Convulsão continental: os protestos na América Latina

Convulsão continental: os protestos na América Latina

Levantes populares, golpes, embates entre policiais, população e militares mortos e feridos. Em países comandados por direita ou esquerda, populações vão às ruas

Por
Simone Schmidt

Quadriculada e multicolorida, a Wiphala tremula nas mãos dos manifestantes. A bandeira que simboliza a união dos povos andinos ganhou destaque entre os muitos acontecimentos que sacodem a América Latina nestes últimos meses, mergulhada em embates entre militares, policiais e população tanto em países governados pela esquerda quanto pela direita. Na Bolívia, a Wiphala lembra a força do indígena e sua capacidade de resiliência e luta, além do amor pela Pacha Mama, ou a Mãe Terra, em tradução livre.

Evo Morales renunciou à presidência do país no dia 10 de novembro, um domingo, após denúncias de fraude em sua reeleição em primeiro turno. Indígenas e sindicatos saíram em sua defesa, contestando as acusações de fraude e agradecidos pela diminuição da pobreza e pelo crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) em 5% ao ano. As manifestações, no entanto, entraram em choque com opositores de Morales e o país já computa mais de 30 mortos e centenas de feridos. A crescente tensão nas ruas foi um dos motivos que levaram Evo a deixar o cargo. Além disso, mais recentemente o governo interino que assumiu após a renúncia baixou um decreto que permite à Polícia disparar armas “em legítima defesa” nas ruas de La Paz e outras cidades bolivianas. A iniciativa despertou reações de organismos internacionais, que interpretaram a nova lei como “licença para matar”.

Não muito longe dali, na Venezuela, outro governo de esquerda vive um drama há muito mais tempo, mas as mobilizações e confrontos se ampliaram de fevereiro para cá. Nicolás Maduro, sucessor de Hugo Chávez, lida com protestos consecutivos e saques no comércio. Sua reeleição também foi questionada em maio de 2018 e o país é palco de protestos contra e a favor de Maduro. Parte da população está com o presidente por entender que ele tenta barrar o interesse norte-americano na maior riqueza do país, o petróleo, que em outros tempos representou pujança para a Venezuela. Hoje, seguidamente os Estados Unidos oferecem ajuda humanitária, propondo doar alimentos e medicamentos à população, e há quem analise essa oferta como um pretexto para tomar conta do petróleo venezuelano. Na via contrária, o líder da oposição Juan Guaidó, que se autoproclamou presidente, tenta derrubar Maduro e busca justamente o auxílio de Washington para isso, além de convocar passeatas em Caracas. Cinquenta países reconhecem Guaidó como presidente interino, entre estes Brasil e Estados Unidos. A Organização das Nações Unidas (ONU), no entanto, segue registrando Maduro como chefe de Estado.

E se há crises nos governos de esquerda, a direita também passa por conflitos iguais ou maiores. O projeto neoliberal aplicado no Chile provocou insatisfação que parece não ter fim. Protestos gigantescos, que começaram por causa do aumento da tarifa do trem, levaram a população a questionar situações que mexiam muito mais com suas vidas, a começar pelas regras adotadas em pagamentos de benefícios como pensões e aposentadorias, que depois de décadas de contribuição em planos de capitalização resultavam em benefícios mensais de menos de um salário mínimo na velhice. Farta dos resultados, a população pede mudança na Constituição. Outro governo à direita, o da Argentina, não provocou noticiário de violência apesar de os protestos também se realizarem. Neste caso, porém, a população deu sua resposta à gestão de Mauricio Macri nas urnas. Escolheu em outubro, como presidente, o adversário Alberto Fernández, peronista e de centro-esquerda que leva junto a ex-presidente Cristina Kirchner como vice. E se na Argentina não se veem tantos protestos com confrontos diretos, de um modo ou de outro as manifestações também causam dor, mas na alma. Grandes mesas são montadas a céu aberto nas avenidas centrais de Buenos Aires e a comida é preparada ali mesmo para alimentar quem está passando fome. A pobreza que já atingia 30% da população em 2016 chegou a 35% este ano.

Há dificuldades em países da América Latina ocorrendo quase simultaneamente. O continente se inflama em protestos e, no extremo desses episódios, os confrontos com a Polícia acabam em mortes e em milhares de feridos. Além de Chile, Bolívia, Venezuela e Argentina, o Equador e Colômbia tiveram mobilizações.

No Equador, por quase duas semanas, na primeira quinzena de outubro, passeatas, bloqueios nas ruas e danos a prédios ocorreram em diferentes cidades contra um polêmico decreto do presidente Lenín Moreno que acabava com o subsídio aos combustíveis, o que representaria aumento de até 120% no preço. Caminhoneiros deram início aos atos dos quais a população em geral participou depois, resultando em 10 mortes e centenas de feridos.

A revolta foi tanta que diariamente havia toque de recolher e até mesmo a sede do governo precisou ser transferida da capital Quito para Guayaquil. Foi também o combustível o motivo para novos conflitos no Haiti, que já nem tinha mais militares de várias partes do mundo cumprindo missão de paz em seu território. O ambiente parecia mais calmo, mas a revolta voltou com força em setembro em reação à escassez de gasolina, e ganhou ainda mais ênfase nos protestos contra o governo de Jovenel Moïse. Quarenta e duas pessoas morreram em setembro por conta dos confrontos.

A última semana também marcou a entrada da Colômbia na lista de países em convulsão. Os protestos já ocorriam, mas foi na quinta-feira que as manifestações em Bogotá, Cali e Medellín formaram uma imensa greve geral, parando inclusive os transportes, e em consequência escolas e empresas. A mobilização se organizou por meio do chamado de sindicatos de trabalhadores, indígenas e ativistas do meio ambiente. A população demonstra nas ruas seu descontentamento com o governo do conservador Ivan Duque, que faz reformas nos sistemas trabalhista e de previdência. Dias antes, veículos de comunicação e grupos de artistas haviam sido intimidados por meio de batidas policiais.

Que resultados virão de todos esses acontecimentos que “explodem” ao mesmo tempo pelo continente não se sabe, mas o professor Alessandro Miebach, mestre e doutor em Economia e docente do Curso de Relações Internacionais da Ufrgs, assinala que, seja qual for a ideologia ou a forma de governo, o processo de desenvolvimento na América Latina hoje é uma incógnita. “Será preciso encontrar o caminho tateando”, prevê.

Andrés Haines, outro professor do curso de Relações Internacionais, trabalha com temas como desenvolvimento, modelo neoliberal e geopolítica. Haines acredita que no Chile o conflito está ligado a um sentimento de frustração. “Houve um esgotamento com as políticas sociais”, ressalta, lembrando que enquanto a população se manifestou pacificamente, não foi ouvida, e que a violência surgiu a partir de uma insatisfação reprimida durante anos. “Ficou consagrado que as pessoas cansaram. Se no protesto pacífico não me dão atenção, que opção eu tenho? Essa demanda não é de agora”, observa. Na mesma linha de pensamento, Miebach reflete: “A sociedade não se vê no sistema e vai reagir a ele”. Haines ainda recordou que, no Chile, não é obrigatório votar e que o governo atualmente no poder foi eleito por 25% da população, parcela minoritária que se dispôs a ir às urnas.

Sobre a Argentina, o professor frisa que a opção de Macri, governando desde 2015, foi recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) para reorganizar a economia, mas os 56 bilhões de dólares (R$ 240 bilhões) emprestados pelo organismo exigiam medidas de austeridade que, entre outras coisas, reduziram iniciativas em saúde, educação e empregos. A medida tomada pelo governo fez a recessão se agravar, o que poderia levar a crer que o maior problema do país seria econômico. Haines, no entanto, discorda e deixa bem claro que antes de tudo a questão é política. “Macri precisava fazer a política de endividamento que fez?”, questiona. Ele acrescenta que sempre há uma dimensão econômica, mas que é a via política que impõe iniciativas e definições. “Ele não fez isso porque havia um único caminho”, avalia.

Os motivos para protestos grandes e constantes são muitos e diferentes em cada país latino-americano. “Trajetórias peculiares”, afirma o professor Miebach. Entretanto, há em comum entre esses povos a necessidade de mudança, algumas vezes abafada por forças militares, outras vezes relegada a um segundo plano e só atendida quando bombas, incêndios e bloqueios de avenidas impõem pressão aos governantes. “O teatro onde são apresentadas as peças é o mesmo, mas os roteiros são diferentes”, conclui Miebach.

Desgaste contribuiu para golpe na Bolívia

Evo Morales presidiu a Bolívia de 2006 até o domingo retrasado, quando renunciou ao cargo após um conturbado e desgastante processo que começou em 20 de outubro com as eleições presidenciais. Um governo interino tomou o poder com a senadora Jeanine Añez se autoproclamando presidente, com apoio das Forças Armadas, e prometendo novo pleito para janeiro, proposta que já foi para o Congresso. A mudança abrupta se deu a partir da reeleição de Morales em primeiro turno e parecia ser a última gota de um copo cheio que derramou. Morales mudou a Constituição em 2009 para que houvesse no país a possibilidade de reeleição, ou seja, dois mandatos seguidos de cinco anos cada um. Esse mecanismo possibilitou que ele disputasse novamente a presidência em 2010 e também em 2014. Em 2016, no Legislativo, aliados do então presidente convocaram referendo para mudar a Constituição mais uma vez, o que permitiu a Morales disputar um quarto mandato um mês atrás. O detalhe é que naquele referendo a proposta havia sido rejeitada pela maioria dos eleitores por pequena margem e, mesmo assim, um ano depois, o presidente conseguiu a liberação do Tribunal Constitucional para concorrer indefinidamente. A Justiça decidiu em novembro de 2017 que o limite de dois mandatos presidenciais seria “uma violação dos direitos humanos”. Em outras palavras, a justificativa dada na época defendia que

todo e qualquer cidadão poderia se candidatar à presidência e Morales se utilizou dessa premissa esquecendo as outras regras. A oposição então acusou o Judiciário de passar por cima do resultado do referendo. E foi nesse tom que Morales se candidatou ao quarto mandato consecutivo. As iniciativas do ex-presidente, certas ou erradas, avaliam analistas, não justificam um representante das Forças Armadas “sugerir” a um chefe de Estado que ele renuncie. Na prática, partidos de oposição se valeram de todos esses acontecimentos em 13 anos de mandato e foram trazendo para perto de si os militares, que deram o último “empurrão” para consolidar a renúncia.

Morales havia vencido em primeiro turno a eleição realizada em 20 de outubro, já que um índice de 40% dos votos havendo margem superior a 10 pontos percentuais de diferença para o segundo colocado permite vitória. O resultado ficou em 47,1% para Morales e 36,5% para o adversário Carlos Mesa, diferença de 10,6 pontos. Entretanto, como houve dois sistemas de contagem usados pelo Tribunal Eleitoral e números diferentes nos resultados, a oposição acusou Morales de fraude. Além disso, a contagem dos votos ficou paralisada por 20 horas e erros foram apontados em atas de apuração em cidades do interior. Em uma dessas regiões, o então governador de Cochabamba, Ivan Canelas, validou as atas em discussão, acirrando ainda mais os ânimos. Como havia dúvida sobre os documentos e a margem foi pequena na diferença de 10 pontos, os questionamentos sobre o pleito se multiplicaram. O ambiente ficou propício para que o opositor Luis Fernando Camacho buscasse o apoio das Forças Armadas contra o então presidente, o que analistas entendem como golpe tudo que se deu a partir dali.

A história mostra que há muito tempo a Bolívia é o país dos golpes. Algumas publicações relacionam um por ano entre 1850 e 1950 na terra que se tornou independente da colônia espanhola em 1825 por obra de Simon Bolívar. Golpes também marcaram a Bolívia em 1964 e em 1980, este último com a instituição de um governo militar que derrubou Lydia Gueiler, primeira mulher a governar o país.

Poucos dias após a votação ocorrida em 20 de outubro, uma missão da Organização dos Estados Americanos (OEA) foi à Bolívia a convite do próprio Morales para revisar o pleito que a oposição denunciava como fraudulento. A entidade aconselhou nova eleição. A esta altura, o opositor Luis Fernando Camacho, empresário do ramo de seguros e uma liderança em entidades empresariais, mas sem cargo eletivo, passou a exigir a saída de Morales do poder. Ganhou o apoio dos militares e mesmo após Morales ter convocado novo pleito, a pressão de renúncia feita pelas Forças Armadas foi atendida. O ex-presidente se asilou no México junto com o filho e com o ex-vice Álvaro García Linera. Como os presidentes e vices do Senado e da Câmara também renunciaram, a segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Añes, de oposição a Morales, se autoproclamou presidente da Bolívia e promete realizar nova eleição até janeiro do ano que vem.

Analistas acreditam que Morales teria se agarrado demais ao poder, adotando diferentes mecanismos para se manter na presidência por 13 anos, o que teria provocado desgaste. O que se discute, entretanto, é a interferência das Forças Armadas, já que o próprio Morales, ao ser informado sobre fraude na votação, havia convocado novo pleito. A oposição, porém, pedia mudança imediata e pressionou pela renúncia, o que gerou embate nas ruas entre policiais e manifestantes, incêndios, bloqueios nas estradas e a consequente escassez de alimentos e combustível, além de prisões de autoridades dos tribunais bolivianos e a saída de ministros e governadores de seus cargos. A que resultados todo esse confronto levará, não se sabe, mas o professor Alessandro Miebach, do curso de Relações Internacionais da Ufrgs, ao relembrar conflitos não só na Bolívia mas em outros países, conclui: “A América Latina está em um momento de polarização”.

Interinidade, decadência e pobreza: a saga venezuelana

Juan Guaidó se autoproclamou presidente da Venezuela no ano passado com a missão de tirar Nicolás Maduro da presidência e convocar novas eleições, já que o último pleito que reconduziu Maduro em maio de 2018 foi questionado. Guaidó foi em busca de militares dissidentes e do auxílio dos Estados Unidos para cumprir a tarefa. A população se divide entre governo e oposição e há passeatas que enaltecem tanto um lado quanto o outro em regiões opostas de Caracas. No país que teve sua moeda corroída pela inflação, também faltam água encanada, energia elétrica, remédios e alimentos.

O petróleo que garantia a estabilidade financeira não é mais vendido para os Estados Unidos, que era um grande comprador do produto e que cancelou os negócios depois de aplicar sanções ao governo venezuelano. A Venezuela ainda exporta petróleo para a China, mas o processo é mais difícil. Os norte-americanos estão muito mais perto, a logística para mandar petróleo à China é muito mais cara. Sendo assim, as exportações caíram drasticamente e a recessão do país só se agravou. Guaidó tem o apoio do Brasil e é reconhecido como presidente interino da Venezuela junto com outros 50 países. Entretanto, quando recentemente enviou um grupo à embaixada venezuelana no Distrito Federal para invadir o prédio, estabeleceu-se um quadro delicado. O líder interino mandou que a embaixadora Maria Teresa Belandria, nomeada por ele, tomasse posse na representação justamente no momento que começava em Brasília o encontro do Brics, grupo formado por Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul. Rússia e China têm enorme poder bélico e aeronaves militares ultramodernas, e são países aliados a Maduro, dando apoio inclusive com aviões pousando em território venezuelano levando alimentos e remédios. Pois justamente enquanto Vladimir Putin e Xi Jinping, respectivos líderes russo e chinês, amigos de Maduro, circulavam por Brasília para o evento, a oposição venezuelana invadiu a embaixada. O governo brasileiro, anfitrião do Brics, tratou de emitir um comunicado afirmando que não tinha conhecimento da ação e que não apoiava a iniciativa.

Para o jornalista e professor Hermógenes Saviani, docente adjunto do Departamento de Ciências Econômicas da Ufrgs, Guaidó queria chamar a atenção durante o encontro do Brics, que estava cercado de jornalistas do mundo inteiro. Saviani, que integra grupo de estudos sobre a América Latina na universidade, lembra que a embaixada da Venezuela no Brasil está sem representante desde 2016, quando Maduro mandou que seu embaixador voltasse após o impeachment da então presidente Dilma Rousseff. “No meu modo de ver, parecia uma jogada do Guaidó, já que ele conta com a simpatia do governo brasileiro”, observou. “Acho que a notícia vai repercutir bastante, mas não tem efeito prático”, declarou o professor na data da invasão, o último dia 13. De fato, o Ministério das Relações Exteriores, tratou de encerrar o assunto com um comunicado se eximindo de qualquer participação no episódio. O grupo que entrou na embaixada cedo da manhã deixou o prédio 12 horas depois, após negociações das quais deputados brasileiros fizeram parte.

A última grande investida de Guaidó para tomar o poder na Venezuela ocorreu em 30 de abril, quando reuniu militares que estariam supostamente dispostos a quebrar as regras e caminhar com a oposição rumo à deposição de Maduro. O movimento agitou o país, os conflitos que já eram comuns nas ruas se multiplicaram, tanques circulavam pelas vias, mas, no final, o intento de Guaidó não se realizou. Ele chegou a se asilar em países vizinhos por um período, e voltou disposto a tomar o governo e convocar novas eleições. Após essa investida frustrada, um certo silêncio se estabeleceu, mas Guaidó ressurgiu recentemente convocando protestos que se espalharam por Caracas no sábado passado. E, do mesmo modo, outras manifestações apoiavam Maduro. O presidente começou no posto de vice de Hugo Chávez e com a morte deste em razão de um câncer, assumiu o governo em 2013. Em maio de 2018 Maduro foi reeleito, mas o pleito é questionado por opositores.

Chile exige nova Constituição

A frase “O Chile acordou” dominou as redes sociais desde que eclodiram em Santiago as primeiras manifestações nas ruas, quando a população decidiu que não deixaria barato o aumento do preço da tarifa do trem, em 18 de outubro. Os embates com a Polícia e o fogo bloqueando as vias tomaram conta da capital. Assustado, o presidente Sebastian Piñera anulou o reajuste, mas o caminho já não tinha volta. Os conflitos seguiram diários, e aquilo que era uma crítica específica ao transporte urbano se transformou em descontentamento geral. Previdência com valor de benefício muito baixo, reclamações quanto à qualidade do atendimento na saúde e na educação levaram a um objetivo maior. O chilenos passaram a exigir mudança na Constituição e, no dia 26 de outubro, havia 1 milhão de manifestantes na Praça Itália, região central de Santiago. A hashtag #LaMarchaMasGrandeDeChile foi trending topic global no Twitter.

A Constituição chilena é do tempo do general Augusto Pinochet, ditadura que começou em 1973 e terminou em 1990, mas a carta magna da época se manteve viva. Diante da agitação e das 23 mortes e centenas de feridos, Piñera prometeu mudança, mas tudo é muito lento diante do conflito que se desenrolou. De fato, um projeto foi enviado ao Legislativo, mas o plebiscito no qual a população decidirá sobre mudar ou não a Constituição está previsto somente para abril. Enquanto isso, só a estatística sobre ferimentos nos olhos de manifestantes chega a 200 pessoas, o que fez com que o governo lançasse alerta sanitário e, na prática, destinasse mais verbas aos órgãos de saúde. As ocorrências são resultados de gás e balas de borracha lançados por policiais nos rostos dos manifestantes. A Constituição do Chile é controversa porque, entre outras coisas, define

que serviços básicos como saneamento, saúde e educação podem ser desempenhadas mais pela iniciativa privada e menos pelo Estado. Outra dificuldade é modificá-la. Hoje são exigidas votações com maioria de dois terços ou três quintos dos deputados e senadores em exercício para qualquer alteração. Houve uma reforma em 2005, porém considerada insuficiente.

Recessão argentina impulsionou resposta

O dia 10 de dezembro marcará a posse do novo mandatário na Argentina. Alberto Fernández derrotou Mauricio Macri, que era candidato à reeleição. Fernández é um peronista de centro-esquerda e tem como vice Cristina Kirchner, a ex-presidente que governou de 2007 a 2015 e que responde a processos judiciais por corrupção. Os argentinos elegeram Fernández e Cristina em 27 de outubro com um índice de votos em 48%, o que garantiu a vitória em primeiro turno, já que para isso é necessário resultado superior a 45%.

Assim como chilenos, equatorianos, venezuelanos e bolivianos, os argentinos foram às ruas mostrar seu descontentamento, mas os protestos não tiveram o saldo trágico de mortos e centenas de feridos como em outros países latino-americanos. Passeatas chamavam a atenção para a fome no país. A decadência de Macri veio com o plano de austeridade em troca do empréstimo concedido pelo Fundo Monetário Internacional para estabilizar a economia. No entanto, a moeda se desvalorizou bruscamente diante do dólar, os empregos desapareceram e os serviços básicos escassearam. Dois anos antes, no final de 2017, a Previdência passou por reformas e aí sim, naquele período, as mobilizações foram mais violentas. No mês passado todos essas lembranças se acumularam e a ideia de manter Macri no poder perdeu o sentido para a maioria dos eleitores.

A economia frágil na Argentina não beneficia ninguém na vizinhança. Basta lembrar o comércio de automóveis com o Brasil. "Não é bom para ninguém, para os vizinhos ou para a região. Todos ficam mais fragilizados e expostos", reitera o professor André Haines, do Departamento de Ciências Econômicas da Ufrgs, que pesquisa sobre o desenvolvimento da Argentina. Ainda assim, Haines pondera que o país vizinho conseguiu uma espécie de meio-termo em sua trajetória, já que houve um caminho democrático, diferente de outras nações próximas que enfrentam com mais gravidade a truculência da Polícia e a interferência militar.

Desafios, dissabores e esperança

A América Latina mostra incontáveis regiões tomadas pela agitação e insatisfação e em vários países ao mesmo tempo. De algum modo, o cansaço com certos projetos se revela. Venezuela e Bolívia estão posicionadas à esquerda, mas no primeiro caso a inflação galopante e a falta constante de itens básicos ainda deverá trazer capítulos imprevisíveis. Os bolivianos lidavam com acusações de fraude contra Evo Morales, mas ainda viam possibilidade de uma nova eleição diante do trabalho de observadores da OEA, o que se desmanchou a partir da interferência das Forças Armadas, e o país é atualmente palco de filas quilométricas para comprar carne, ovos e verduras. O desafio é realizar novo pleito até janeiro. O Chile, com uma proposta liberal herdada da ditadura, chega a um momento crucial e precisará se remodelar por completo mudando a Constituição, um pedido que vem das ruas. A Argentina viu a desvalorização de sua moeda e o avanço da recessão e da pobreza e há um empréstimo feito no exterior a ser pago. Em todos os casos, reconstrução é a palavra no topo das prioridades. Quem já viveu nesses países ou ainda mora por lá tem esperança de dias melhores.

“Os bolivianos devem ter novas eleições no menor tempo possível. Para isso é importante que o novo Tribunal Supremo Eleitoral esteja formado por membros probos e que não deixem dúvidas sobre sua credibilidade”, considera a jornalista Rocío Lloret Céspedes, que falou com o Correio do Povo por telefone. Ela mora e trabalha em Santa Cruz de la Sierra como editora-chefe do La Region, jornal especializado em meio ambiente. Rocío reitera que a renúncia foi consequência de atos violentos que já se desenrolavam pelo país, além do comprometimento da credibilidade de Morales com as denúncias de fraude na eleição. A jornalista lembrou acontecimentos como casas de autoridades sendo queimadas nas horas que antecederam a saída do então presidente, para pressioná-lo a renunciar. Àquelas alturas, recorda, Morales já havia perdido a conta de quantos ministros tinham renunciado e sua permanência no cargo já estaria insustentável.

“Tem que tirar todos esses caras de lá.” A frase é da enfermeira venezuelana Rinoa Costas, que vive há cinco anos em Porto Alegre. Ela veio com o marido, que é médico quando diz “tirar todos”, Rinoa se refere tanto ao presidente Nicolás Maduro quanto ao opositor e autoproclamado presidente interino Juan Guaidó. A decisão de deixar a Venezuela se deu, segundo ela, em um momento que não estava tão caótico quanto hoje, mas que já se mostrava difícil, com eternas corridas ao supermercado para encontrar itens necessários e ainda garantir preço, porque a inflação mudava o valor todos os dias. Rinoa e o marido chegaram aqui com os quatro filhos, mas como ela diz, a cabeça e o coração ficaram por lá, porque os pais dela e dele ainda estão na Venezuela. “Passam por calamidades, há intermitência de luz e água”, relata. Lembra ainda que a economia está dolarizada e que o dinheiro que ela e o marido enviam para ajudar os familiares muda de cotação da manhã para a tarde. “Hoje 1 real custa 6.400 bolívares”, compara, lembrando que, se cotado na nossa moeda, um frango custa R$ 60. “Se você envia dinheiro hoje, hoje mesmo eles têm que gastar ou perde o valor”, assinala. “Acho que será preciso recomeçar tudo com pessoas que não tenham nada a ver com o chavismo”, opina, mas ressaltando que também não tem grandes esperanças com um futuro trabalho de Guaidó. Para ela, nenhum dos dois está focado em resolver os problemas mais urgentes das camadas mais pobres. “Não estão nem aí para a população. Querem é ficar de bolso cheio”.

A chilena Myriam Vigueras Muñhoz vive em Porto Alegre há 40 anos, mas ainda ouve perguntas incrédulas de pessoas que não entendem como ela pode viver longe do Chile. “Sempre me perguntam porque não estou lá, um país tão maravilhoso, tão estável. O custo social de toda essa maravilha está aí e será muito alto”, ressalta a professora graduada em Letras que leciona língua espanhola em uma escola de idiomas no Bom Fim. Ela também se diverte quando as pessoas lembram como algo “muito importante” a possibilidade de os chilenos poderem entrar nos Estados Unidos sem visto. “E daí?”, brinca. Myriam acompanha pela imprensa os protestos e também recebe notícias de irmãos e sobrinhos que moram lá. “O movimento foi repentino, mas todo mundo já pressentia esse estopim”, observa, assinalando que o descontentamento que começou com o aumento de 30 centavos na passagem do trem deixou uma marca. “Lá o pessoal sempre fala isso: não são 30 centavos, são 30 anos”. A referência de tempo está ligada à época da ditadura de Pinochet, que esteve ativa até 1990, portanto há três décadas. O regime militar terminou, mas a Constituição daquele período segue e, entre outras coisas, destaca a professora, reforça um projeto liberal que afeta aposentadorias, atendimentos em saúde e educação e reduz empregos. Como exemplo, recordou a conversa que teve com um amigo, um microempresário que mora em Santiago e repassou a previsão sobre 100 mil demissões nas empresas de menor porte. O governo Piñera, já no início dos protestos, anunciou o programa “Levantemos sua PME”, mas a iniciativa é voltada especificamente a pequenos empreendimentos que sofreram depredação durante as manifestações e não a incentivos econômicos que reestruturem a saúde financeira.

Myriam conta que veio para Porto Alegre em plena era Pinochet. O ex-marido, na época casado com ela, é professor universitário e havia certa apreensão. Embora a família não fosse filiada a nenhum partido de oposição ao regime, só o fato de não concordar poderia ser perigoso. “Eu não militava, mas ele era simpatizante da esquerda”. Myriam criou os três filhos aqui, sendo que o caçula, com 38 anos, é nascido no Brasil. Os irmãos e sobrinhos que continuam no Chile moram em Temuco, terra onde o escritor Pablo Neruda passou a infância e onde há um museu com seu nome. “Minha família está dividida. Meus irmãos são todos de direita e contra o movimento, mas meus sobrinhos participam das manifestações”, assinala. Sobre o futuro e os resultados de toda essa convulsão, a professora afirma: “Fico triste e preocupada, mas a verdade é que agora apareceu o verdadeiro Chile”. Provocada a definir em uma frase o que acontece em seu país, Myriam conclui: “Para que consigam viver em paz, a palavra é resistência, até conseguirem o que querem”.

*Foto: Jorge Bernal/AFP

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895