O som das remadas corta o silêncio da manhã no Guaíba, em Porto Alegre. Em sincronia, mulheres unem esforços, sentadas lado a lado em duas canoas que formam um catamarã. No rosto de cada uma, a expressão é de determinação, mas também de alegria. São sobreviventes do câncer de mama que transformaram dor em movimento e encontraram no esporte uma forma de superar.
A Awa’pé Dragon Boat, primeira do tipo em Porto Alegre, surgiu para provar que há vida depois do diagnóstico. Fundada em 13 de janeiro de 2024, a equipe integra o movimento internacional das Remadoras Rosa, que hoje reúne mais de 370 equipes no mundo.
A proposta nasceu em Vancouver, no Canadá, em 1995, a partir do médico Donald McKenzie, que demonstrou, em uma pesquisa pioneira, os benefícios da canoagem estilo Dragon Boat para mulheres mastectomizadas. O estudo mostrou que o exercício intenso dos membros superiores reduz complicações como o linfedema, melhora a recuperação física e fortalece a autoestima. O que começou como pesquisa científica tornou-se símbolo de superação em escala mundial.
Em Porto Alegre, a iniciativa surgiu após o diagnóstico de câncer de mama da professora aposentada Mariluce Campos, que já era remadora e não se conformava em não encontrar na Capital uma equipe dedicada ao movimento. “Eu pensei: poxa vida, eu preciso ir até Lajeado para remar. Por que não tem aqui em Porto Alegre? Então decidi assumir esse desafio”, relembra.
Ela entrou em contato com a presidente nacional das Remadoras Rosa, recebeu as orientações para fundar o grupo e seguiu cada passo. Entre os requisitos, era necessário reunir pelo menos 12 mulheres, escolher nome, criar uniforme e buscar apoio. O Sava Iate Clube acolheu a ideia e, em pouco tempo, a Awa’pé saiu do papel.
Hoje, são 28 mulheres cadastradas, entre remadoras ativas e em processo de reintegração à prática. O grupo também montou uma associação que oferece atividades como ioga e apoio terapêutico com psicóloga e assistente social. Para Mariluce, o propósito vai além do barco. “Eu tirei da minha história do meu diagnóstico, um propósito maior, para tê-las ao meu lado. Porque juntas a gente se fortalece.”
FLOR QUE FLUTUA E RESISTE
O nome escolhido para a equipe carrega simbolismo local. Awa’pé é a palavra em guarani para aguapé, flor que cobre as margens do Guaíba e simboliza resiliência. “Trazendo a simbologia da flor de enfrentar as adversidades nas tempestades, flutuando às margens de lagos e rios, as mulheres sobreviventes do câncer de mama buscam, na superação e energia de cada integrante da equipe, a força para retomar a sua vida”, explica a integrante da equipe Lilian Jaboinski.
Lilian também tem sua própria história de resistência. Superou um câncer infantil, com apenas 4 anos, e enfrentou novamente um câncer de mama aos 44. Hoje está em remissão e encontrou na remada um espaço de acolhimento. “Encontrei esse apoio na remada e nas remadoras que são nosso apoio a cada etapa do tratamento que estamos passando”, afirma.
Ainda sem a embarcação oficial, as atletas treinam em catamarã, unindo duas canoas emprestadas para simular o movimento coletivo. Mas o sonho é conquistar o Dragon Boat próprio — uma embarcação chinesa de 13 metros, que comporta 22 remadoras e traz na proa e na popa as esculturas de dragão.
O custo é elevado e, por isso, a equipe realiza eventos para captar recursos. Em outubro – marcado pela cor rosa e pela conscientização do câncer de mama – , um jantar beneficente será organizado, no dia 25, com essa finalidade. E, no início do mês, ocorreu a segunda Remada Rosa Nacional, quando todas as equipes do Brasil entraram na água ao mesmo tempo para afirmar que há vida plena após o câncer.
A remada, no entanto, não é só simbólica. Estudos e a experiência prática mostram que o esporte ajuda a prevenir o linfedema, sequela comum após a retirada dos linfonodos axilares. Além disso, o treino coletivo promove saúde mental, autoestima e amizade. “Além do exercício físico, a prática em grupo promove autoestima, amizade e resiliência. Ajuda a transformar a dor da experiência com o câncer em uma jornada de coragem e inspiração. Diferente de esportes individuais, o Dragon Boat depende do ritmo e união da equipe. Isso simboliza o apoio mútuo que as mulheres oferecem umas às outras durante e após o tratamento”, resume Lilian.
Histórias de luta que inspiram
Entre as integrantes, histórias pessoais se entrelaçam e mostram a pluralidade de trajetórias que o câncer atravessa. A arquiteta Julia Mussi tinha 30 anos quando recebeu o diagnóstico. “Eu estava em uma fase agitada da vida, em que estava tudo certo, até que, de repente, veio o câncer. Tive que insistir com três médicos para fazer meus exames, para ter o diagnóstico precoce, porque eles diziam que eu era muito jovem. Depois da cirurgia, voltei a Porto Alegre e encontrei na equipe a força para recomeçar. Foi o primeiro lugar que me acolheu”, conta.
A microempresária Carmen Luzia Carvalho também encontrou no grupo apoio para atravessar um diagnóstico recente. Ela descobriu o câncer em dezembro de 2023 e fez cirurgia logo no início do ano seguinte. “Estou na equipe há um ano e meio. Tive todo o meu tratamento quimioterápico praticando esporte. Isso me ajudou bastante e me deu força para passar por todos os desafios, mas me deixou muito feliz e fez com que tudo isso fosse muito mais leve.”
Para a compradora Amanda de Souza Nunes, a equipe também foi fundamental para a superação. Após descobrir a doença em novembro do ano passado, ela buscou informações sobre como as mulheres enfrentavam. Foi assim que chegou até a Awa’pé. “Eu ainda estou em tratamento. Ter conhecido a equipe foi um apoio, por estar entre mulheres que também estão passando pela mesma situação. Além dos benefícios do esporte, por não desenvolver os linfedemas, essa rede faz a diferença socialmente”, ressalta.
Já a farmacêutica Patrícia Rodrigues de Almeida, que soube da equipe através da mãe de um aluno da escola em que seu filho estuda, conta que jamais havia imaginado remar, mas enaltece a emoção de estar com mulheres que passaram pela mesma situação que ela. “Eu sinto uma força muito grande. O acolhimento que tive nessa equipe não tem igual. E nosso o objetivo é esse, de acolher cada vez mais mulheres, estando aqui para acolher todas elas”, afirma.
O desafio de conquistar o primeiro Dragon Boat próprio permanece, mas o movimento já ganhou força e visibilidade. Para alcançar o objetivo, a equipe busca patrocinadores e apoiadores. Interessados podem conhecer mais sobre o trabalho através das redes sociais, pelo site www.awapedragonboat.com.br e pelo WhatsApp (51) 999797239.
A presidente Mariluce destaca que, em pouco tempo, a Awa’pé mostrou que Porto Alegre também tem sua tripulação rosa, pronta para remar lado a lado e provar que o diagnóstico não é o fim, mas o início de uma nova travessia. “Ver o sorriso dessas mulheres todos os sábados, não tem preço. É a prova de que juntas, no mesmo barco, conseguimos vencer qualquer correnteza”, conclui.