Disputa pelas chaves da Casa Branca

Disputa pelas chaves da Casa Branca

No dia 3 de novembro, os eleitores dos Estados Unidos vão decidir não apenas quem vai ocupar o cargo máximo do país pelos próximos quatro anos como também indicarão os rumos das relações com outras nações

Joe Biden e Donald Trump disputam a presidência dos EUA.

Por
Eric Raupp

O diagnóstico aponta polarização, um vírus para o qual o tratamento ainda é inexistente. Não só a pandemia acometeu os Estados Unidos em 2020, mas há também outros sintomas que mostram uma sociedade dividida: agitação civil e uma tentativa de acerto de contas racial; uma onda de desinformação e teorias de conspiração; recuperação econômica em desaceleração após resultados positivos nos últimos anos; impasses sobre um pacote de estímulos fiscais e a nomeação de uma nova juíza para a Suprema Corte; "temporada" de incêndios recorde na costa oeste. Quando os eleitores norte-americanos elegerem o seu próximo presidente em 3 de novembro, o voto no republicano Donald Trump ou no democrata Joe Biden será em busca de um remédio para esses e outros problemas domésticos. Embora a política externa seja tradicionalmente deixada em segundo plano pelos votantes, o mundo assistirá ao pleito com expectativas, aflições e torcidas pessoais. Incluindo o Brasil e Jair Bolsonaro.

Especialmente para o nosso país, o resultado dessa disputa pode gerar ruídos entre os governos. Desde que assumiu o Executivo, Bolsonaro alinhou-se ideologicamente com o bilionário ex-apresentador que ganhou em 2016 a chave do Salão Oval da Casa Branca. O brasileiro se gabou, repetidamente, de ter aproximado as relações entre os países e fez elogios ao colega. Também declarou apoio à reeleição de Trump, que aparece atrás nas pesquisas. Conforme o rastreamento IBD / TIPP 2020, divulgado na última semana, Biden detém uma vantagem sólida de 8,6 pontos. Sob tal cenário, especialistas têm tentado projetar o futuro desse relacionamento e da nossa política externa nacional. Também buscam entender o que uma eventual virada de Trump, assim como aconteceu em 2016, pode significar.

“É uma aproximação legítima por parte de um governo democraticamente eleito, não há nada a criticar em relação a isso. Contudo, quando se trata de Estados Unidos, precisamos de uma abordagem profissional ou pode não trazer resultados de longo prazo. Isso tende a ficar muito evidente no caso de uma derrota do Trump”, analisa o professor da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP) Carlos Gustavo Poggio. “Costumo dizer que qualquer aluno do primeiro ano de relações internacionais entende que você não faz política externa dando tapinha nas costas. Parece que o governo brasileiro não compreende aquela máxima de que os Estados não têm amigos, mas interesses”, completa. De acordo com Cristina Pecequilo, professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autora de livros sobre as relações brasileiras e norte americanas, existe na história da política externa nacional uma tendência tradicional a se defender o alinhamento com os EUA, então o que se vê sob Bolsonaro não é um ponto fora da curva, apenas a retomada de tendências que, pelo menos no pós-Guerra Fria, foram experimentadas em governos como o de Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso – ainda que em uma medida menor. O que muda é a relação pessoal que existe entre os dois governos. “Entra um alinhamento ideológico com Trump e até idealizado do que seriam os Estados Unidos dele. Há uma ideia de que os dois pertencem ao Ocidente e que ele seria uma unidade. Mas na verdade quando a gente olha para os EUA, eles entendem como sendo eles próprios e a Europa Ocidental, aquilo que a gente chama de novo transatlântico se formos pensar na agendas. O Brasil fica de fora dessa equação", aponta Pecequilo, ressaltando que o tratamento personificado das relações pode ser um problema caso Biden vença.

Isso é ainda mais evidenciado pela desconsideração vinda do Norte. Vice-presidente durante os oito anos de gestão de Barack Obama, o atual candidato democrata formou com a nomeada para o posto que já foi seu, a senadora Kamala Harris, a coalizão que se opõe mais diretamente a um presidente brasileiro na história. Tanto ele, um moderado dentro do partido, ou até mesmo apontado por alguns como conservador, quanto ela, identificada com a ala mais progressista, têm criticado aberta, repetida e nominalmente Bolsonaro nos últimos meses, em uma atitude considerada como inédita nas relações entre os dois países. Mais recentemente, em 29 de setembro, Biden levou a questão ao primeiro debate entre os candidatos à presidência. Disse que “começaria imediatamente a organizar o hemisfério e o mundo para prover 20 bilhões de dólares para a Amazônia, para o Brasil não queimar mais a Amazônia”. “E se não parar, vai enfrentar consequências econômicas significativas”, afirmou. A declaração gerou uma resposta revoltada de Bolsonaro, que classificou o comentário como “lamentável, desastroso e gratuito”. O ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, ironizou a fala e questionou se o valor seria um repasse anual ou único.

Consequências para o Brasil

É preciso compreender o que Biden quer de sua política externa para entender o que pode mudar para o Brasil nessa relação. O cientista político e professor da Escola Superior de Propaganda e Marketing Gabriel Adams avalia que a tendência é de uma retomada do que Obama havia feito. Ele lembra que, apesar da retórica e do apreço popular em diferentes nações, o primeiro presidente negro dos Estados Unidos teve uma atuação internacional de agressividade e conflitos, sobretudo no Oriente Médio. Ainda assim, para o docente, os dados mais marcantes daquele momento são o acordo nuclear com o Irã, a reaproximação com Cuba e a participação no Acordo de Paris. Todas medidas desfeitas por Trump. “Alguns desses tratados devem ser retomados, como a Cúpula de Paris, e se tornar menos agressivo com o Irã. Então, acho que num primeiro momento, vai tentar recuperar o que foi perdido, porque o que o governo Obama conseguiu fazer, Trump desfez”, comenta Adams.

Analisar qual vai ser a política externa de um candidato a presidente é uma tarefa difícil, analisa Poggio. Ele lembra que George W. Bush, nas eleições de 2000, defendia uma posição isolacionista. No entanto, sua administração ficou marcada pela Guerra ao Terror após os ataques terroristas em 11 de setembro do ano seguinte e inúmeras intervenções militares pelo mundo. Ou seja, as circunstâncias mudam o jogo estratégico: “Ao que me parece, o que Biden vai fazer é semelhante ao Obama. Ele teve um objetivo: os EUA tinham seu prestígio em baixa e a necessidade de reparar as relações com alguns aliados. Isso, agora, pós-Trump, é elevado à 10ª potência. O Trump é ‘America alone, America first’".

Pesquisadora associada no Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), Neusa Maria Pereira Bojikian atenta que Biden deve buscar uma reaproximação com os aliados tradicionais, como a Europa, e tentar retomar o papel de liderança mundial preterido pelo seu adversário. Isso inclui a resposta global à pandemia. “Trump abandonou a Organização Mundial da Saúde, então acredito que ele voltaria propondo algumas mudanças”, diz. Entre as projeções possíveis, a certeza é: pode mudar o partido no governo norte americano, mas o objetivo é o mesmo: ‘America First’". O historiador Sidnei Munhoz, autor de vários livros, incluindo “Relações Brasil-EUA”, defende que os partidos Democrata e Republicano são, mais do que oponentes, vertentes de uma grande ideologia nacional. “Aquilo que a gente chama de grande estratégia ou grande política é quase como a confusão com a política externa. Desde aproximadamente 1898, com a guerra com a Espanha, ela segue mais ou menos a mesma linha de continuidade até hoje. O que muda é o nível de truculência”, afirma o professor.

A chance de virada

O cenário pode se repetir. É menos improvável mas ainda assim possível. Em sua primeira eleição, Trump contrariou as pesquisas que davam uma vitória certa a Hillary. A diferença entre os percentuais apontados para a ex-secretária de Estado e o vencedor do pleito, no entanto, era menor. O último levantamento registrado na plataforma FiveThirtyEight, realizado pela ABC News e pelo jornal The Washington Post, mostrava a democrata com 47% e o republicano com 43% das intenções. No entanto, a vitória do Grand Old Party levantou questionamentos sobre a eficácia dos levantamentos e abriu um precedente para novas dúvidas. “Em qualquer outra situação, eu diria que, neste ano, Biden ganharia. No entanto, temos uns pequenos problemas. As pesquisas fazem um aferição do momento, mas há uma série de fatores que podem ocorrer daqui até as eleições que podem alterar os dados”, indica o professor Sidnei Munhoz, que também atenta que as pesquisas estão sendo feitas de forma remota. Entre os fatos que podem mudar o rumo da disputa, ele recorre à própria história norte-americana lança a possibilidade de que Trump poderá arrumar um fato novo às vésperas do pleito. “Podemos ter um grande escândalo com vazamentos”, cita como exemplo.

A reeleição de Trump passaria por conquistar estados-chave como Michigan, Pensilvânia, Wisconsin, Arizona, Carolina do Norte e Flórida. Ele está atrás de Biden em todos, embora a margem nos dois últimos seja inferior a 2%. Caso a virada ocorra, Gabriel Adams acredita que a tendência é que o republicano radicalize seu discurso. “Vai se sentir muito empoderado e buscará formas de legitimar o seu discurso ainda mais”, diz o professor, que prevê que o Brasil seguirá a mesma linha. “Acho que não temos grandes ganhos a usufruir. Pode parecer contraditório, mas acho que com o governo Biden, apesar de toda a retórica, se nos tornarmos mais pragmáticos, temos mais chances de termos vantagens econômicas do que com Trump. Porque a nossa lealdade não está sendo recíproca”, diz.

A AMÉRICA E AS AMÉRICAS

Ao longo da corrida eleitoral, a América Latina tem sido um assunto marginalizado. Donald Trump olhou para a região em busca de vantagens materiais para proteger suas bases e crenças. Desde o anúncio da candidatura à presidência, em 2016, tratou o México com um bode expiatório, particularmente em imigração e comércio, duas questões nas quais ele prometeu uma mudança radical de política. Seus apelos para construir um muro na fronteira sofreram pressão dos republicanos no Congresso devido aos impactos possíveis e ele recuou dessa ameaça. Apesar do atrito, negociou com o presidente mexicano Andrés Manuel López Obrador um acordo atualizado do Tratado Norte-Americano de Livre-Comércio (Nafta), de produção de petróleo e conseguiu com que os refugiados da América Central permanecessem no México enquanto seus pedidos de asilo estavam sendo julgados. A abordagem do republicano e seu secretário de Estado, Mike Pompeo, foi de securitização. O governo intensificou sanções contra o trio esquerdista Cuba, Nicarágua e Venezuela. Crítico de Nicolás Maduro, Trump disse que qualquer medida poderia ser tomada caso o chavista se recusasse a deixar o poder. No entanto, seu apoio ao líder oposicionista e autodeclarado presidente, Juan Guaidó, pouco mudou o quadro geral. 

“Trump nunca teve uma visão estratégica para a América Latina, mas tinha um objetivo muito concreto de derrubar Maduro, de conseguir uma mudança de regime na Venezuela.E eles achavam que o Brasil seria útil nesse esforço. Mas, na verdade, estão desapontados com a pouca capacidade de alcançar qualquer coisa significativa para trabalhar em prol desse objetivo”, argumenta Michael Camilleri, diretor do Programa de Estado de Direito Peter D. Bell do Diálogo Interamericano. O analista lembra que o democrata também é crítico do regime socialista em Caracas. “Existe uma perspectiva compartilhada. Biden disse muito claramente que Maduro é um ditador e um sistemático violador dos direitos humanos. Pelo que penso, a visão das duas administrações é muito semelhante em termos da natureza do regime de Caracas”, avalia. A mudança, com uma vitória do ex-vice de Obama, acredita, é uma maior possibilidade de diálogo entre as partes de tentativa de mitigar os danos.

Camilleri aponta que o desdém de Trump com a região é comprovado pelo fato de ter viajado para América Latina apenas uma vez, em 2018, para um encontro do G-20 em Buenos Aires, na Argentina. “Biden é uma das figuras públicas mais experientes em questões de política externa que temos. Ele é alguém que está no serviço público há muito tempo. Foi presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado. Portanto, realmente conhece o seu caminho ao redor do mundo e possui um profundo reservatório de conhecimento e relacionamentos. O contexto mais específico é que ele investiu particularmente nas relações com a América Latina durante o governo Obama. Ele viajou à América Latina 16 vezes”, defende. 

O comentarista político Agustin T. O'Brien Cáceres discorda da abordagem. “Infelizmente, a realidade dos Estados Unidos e do mundo inteiro está em uma situação tão ruim hoje que muitos americanos só querem que a América se recupere. É por isso que elegeram Trump em 2016 e querem que Trump seja reeleito agora. Isso significa que ele se concentra nos problemas internos e, quando trata dos internacionais, o foco principal é terminar as guerras não resolvidas e reduzir as tensões com a Coreia do Norte e o Irã. No resto do mundo, a principal influência é indireta”, rebate.

Torcida entre os eleitores de Trump é que, a exemplo do que ocorreu em 2016, o candidato contrarie as pesquisas que indicam a vitória dos democratas. Foto: Scott Olson / Getty Images / AFP / CP

Pragmatismo no futuro

A aposta para o Brasil manter as relações com um governo democrata e visões distintas reside em uma palavra: pragmatismo. Para Gabriel Adams, é preciso, ainda, situar as críticas de Biden a Bolsonaro em um cenário eleitoral. “Uma coisa é o Biden candidato, outra coisa era enquanto senador e certamente será diferente enquanto presidente. Deve ser menos progressista do que o candidato e deve ser mais centrista do que foi o governo Obama, por toda simbologia que carregava”, aponta. Assim, ele espera que se mantenha uma postura menos ideologizada. “E eles são suficientemente pragmáticos para entender que o Brasil é um país importante na América Latina para a política externa deles. Não é prioridade número um no mundo, mas é importante para as Américas”, analisa. Entre os pontos de maior atrito, a questão ambiental e os direitos humanos devem entrar na pauta. “Pode haver uma pressão em relação à Amazônia, mas acho que os Estados Unidos podem fazer pressão via diplomática, mas em nenhum momento chega a prejudicar as relações muito concretamente. Acho que o Brasil tem mais riscos de prejudicar as relações comerciais com a União Europeia do que com os Estados Unidos pelo pragmatismo destes em política externa e comercial”, comenta Adams.

Historicamente, os norte-americanos não são grandes defensores do meio ambiente, embora essa questão seja crescente por lá. No centro da recente discussão está o “Green New Deal”, projeto criado pela deputada democrata Alexandria Ocasio-Cortez e o senador da mesma agremiação Ed Markley. Nem mesmo Biden e sua vice, Harris, parecem se acertar sobre um posicionamento sobre o tema. Enquanto ela se diz defensora do texto, ele afirma que o GND é uma “estrutura crucial” para o seu próprio plano. Embora os dois se sobreponham em alguns objetivos, o do candidato principal na chapa inclui muitas das propostas de bem-estar social. Em outros aspectos, as propostas diferem menos dramaticamente. “Não tem sido na corrida eleitoral de 2020 um tema importante, tanto que não temos visto isso nos debates com muito enfoque. É algo cada vez mais importante dentro do partido democrata. Cada vez há mais pressão por parte de integrantes para se avançar de forma mais forte na pauta ambiental. Isso a gente vê também acontecer em países europeus, inclusive partidos verdes ganhando mais espaço na Europa. Uma vitória de Biden pode trazer um destaque muito maior para essa agenda ambiental, e ele pode ser um aliado importante com os europeus para fazer uma pressão que vai colocar uma lente de aumento muito grande em um país como o Brasil”, contextualiza Carlos Gustavo Poggio, internacionalista da FAAP.

Discurso de candidato

Cristina Pecequilo, que escreveu quatro livros sobre os Estados Unidos, é enfática: “Biden vai manter o pragmatismo”. Ela aponta que houve muita comoção quando o democrata mencionou que faria pressões por conta da Amazônia, mas avalia que é preciso contextualizar um candidato em campanha e que tem na base a necessidade de atingir um eleitor mais progressista no campo ambiental. “É o tipo de fala que vem num debate. O que veremos são tensões localizadas, mas, estruturalmente, o Biden não vai desejar perder vantagens que o Trump obteve no mercado brasileiro. Também não há nenhuma possibilidade de os democratas abrirem o mercado. Muda o relacionamento pessoal”, comenta. 

Para a relação funcionar, entretanto, é preciso que as duas pontas pratiquem a Realpolitik. Nesse sentido, o governo brasileiro destaca que, apesar da proximidade ideológica entre Trump e Bolsonaro, o vínculo entre as nações tem força, principalmente, devido às semelhanças culturais. O historiador Sidnei Munhoz avalia que nessa seara o país deve muito aos EUA. “A gente referencia a Revolução Francesa, que é extremamente importante pela matriz do pensamento iluminista, mas muito daqueles ideias estavam presentes na Revolução Americana antes mesmo. O nosso nome era Estados Unidos do Brasil e nosso modelo federalista é inspirado no deles”, explica. 

Em entrevista à Rádio Guaíba no início de outubro, o embaixador brasileiro em Washington D.C., Nestor Forster, comentou que se houver uma mudança na Casa Branca, obviamente haverá uma alteração de ênfase na relação, mas isso não vai afetar, fundamentalmente, o caráter do vínculo. Ele frisou que sua posição será a de buscar aumentar a presença brasileira nas discussões no Congresso norte-americano. É uma tarefa importante. Se os democratas conseguirem manter maioria na Câmara dos Representantes e reconquistar o Senado e o Salão Oval em novembro, o partido terá o controle total do governo federal pela primeira vez em 11 anos. Será fundamental para aprovar projetos em temas como reforma da polícia, mudança climática e assistência médica. Ou, então, barrar acordos comerciais com o Brasil. O Executivo nacional tem mostrado indícios de que compreendeu parte desse cenário. Bolsonaro parece “adotar um tom menos forte em relação a Biden e mais pragmatismo nas últimas semanas”, avalia Neusa Bojikian. “Isso também no plano doméstico. Vem até sendo criticado por bolsonaristas mais radicais por adotar um tipo de política mais pragmática. Um campo onde ainda reina muito a motivação original ideológica é a política externa. Acho que se o Trump cair, Ernesto Araújo cai junto com ele”, comenta Poggio.

Uma eventual troca na Casa Branca pode impactar também a maneira como o país se apresenta. Enquanto alinhado e muitas vezes emulando Trump, Bolsonaro e o Itamaraty conseguem adotar, com uma espécie de tutela, uma posição de repúdio ao multilateralismo, atores estatais ou organizações intergovernamentais. Ganham legitimidade para desacreditar a OMS e criticar a Organização das Nações Unidas no próprio discurso de abertura da Assembleia Geral, como ocorreu neste ano. São posições caras ao eleitor bolsonarista, muitos dos quais também criticam um globalismo “que busca destruir o Ocidente”. Mas, se a reeleição do norte-americano não acontecer, essa postura pode passar a incomodar. “No próximo ano, todo o mundo vai precisar se reinventar em função da pandemia. Como vamos fazer isso se estivermos isolados de parceiros econômicos estratégicos tradicionais ou mercados consumidores? Pode ser um problema”, indica Juliano Cortinhas, que atuou como assessor da Assessoria de Defesa da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República entre 2012 e 2013: “O erro é muito grande porque adotamos um discurso muito próximo ao dos Estados Unidos quando nossa pauta internacional é diversa. Também porque esse discurso que é muito peculiar na própria história americana, não é algo tradicional ao longo das décadas. É puramente trumpista. A partir disso, esse erro vai cobrar um preço caro".

O comportamento do republicano, caso perca, pode ser determinante para a reação brasileira. Seu respeito pelas urnas já foi testado, em 2016, mesmo com a presidência ganha: tendo vencido o Colégio Eleitoral, rejeitou as contagens certificadas que mostravam que ele havia perdido no voto popular por uma margem de 2.868.692. Como resposta, alegou que pelo menos três milhões de imigrantes indocumentados deram votos fraudulentos em Hillary Clinton. Neste ano, já recusou se comprometer a uma transição “pacífica” do poder, disse que a única maneira que Biden pode vencer é por meio de manipulação e que as eleições serão decididas na Suprema Corte. Isso levou o Senado, controlado pelos Republicanos, a aprovar uma resolução se comprometendo a uma transição pacífica. Ainda assim, Trump continua a atacar o voto por correio, acusando-o de ser fraudulento. De acordo com os dados das eleições federais, cerca de 24% das votações durante as eleições de 2016, que Trump ganhou, aconteceram por meio de votos por correio. Agora, a proporção deve aumentar significativamente por causa da Covid-19. O pior cenário não é aquele em que Trump rejeite o resultado da eleição, mas um em que faça uso de seu poder para impedir um resultado decisivo. “Há um risco institucional de que não aceite a derrota e brigue por longos meses para se manter no poder de forma não constitucional e isso pode trazer riscos à democracia nos Estados Unidos. É possível que haja uma crise no país. Parece-me que os desdobramentos dessa eleição podem ter uma consequência extremamente grave em todo o mundo”, pondera Cortinhas.

Discurso mais agressivo, cobrando ações do Brasil em relação à Amazônia, faz parte da estratégia de Biden para ter mais votos junto aos progressistas. Foto: Jim Watson / AFP / CP

Como lidar com um homem de negócios

Bolsonaro não escondeu a felicidade ao se encontrar com Trump pela primeira vez, em março 2019, na Casa Branca, para uma série de acordos entre seus respectivos países. Trocaram camisas das seleções nacionais, saudaram as relações entre os dois países como "melhores do que nunca" e até mesmo deram tapinhas nas costas de forma amistosa. Era início de mandato do presidente brasileiro, que já tinha demonstrado publicamente seu apreço pelo norte-americano. O capitão reformado voltou de Washington com alguns pontos que causaram efusão em sua base eleitoral. Ao Exército, uma parceria sobre o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA), que já havia sido negociada pelo antecessor Michel Temer. Ao ministro da Economia Paulo Guedes, um aceno pessoal de Trump de incluir o Brasil na Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). E também a promessa de classificar o Brasil como um dos principais aliados fora da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Apesar das perspectivas, a ligação entre os chefes de Executivo, costurada por uma aura conservadora, com base na família e no nacionalismo, não trouxe benefícios pragmáticos ao país, defende Cristina Pecequilo. "Eu acho que se formos pensar em termos práticos, o Brasil até agora não conquistou vantagem nenhuma. Existe uma identidade ideológica, uma aliança em temas sociais daquilo que eles vêm mais caros em termos conservadores, mas em termos políticos, econômico e estratégico, o Brasil até agora tem sofrido repetidas perdas", considera. "Desde o início do governo está claro que a posição é abrir e favorecer os EUA, na expectativa de que em algum momento vai receber um benefício", complementa.

A professora interpreta que, com esse comportamento, existe uma tendência de não se apostar em outras parcerias ou considerá-las como instrumentais. "A grande incompreensão reside no nosso entendimento de que são os EUA e no que eles percebem como um país que merece ser respeitado, que merece barganha, Hoje não é necessário para eles fazerem nenhuma porque existe esse alinhamento. Eles não respeitam um país fraco", avalia. Como exemplo, cita a Índia, liderada pelo primeiro-ministro nacionalista Narendra Modi. Membro do chamado BRICS e não signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, Mumbai tem um acordo nuclear preferencial com Washington e negociam um acordo comercial, mesmo que pequeno. Sidnei Munhoz também critica a abordagem personalista dada pelo Palácio do Planalto. "O engodo é achar acha que Bolsonaro é amigo do Trump. Não é. Não tem nada disso. Em termos de relações entre países, a amizade camufla outra coisa que se chama interesse. O que tem que ser discutido são interesses. Nós temos que discutir é isso", diz o historiador, que é coordenador brasileiro em parceria com James Green (Brown University) do projeto internacional Opening the Archives, que publicou mais de 30 mil documentos diplomáticos dos EUA sobre o Brasil, durante o período da ditadura militar, por intermédio do repositório da instituição norte-americana.

O professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Juliano Cortinhas defende que o se vê "não são relações entre Brasil e Estados Unidos, mas entre Bolsonaro e Trump". "É muito ruim. O Brasil deixou de pautar a política pelos interesses nacionais e passou a pautá-la por interesses ideológicos, o que é muito prejudicial aos nossos investidores, aos nossos empresários e a nossa sociedade", diz. "Essa opção trumpista pelo governo brasileiro é recheada de cálculos errados. A partir do momento em que a gente diz que podem requerer o que quiserem que nós vamos ceder, os Estados Unidos passam a ver não um aliado, mas um vassalo. Um país que faz aquilo independente do que quiserem. Por que ceder se a aliança já está garantida? Eles só vão oferecer algo a quem oferecer algo em troca. O Brasil tem pouco e o que temos estamos dando", avalia. Ele cita dados da Câmara Americana de Comércio (Amcham Brasil) que mostram queda de 25% nas exportações e importações em relação a 2019. O acumulado de janeiro a setembro foi R$ 33,4 bilhões, o menor para o período dos últimos 11 anos. Há contudo, de se considerar o impacto da pandemia. Mesmo assim, os Estados Unidos são o segundo maior parceiro comercial do Brasil, com fatia de 9,7% das exportações e 12,3% da corrente de comércio brasileiras. Em primeiro lugar, a China detém 34,1% das exportações e 28,8% da corrente de comércio. No primeiro ano do governo Bolsonaro, em 2019, as exportações atingiram recorde desde 2008, com 29,7 milhões de dólares. Já as importações foram as maiores desde 2014, 30,1 milhões.

Os números já haviam demonstrado melhores resultados durante a gestão de Michel Temer. Gabriel Adams, da ESPM, lembra que, durante o mandato de Dilma Rousseff, as relações bilaterais sofreram um baque por conta de um escândalo de espionagem. Em 2013, Edward Snowden vazou documentos secretos evidências de que vários altos funcionários do governo brasileiro eram rotineiramente espionados pela Agência de Segurança Nacional nos Estados Unidos. A ex-presidente, inclusive, cancelou uma visita de estado a Washington. "A questão da espionagem realmente estremeceu. Mas não foi em relação ao Brasil, eles espionaram todo mundo que conseguiram. Fizeram isso até com a Angela Merkel, na Alemanha. Ache que isso nos mostra o quanto somos relevantes para eles, inclusive. O Brasil tentou botar um limite que não seria colocado, mas era o de um Brasil com orgulho, se sentindo capaz naquele momento, de mostrar que não somos uma república de bananas e que exigimos respeito. Era uma postura mais incisiva. Isso durou um ano, dois, depois as relações foram retomadas", avalia.

Para Neusa Bojikian, a redução da cota de importação de aço brasileiro de 350 mil toneladas, conforme definido em 2018, para 60 mil toneladas é outro ponto que mostra que o Brasil está cedendo demais e sem contrapartidas claras. A medida foi tomada por Trump após sofrer pressão das siderúrgicas norte-americanas para barrar as importações do país. "Tivemos no governo Temer um acordo assegurando que o Brasil teria uma cota isenta para taxação de 25%. Mas, há poucas semanas, o nosso chanceler concorda em cortar 80% da exportação do produto brasileiro. Então, como você faz um acordo desses se já tinha uma restrição voluntária?", indaga. Os ministérios das Relações Exteriores e da Economia afirmaram em nota conjunta que "o governo brasileiro mantém a firme expectativa de que a recuperação do setor siderúrgico dos EUA, o diálogo franco e construtivo na matéria, a ser retomado em dezembro próximo, e a excepcional qualidade das relações bilaterais permitirão o pleno restabelecimento e mesmo a elevação dos níveis de comércio de aço semi-acabado”. "Uma América mais forte significa um Brasil mais forte. O Brasil tradicionalmente tem ligações muito fortes conosco, não apenas economicamente, mas também culturalmente. Portanto, o Brasil se beneficia muito com a recuperação americana", defende Agustin T. O'Brien Caceres, analista do LEGroupIndustries, com sede na Flórida.

Outro ponto criticado por especialistas é a decisão do governo brasileiro estender por três meses uma cota de importação de etanol sem tarifa, em movimento que visa ganhar tempo para negociação de uma posição melhor para a exportação de açúcar aos Estados Unidos. Durante o período de renovação, brasileiros e norte-americanos terão "discussões orientadas a obter resultados acerca de um arranjo para aumentar o acesso ao mercado de etanol e açúcar nos Estados Unidos" enquanto "também considerarão ao milho em ambos os países", segundo comunicado do Ministério das Relações Exteriores "É você fazer um acordo hoje porque você vai ter uma isenção amanhã. Cadê o princípio de reciprocidade? Não se faz um acordo desses a não ser que seja para ajudar o Trump na campanha a fazer média com os os agentes econômicos desse setor", provoca Bojikian.

O governo brasileiro entende que o acordo para uso da base de Alcântara – situada no Maranhão, a dois graus da Linha do Equador e, por isso, podendo economizar até 30% de combustível em um lançamento por conta da velocidade de rotação da Terra – é um dos grandes feitos da gestão Bolsonaro até o momento e um exemplo de como essas relações melhoraram. As autoridades criticam as gestões de Lula e Dilma Rousseff por terem arquivado as negociações para o uso comercial e sucateado o local ao priorizar um fracassado acordo para construção do foguete Cyclone 4 em Parceria com a Ucrânia. O Tesouro Nacional pagou meio bilhão de reais pelo projeto. Em nota, o ministério Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações destaca que "o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas (AST) facilita a cooperação e o aprendizado tecnológico". Além disso, aponta que o Brasil pode lucrar com o aluguel do espaço, o que geraria divisas para o desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro (PEB). Outra defesa é de que as patentes de grande parte dos componentes tecnológicos dos objetos da indústria aeroespacial têm patentes dos Estados Unidos.

O americanista Carlos Gustavo Poggio rebate a questão. "É um ganho que você pode fazer por canais tradicionais. A grande questão era de que havia uma resistência do governo brasileiro. E isso não existe mais. Há um argumento da importância da troca tecnológica. A que custo está se fazendo essa aproximação? Será que isso é uma política estratégica de longo prazo que traz profundos desafios?", questiona. Para o internacionalista, a questão da base "é uma migalha que conseguimos". Michael Camilleri tem uma visão menos pessimista do cenário. Embora tenha feito parte da gestão Obama, de 2012 a 2017, como assessor para o hemisfério ocidental da equipe de planejamento de políticas do Secretário de Estado e como Diretor para Assuntos Andinos no Conselho de Segurança Nacional, ele vê avanços em pautas que a antiga gestão busca. "Houve acertos objetivos, como o uso do Centro de Lançamento pelos Estados Unidos, as conversas de facilitação de comércio em andamento, o apoio para a adesão na OCDE. Algumas dessas coisas são coisas que as presidências anteriores, incluindo a nossa, trabalhou para realizar. Não são divisores de águas, mas benefícios reais deste alinhamento", avalia. Ele considera que essas negociações vieram ao custo de uma hiperpessoalização, o que pode ter um preço no futuro.

O último encontro entre Bolsonaro e Trump ocorreu em um resort do magnata em Mar-a-Lago, na Flórida, em março de 2020. Na ocasião, os países assinaram o Acordo de Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação (RDT&E), com o objetivo de abrir caminho para que os dois governos desenvolvam futuros projetos conjuntos alinhados com o mútuo interesse das partes, abrangendo a possibilidade de aperfeiçoar ou prover novas capacidades militares. Também foram iniciadas as tratativas de um pacote comercial a ser negociado até o fim deste ano. Ele não envolve corte de tarifas e acesso a mercados, mas visa a facilitação de negócios, a harmonização regulatória e medidas anticorrupção relacionadas ao comércio. A perspectiva de que os termos podem revertidos no caso das projeções se confirmem em relação a vitória tanto do Biden quanto na manutenção ou aumento da vantagem no número de deputados na Câmara pelos democratas preocupa o internacionalista Gabriel Adams, da ESPM-Sul. Ele também aponta que não estão claras as áreas impactadas e o tipo de investimento a ser feito. "Não estou dizendo que vai ser negativo, porque uma coisa que a gente não pode esquecer é que a pauta de exportações do Brasil para os Estados Unidos tem boa parte de produtos semimanufaturados e manufaturados na comparação com outros locais, que são basicamente commodities", conclui, sinalizando que um tratado com os EUA sempre pode ser positivo caso traga um ganho para a indústria brasileira ter um ponto de escoamento de seus produtos.

Especialistas mostram-se receosos com a possibilidade de que, caso seja derrotado nas urnas, Trump não aceite o resultado, iniciando uma batalha judicial. Foto: Brendan Smialowski / AFP / CP

Entre os EUA e a China

Em meio à tensão à medida que se aproxima a eleição nos Estados Unidos, a China observa tudo de maneira pragmática, mesmo em meio a ataques por conta de sua resposta à pandemia e à guerra comercial com os EUA. Há um consenso de que esse último aspecto não vai resolvido por Biden. Contudo, a abordagem às tensões será outra. A professora Neusa Bojikian sinaliza que um governo democrata deve guinar para canais multilaterais para lidar com a questão, buscando que Pequim pratique o que se chama de comércio justo.

O que se espera, nas palavras do professor da Unb Juliano Cortinhas, é “um retorno à normalidade, a uma competição de forma mais aberta, como é a tradição”. Essa mudança de comportamento pode refletir no Brasil e na balança comercial. Desde 2009 os chineses são nosso principal parceiro comercial. No ano passado, 28,1% das exportações foram destinadas para a China, sobretudo commodities. Conforme dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), entre janeiro e setembro deste ano, o Brasil exportou mais em soja para a China do que todas as exportações para os Estados Unidos combinadas. No geral, as exportações ao país asiático somam 54 bilhões de dólares – o triplo daquelas para os EUA (US$ 15 bilhões). “Justamente por uma imaginada conduta menos confrontacional de Biden, o Brasil também poderia sofrer um impacto indireto, sobretudo no que diz respeito ao setor agrícola. Uma reaproximação com os Estados Unidos pode fazer com que os chineses voltem a comprar commodities, especificamente soja e carne, dos norte-americanos. Então, as empresas brasileiras podem ter um impacto forte”, conjectura Bojikian, que também lembra que a China é um forte investidor na economia nacional e permanece como tal apesar da retórica atual.

O professor torce por essa possibilidade de arrefecimento, porque pode aliviar a pressão por um posicionamento brasileiro, majoritariamente pró-Trump. “Isso pode ser um problema ali na frente. A China até agora tem dado algumas respostas diplomáticas, mas tem lidado com uma certa paciência em relação ao governo Bolsonaro. Só que essa paciência talvez tenha um limite e podemos ter um efeito muito grande caso ela acabe. E a economia, que vai precisar se recuperar num mundo pós-Covid-19, pode ser a principal vítima”, avalia sobre o porvir para os laços sino-brasileiros. E, embora as percepções sobre o tempo possam ser filosoficamente e diplomaticamente diferentes, no relógio, os ponteiros giram na mesma velocidade. No calendário, os dias têm duração igual. E restam poucos dias para as eleições que podem redefinir o xadrez global.

Correio do Povo
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