou contra as manifestações. “Eles viraram uma organização política e isso não é uma coisa boa”, disse o presidente americano.

Atualmente, os jogadores negros correspondem a aproximadamente 75% da NBA. Mas nem sempre foi assim. Criada em 1946, a liga contava com 11 times e 150 jogadores na primeira temporada. Nenhum era preto. Foi assim por mais três anos. O país vivia forte segregação racial, principalmente no sul. A população negra não tinha permissão de frequentar as mesmas escolas, espaços públicos (nem mesmo banheiros) ou ter os mesmos empregos. 

Os primeiros afro-americanos apareceram na liga em 1950. A NBA limitou a três o número de negros por time. Só que eles não podiam marcar cestas. Seu trabalho consistia em defender, pegar a bola e entregar aos brancos. Fora de quadra, nas viagens dos times, os negros não podiam usar os mesmos vestiários, hotéis, restaurantes, estações de trem e lojas que os seus colegas brancos.

O maior vencedor da NBA, o ex-jogador negro Bill Russell, hoje com 86 anos, jogou de 1956 a 1969 e ganhou 11 títulos. Em sua época no multicampeão Boston Celtics, o ginásio vivia vazio. A franquia realizou uma pesquisa para descobrir o motivo. Descobriu que os torcedores não iam aos jogos porque a equipe tinha muitos jogadores pretos.

Quando do assassinato do pastor e ativista antissegregação Martin Luther King, em 4 de abril de 1968, a final da Conferência Leste estava marcada para começar no dia seguinte, entre o Boston Celtics, de Russell, e o Philadelphia 76ers, de Wilt Chamberlain. Àquela altura, os negros já estavam entre os principais nomes da liga. Russell e Chamberlain pediram o adiamento da partida. Mas ela acabou acontecendo. Bailey Howell, dos Celtics, questionou: “Qual título King tinha? Por que deveríamos cancelar o jogo?”.

Naquele mesmo tumultuado ano de 1968, houve o primeiro protesto em Jogos Olímpicos. Na Cidade do México, os negros Tommie Smith e John Carlos, primeiro e terceiro colocados nos 200m rasos, ergueram o braço com o punho fechado calçando luvas pretas. O gesto da organização Panteras Negras denunciava a segregação racial nos EUA. O Comitê Olímpico Internacional baniu ambos dos Jogos, inviabilizando qualquer possibilidade de participação olímpica posterior. O ato, porém, os imortalizou.

Peter Norman, o australiano que ficou em segundo lugar, usou no pódio um broche do Projeto Olímpico para os Direitos Humanos e seu gesto foi entendido como protesto. Ele também foi excluído. Ao voltar para casa, foi relegado ao ostracismo. Chegou a fazer 13 vezes o índice para os Jogos de Munique em 1972, mas teve o nome vetado. Quando Norman morreu, em 2006, Smith e Carlos viajaram à Austrália para o funeral e ajudaram a carregar o caixão.

No Brasil dos anos 70 e 80, os esportistas mais ativos foram os jogadores Reinaldo, do Atlético Mineiro, e Sócrates, do Corinthians. Durante a ditadura, Reinaldo comemorava seus gols levantando o braço direito, em alusão aos Panteras Negras. “Eu simplesmente usava minha tribuna como pessoa pública para chamar atenção. Usava meu gesto como propaganda da necessidade de democracia”, disse ele recentemente. Na Copa de 1978, Reinaldo marcou o gol do Brasil na estreia (empate em 1 a 1 com a Suécia) e repetiu o gesto de Smith e Carlos. Perdeu a condição de titular. Nos anos 80, Sócrates (1954-2011) passou a erguer o punho cerrado quando marcava gols pelo Corinthians. O gesto pedindo a redemocratização no Brasil foi muito utilizado durante as Diretas Já. 

O célebre primeiro protesto em Jogos Olímpícos, realizado por Smith e Carlos em 1968, em alusão aos Panteras Negras. Foto: CP Memória

Sempre se cobrou muito do maior jogador da história, Pelé, que passou ao largo das questões raciais e sociais. No início da carreira, Edson Arantes do Nascimento era chamado de “Crioulo”. Em geral, a palavra parecia ser usada de maneira afetuosa, embora exponha um discurso racista. Pelé preferiu não se engajar. Em 2014, quando questionado sobre o caso Aranha, por exemplo, disse que o jogador se precipitou. Segundo ele, se fossem parar as partidas em que algum torcedor o chamou de “macaco” ou “crioulo”, teriam que ser paralisados todos os jogos da sua carreira, entre 1956 e 1977.

Para Marcelo Carvalho, idealizador e diretor do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, a diferença entre Brasil e Estados Unidos decorre muito dos dirigentes, da mídia e da própria cultura. “Aqui, como a maioria dos dirigentes dos clubes de futebol no Brasil não é negra, não quer discutir o racismo no futebol”. Marcelo lembra que houve represálias a quem tentou falar. “A maioria é pobre e lutou muito para chegar aonde chegou. Temem que a porta se feche. E a família, que depende dele, como fica? Os jogadores ainda não entenderam de onde vieram e de que lado estão. Vende-se a falácia da meritocracia, de que chegaram lá por méritos próprios e, assim, suas posições só não correrão risco se tudo ficar como está”, analisa. 

Marcelo destaca ainda a diferença de suporte para quem quiser se manifestar. “Lá, em vez de dar W.O. quando o time se recusa a entrar em quadra em protesto, a NBA apoia. Antes era só o LeBron James, agora é toda a NBA somando-se a ele, com seus patrocinadores. A reação em série foi imediata. No beisebol, vários times se recusaram a jogar. A organização do torneio de tênis de Cincinnati suspendeu as semifinais em protesto e teve apoio da ATP e WTA. A NBA já vinha avançando, ao incentivar ações individuais, mas esta posição institucional, politicamente, é um passo enorme”, considera. “Assim, o atleta se sente respaldado. No Brasil, falta o lado coletivo e institucional. Se um time não fosse a campo, a CBF apoiaria ou puniria?”, questiona.

Foi reproduzido nos campos de futebol do Brasil nas décadas seguintes por Reinaldo (foto) e Sócrates. Foto: CP Memória

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895