Antártica: isolamento de gelo contra o coronavírus

Antártica: isolamento de gelo contra o coronavírus

16 brasileiros estão na Estação Comandante Ferraz, protegidos pela imensidão do único continente livre da pandemia

Por
Henrique Massaro

Neste momento, quando o número de casos do novo coronavírus no Brasil passa de 530 mil, há exatamente 16 brasileiros no mundo que não correm nenhum risco de infecção. O segredo é o isolamento social em níveis que nenhuma outra pessoa conseguiria dentro de suas casas, garantido por 14 milhões de quilômetros quadrados de neve e gelo. Essa é a barreira natural que cerca a Estação Comandante Ferraz, a base brasileira na Antártica. O continente é o único território do planeta considerado livre da Covid-19, curiosidade que tem ganhado a atenção da mídia que nos últimos meses traz as notícias de uma doença com impactos mundiais.

Assim como nas bases de outros países, as pessoas que estão neste momento na estação brasileira chegaram antes da pandemia e, desde então, não receberam a chegada de mais ninguém. Como ocorre em todos os invernos, ficam sozinhas realizando as manutenções que o local demanda 24 horas por dia. Este ano, no entanto, fazem uma preparação sem precedentes para o final do ano, quando a tendência é de chegada de cientistas e militares para o começo dos trabalhos no verão antártico.

Entre as 16 pessoas que compõem o Grupo Base Ferraz e realizam principalmente serviços apoio a pesquisas que seguem ocorrendo e manutenção interna e externa da estação, a médica responsável, capitã tenente Letízia Aurilio Matos, está em sua primeira missão na Antártica. Como todos que chegam no local mais isolado do planeta, enquanto se encantava pela paisagem, ela começou a colocar em prática o que aprendeu em cerca de um ano de treinamento, mas foi surpreendida com uma responsabilidade sem precedentes: ajudar a manter o continente livre de um vírus que tomou conta do restante do mundo. Para isso, um plano de contingência foi elaborado para controlar desde o transporte de alimentos até a chegada de pesquisadores, que ocorre sempre entre outubro e novembro.

“É um ganho pessoal e profissional imensurável” (Letízia Aurilio Matos, médica da estação)

Os mantimentos da Estação Comandante Ferraz são suficientes para garantir a sobrevivência da equipe com tranquilidade até fevereiro, dois meses antes da previsão de retorno. O Grupo Base conta com carnes refrigeradas e alimentos não perecíveis estocados. O que falta, no entanto, é uma variedade nutricional vinda de frutas, legumes e verduras, que, devido à necessidade de consumo mais imediato, eram enviadas para o local a cada 45 dias em voos da Força Aérea Brasileira (FAB) e lançadas de paraquedas em caixas de madeira. Devido à necessidade de prevenção, essa foi uma das medidas que acabou sendo revista, mas, durante o mês de junho, o plano de contingência conseguiu viabilizar um processo de desinfecção para que um voo ocorra. Todos os itens serão desinfectados em um ponto de apoio no Rio de Janeiro antes de serem passados para a FAB, que repetirá os procedimentos antes de lançar os alimentos na Antártica, onde serão desinfectados novamente. Ou seja, serão três etapas para evitar a chegada do coronavírus.

“A condição de manter a desinfecção, a limpeza, essas particularidades do voo, tivemos que planejar para fazer de forma bem coesa e que não afete ninguém e nem as estações próximas”, explica a médica da Estação Comandante Ferraz. O plano de contingência que vem sendo organizado por Matos também envolve fatores mais complexos, como a chegada de mais pessoas no continente, já que, por enquanto, ainda não se trabalha com a alteração de datas. Quem ditará o ritmo das medidas será a própria pandemia, o que representa um desafio e um aprendizado para a profissional da saúde que vive uma das situações mais atípicas de enfrentamento ao coronavírus no mundo inteiro. “É um ganho pessoal e profissional imensurável”, explica.

O mesmo processo de cuidados precisarão ser tomados se a ida de pesquisadores e equipes de verão for mantida. Ainda no Brasil, segundo a médica, será feita uma triagem, submetendo todos os a exames específicos de detecção do coronavírus para garantir que ninguém infectado chegue na Antártica. Caso, mesmo assim, as medidas não sejam suficientes e alguém no continente pegue a doença, há também um plano de evacuação. O setor de saúde dentro da Estação Comandante Ferraz tem equipamentos e medicamentos para estabilizar um paciente e, em seguida, transferi-lo para a estação mais próxima com capacidade de evacuação aeromédica, a base chilena Presidente Eduardo Frei Montalva. Dali, pode ser feito o transporte para o hospital em Punta Arenas, no Chile.

As missões do Grupo Base duram 13 meses. Das 16 pessoas que estão na Comandante Ferraz, 15 chegaram em novembro e apenas uma chegou no início de março, apenas dias antes da preocupação com o novo coronavírus atingir níveis mundiais. Apesar da possibilidade de ter que prolongar a permanência na Antártica não ter sido descartada, por enquanto não houve alteração nas datas planejadas.

Diferentemente da médica que está em sua primeira missão, o chefe do Grupo Base Ferraz, Luciano de Assis Luiz, que é capitão de fragata da Marinha do Brasil, já tem experiências na Antártica desde 2010, em apoios rápidos ou a bordo do navio Almirante Maximiano. Em nenhuma dessas vezes – e, provavelmente, em nenhuma missão anterior – percebeu tanta curiosidade da mídia em relação à rotina no continente. Ele acredita que o interesse já existiria naturalmente devido a este ser o primeiro ano da Estação Comandante Ferraz, inaugurada em 15 de janeiro, oito anos depois do incêndio na base anterior, mas acabou sendo potencializado devido à situação de isolamento do local em relação ao vírus que atinge o restante do mundo.

É uma oportunidade de mostrar ao público o trabalho que é desempenhado no inverno por 16 pessoas em uma estação de 4,5 mil metros quadrados – a anterior tinha 2,3 mil e o módulo Antártica Emergencial, utilizado após o incêndio, era de 900 mil metros quadrados. As atividades diárias são, principalmente, relacionadas à manutenção, como, por exemplo, dos equipamentos internos e externos, dos sistemas de combate a incêndio e geração de energia ou na estrutura como um todo.

“Tendo coronavírus ou não, a rotina seria a mesma" (Luciano de Assis Luiz, chefe do Grupo Base Ferraz)

O chefe do grupo conta com um sub-chefe e o setor de saúde, além da médica, tem um enfermeiro. Há, ainda, um cozinheiro, um responsável pela comunicação e um pela parte eletrônica, fazendo com que todas as outras 9 pessoas desempenhem funções relacionadas mais diretamente à manutenção, como um encarregado de serviços gerais e um mestre. Há também dois encarregados da parte de motores, que cuidam do maquinário, frigoríficos, geradores e troca de óleo; um engenheiro naval, responsável pelos tratores, quadriciclos e retroescavadeira; e dois mergulhadores, que gerenciam toda a parte de água, como tratamento, estações de esgoto e de águas cinzas.

“Tendo coronavírus ou não, a rotina seria a mesma. A partir do momento que os navios saem daqui, a gente não tem contato com mais ninguém”, explica Luiz. O isolamento social, portanto, é uma realidade com a qual os profissionais envolvidos em expedições polares estão acostumados e para a qual se preparam física e emocionalmente, diferentemente do restante da população que, de uma hora para a outra, se viu obrigada a ficar em casa devido à ameaça da Covid-19. “Mal comparando, é como se eu soubesse que vai ter uma pandemia e preparasse todo mundo bem antes de acontecer aquilo.”

Ensinamentos para a quarentena

Dentro de um continente naturalmente isolado, o isolamento não é uma novidade. A história da exploração polar é marcada por episódios em que pesquisadores precisaram adiar em muito tempo seu retorno para casa. A quarentena pode ter provocado incertezas em uma época em que o transporte aéreo se tornou uma realidade para possibilitar a troca de pessoal durante o inverno, mas nem sempre foi assim. Conhecido como o “pai da glaciologia” no Brasil, Jefferson Cardia Simões começou a ir para a região polar no início da década de 1990, quando precisava ficar de dois a três meses sem contato com a família, situação que, no entanto, já era privilegiada na comparação com cientistas mais antigos. “Conheci gente que ficou dois anos na Antártica e tinha direito a um telegrama de 30 palavras por mês”, recorda.

Mesmo para pesquisadores acostumados à tecnologia dos últimos anos, que permite acesso a telefone e internet, o nível de isolamento que precisam se submeter nas missões polares supera e muito a realidade que pessoas no mundo inteiro enfrentam agora durante a quarentena. Conforme Simões, a moderna Estação Comandante Ferraz, onde está instalado o Grupo Base, corresponde apenas entre 25% a 30% dos locais da pesquisa antártica brasileira. O restante se divide entre o Navio Polar Almirante Maximiano, o Módulo Criosfera 1, da Ufrgs, e os acampamentos, que são formados por pequenos grupos de pessoas no meio do continente. São cerca de 500 quilômetros sem nada nem ninguém mais por perto, um verdadeiro deserto de gelo.

Para se ter uma noção da imensidão que forma o isolamento natural na Antártica, o diretor do Centro Polar e Climático da Ufrgs, Francisco Eliseu Aquino, explica que a distância de um acampamento com relação à Estação Comandante Ferraz é praticamente a mesma que separa a base brasileira na Antártica de Porto Alegre. Além de estar no meio do nada, de acordo com ele, que já chegou a ficar 100 dias acampado, as condições são sempre extremas. Em temperaturas que marcam 20 graus negativos, não há como tomar banho nenhuma vez, por exemplo. Para conseguir captar água, seria necessário derreter e esquentar neve, o que representaria um gasto excessivo de gás.

“Tudo vira uma atividade que desenvolve ou implementa habilidades" (Francisco Eliseu Aquino, Ufrgs)

Questões como essa, contudo, fazem com que a experiência na exploração polar seja uma interessante ferramenta para um momento de adaptação da sociedade a condições mais restritas que o de costume. É como se a vida na neve e no gelo da Antártica extrapolassem alguns dos desafios do período de isolamento social causado pelo coronavírus. A constatação quanto à geração de lixo, que tem espantado algumas pessoas devido ao acúmulo em um mesmo local, por exemplo, já é algo feito de forma consciente pelos pesquisadores que, depois da missão, trazem todos os seus resíduos de volta.

Aquino cita como outro grande exemplo o paradoxo entre a dificuldade e a necessidade de se estabelecer uma rotina, bastante marcante principalmente no início da quarentena. Ter horário para acordar, dormir e se alimentar passou a parecer irrelevante uma vez que problemas como trânsito deixaram de existir. Em poucas semanas, muitas pessoas passaram a perceber que a produtividade caiu enquanto a ansiedade e o estresse aumentaram. Na Antártica, o mesmo dilema acontece, já que, durante o verão, praticamente não há noite e a própria noção de tempo parece se tornar imaginária.

A solução dos pesquisadores polares é se dedicar a criar uma rotina e segui-la com disciplina. As tarefas domésticas são divididas, assim como o trabalho, que, apesar de científico, também é braçal. É necessário cavar trincheiras em uma neve dura como pedra, trocar baterias, fazer conexões e consertar equipamentos. “Tudo vira uma atividade que desenvolve ou implementa habilidades de solucionar problemas”, explica Aquino.

O mesmo ocorre com quem está durante o inverno na Estação Comandante Ferraz. Do lado de fora, agora as temperaturas chegam aos 11 graus negativos, com sensação térmica de 20 graus abaixo de zero. O sol começa a aparecer depois das 9h e desaparece a partir das 16h. Em julho, o período de luminosidade diminui ainda mais. Independente da luz, do lado de dentro, protegidos pelo ambiente climatizado, os integrantes do Grupo Base mantêm a disciplina com os horários para acordar, se alimentar, trabalhar e também de ter o lazer, seja na academia ou assistindo a algum filme. O segredo, conforme o chefe Luciano de Assis Luiz, é manter uma continuidade e um equilíbrio nas atividades.

Marcas da pandemia na neve

As marcas que o novo coronavírus está deixando no planeta poderão estar eternamente registradas graças às regiões polares. Essa é uma das questões sobre a qual parte da comunidade científica internacional deverá se debruçar assim que for possível retomar as pesquisas de campo na Antártica. Vice-presidente do Comitê Científico sobre Pesquisa Antártica, Jefferson Cardia Simões explica que é provável que as camadas de neve superficial do continente contenham registros de micro-organismos afetados pela Covid-19. Em outras pandemias e epidemias, de acordo com ele, foi possível coletar amostras de vírus e bactérias que conseguiam sobreviver a condições extremas. “A circulação atmosférica não tem fronteiras, continência. A grande questão é a concentração”, comenta.

Durante a epidemia de H1N1, há 11 anos, por exemplo, foi estudada a possibilidade de transmissão do vírus através da migração de pássaros, mas não foram encontradas evidências, explica Simões. Ainda de acordo com ele, contudo, trabalhos anteriores conseguiram verificar a concentração de poluentes atmosféricos que baixavam na Groenlândia no auge da Peste Negra, no século 14. Esse tipo de estudo é importante do ponto de vista da climatologia histórica, que, nesse caso, poderia permitir a reconstrução da história de pandemias do passado a partir das amostras de neve e gelo coletadas de regiões polares.

"Vamos ter mais eventos de pandemia" (Jefferson Cardia Simões, Ufrgs)

A procura das marcas do coronavírus, por enquanto, não deve ser foco dos pesquisadores brasileiros, mas o estudo da história do clima é um dos principais focos de interesse de Simões, que é criador do Centro Polar e Climático da Ufrgs. O clima e o gelo, controladores do sistema climático das latitudes, fazem parte de uma das grandes áreas de investigação da Antártica. Com a coleta de amostras das profundezas de geleiras, após uma série de análises, cientistas conseguem observar características do clima no passado. São os chamados testemunhos de gelo, que em alguns casos já chegaram a 800 mil anos. Com a comparação com o clima de hoje é possível verificar, por exemplo, o aumento das concentrações de CO2 e CH4.

Os cenários de mudança climática estão também diretamente ligados às doenças infecciosas, que devem continuar ocorrendo se o processo de desmatamento não sofrer modificações. “Vamos ter mais eventos de pandemia, principalmente devido à transmissão no contato de animais com homens”, explica Simões.

Futuro da pesquisa

Uma das grandes dificuldades que preocupam toda a comunidade científica é a logística que será necessária para garantir a ida de pesquisadores ao continente, que normalmente ocorre em outubro. Uma série de medidas precisarão ser tomadas para evitar a contaminação intercontinental, como, por exemplo, cuidados com os navios que normalmente, durante o verão, chegam a mais de 40 estações abertas na Antártica. Uma vez contaminados, a descontaminação desses locais é complexa. “Tenho discutido internacionalmente e provavelmente teremos uma missão no fim do ano bastante restrita, tomando todos os cuidados possíveis”, avalia Jefferson Simões.

No que diz respeito à ida de pesquisadores brasileiros no final do ano, o problema não será apenas logístico, mas financeiro. A situação da pesquisa, que já não vinha bem nos últimos anos, tende a se agravar nesse momento de crise sem precedentes. Todo o custeio das missões é em dólar, que disparou de pouco mais de R$ 4 chegando próximo de R$ 6. “Está tudo dependendo de dinheiro”, resume.

Nos finais e inícios de ano, o continente costuma receber não só as missões de pesquisadores, mas milhares de turistas. A indústria do turismo polar, na opinião de Simões, deve ser o maior motivo de estresse nos próximos meses pois representará a maior fonte de contaminação. De acordo com ele, o setor vinha crescendo descontroladamente, chegando a 40 mil visitantes por ano, enquanto que o número de cientistas, militares e pessoal de apoio chega a, no máximo, cinco mil pessoas. Na Estação Comandante Ferraz, de acordo com o chefe Luciano de Assis Luiz, a preocupação também é com o turismo, já que não haveria como fazer um controle de testes como será feito com os cientistas. Caso ocorra a ida de turistas para o continente, o mais provável é que seja proibido o desembarque na estação.

*Foto: Marinha do Brasil / Divulgação / CP MEMÓRIA

 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895