A difícil luta por tratamento e diagnóstico

A difícil luta por tratamento e diagnóstico

Estima-se que mais de 12 milhões de brasileiros estejam acometidos por alguma uma doença rara

O laboratório Antony Daher auxilia serviços públicos e privados no diagnóstico de diversas doenças

Por
Rodrigo Thiel

Filho de João Pedro e Alexandra, o pequeno Pedro Henrique está com apenas três meses de vida, mas já passou cerca de 60 dias em uma UTI e preocupa seus pais por conta do medo do – até então – desconhecido. Nas últimas semanas, Pedro Henrique começou a ser acompanhado de perto pela Casas dos Raros e está em processo de identificação se ele, de fato, possui alguma doença rara. Segundo os pais, que são de Novo Hamburgo, logo nos primeiros dias de vida, ele passou a apresentar algumas condições como vômitos, icterícias – quando a pele ou a parte branca dos olhos ficam amareladas – e dificuldades respiratórias.

Ao ir para UTI, Pedro Henrique também apresentou problemas no coração e nos rins. Apesar disso, destas condições e sintomas, não foi possível fechar um diagnóstico claro daquilo que o bebê possui. Por consequência, sem a identificação não é possível manejar e tratar a doença corretamente. “Ele tem tipo um erro inato do metabolismo. Ainda não tem um diagnóstico fechado, mas agora é esse caminho que a gente está trilhando, para identificar se ele tem ou não algum tipo de doença rara”, disse o pai, João Pedro.
Este tipo de drama já foi vivenciado pela família do pequeno Deivid, de 2 anos e meio. De acordo com a mãe, Kelly, ele nasceu com microftalmia em um olho – quando o globo ocular é menor – e anoftalmia no outro – quando ocorre a ausência do globo ocular. Desde pequeno, Deivid apresenta também episódios de epilepsia, além de atraso no desenvolvimento motor e da fala. Por anos, a família conviveu com a angústia de não saber qual a condição que o menino possuía.

Desde agosto, Deivid é acompanhado de perto pela equipe da Casa dos Raros. Neste período, já foi possível identificar a causa destas condições: foi diagnosticado com Síndrome de Microdeleção 21q, uma doença caracterizada por uma alteração no 21º cromossomo. “Foi demorado até a gente chegar aqui na Casa dos Raros. A gente não sabia como lidar, o que fazer, nem que tipo de remédio dar para uma dor de barriga, por exemplo”, contou a mãe sobre como era sua rotina antes do diagnóstico da doença rara.
Entretanto, ela cita também outro fator como desafio para cuidar de um bebê com este tipo de condição: o psicológico. “É uma incógnita. Tu não sabes o dia de amanhã, tu não sabes o que ele tem. Tu não sabes o que fazer. E isso pesa muito. Desde que a gente veio para cá, deu uma amenizada, pois a gente já sabe como proceder, como agir e até como pensar da melhor forma”, completou.

Morador do bairro Restinga, em Porto Alegre, além dos pais, Deivid ainda tem outros três irmãos. Para a mãe, um dos principais desafios no cuidado com a saúde do filho é tentar entender como ele percebe o mundo. “É bem complicado. A gente enxerga, mas ele não. Então a gente precisa entender como ele nos percebe, como ele percebe as coisas. E como ele tem distúrbio do sonho e epilepsia, também é preciso de um cuidado redobrado”, finalizou a mãe.

A luta de Pedro Henrique e Deivid é embasada em casos de superação e de sucesso. Um destes exemplos é o de Antony Daher. Ele é filho do libanês Antoine Soiheil Daher, presidente da Casa Hunter, uma das principais entidades de suporte às famílias e pacientes com doenças raras. O nome da instituição é também o nome da síndrome que acomete Antony, atualmente com 13 anos. “Desde o momento em que meu filho foi diagnosticado com a doença de Hunter, minha esposa Fernanda e eu nos deparamos com uma realidade complexa e desafiadora das doenças raras no Brasil. A luta pelo diagnóstico foi apenas o início. Reconhecendo os desafios que muitas outras famílias enfrentam, fundamos a Casa Hunter e visualizamos a criação da Casa dos Raros. Mas nossa visão ia além: queríamos que o Brasil fosse reconhecido não apenas como um país de pacientes, mas como um centro de excelência em pesquisa clínica. Cada paciente, cada família, merece ter esperança e acesso ao melhor em termos de cuidado e inovação”, ressaltou o presidente Antoine Daher.

A Casa Hunter foi fundada justamente com o propósito de promover estudos, pesquisas, políticas e investimentos na área da genética e das doenças raras para facilitar e agilizar o diagnóstico dos pacientes, promovendo melhor qualidade de vida para eles e seus familiares. A Casa Hunter, junto com o Instituto Genética para Todos, é uma das mantenedoras da Casa dos Raros, localizada em Porto Alegre, próximo ao Hospital de Clínicas, no bairro Santa Cecília.

Brasil tem cerca de 12 milhões de pessoas com doenças raras

O médico geneticista Roberto Giuliani é cofundador e superintendente-geral da Casa dos Raros. Ele conta que, para uma doença ser considerada rara, ela não pode ter mais de um caso a cada 1,5 mil pessoas. “Por exemplo, a Síndrome de Down, em cada 1,5 mil tem mais ou menos dois casos. Aí já não é uma doença rara, embora seja uma doença genética. As doenças raras são menos frequentes e, com isso, acaba que os profissionais de saúde não as conhecem muito”.

Além disso, o médico cita que existem cerca de seis a oito mil doenças raras diferentes, que diminuem a expectativa de vida dos portadores. Por conta disso, existem muitos sintomas e manifestações diferentes destes tipos de doenças. Da mesma forma, cada uma delas terá um tratamento adequado. “Cerca de 80% das doenças raras são genéticas. A grande maioria se deve a um problema no gene, no cromossomo, no DNA. Conforme a situação, a gente faz um exame específico dos cromossomos ou dos genes. A gente colhe a história da família, vai atrás do que tá causando aquilo, que na maioria das vezes é algo relacionado com a genética”.

Giuliani destaca que, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 6% da população mundial é portadora de alguma doença rara. No mundo, são 400 milhões. No Brasil, este número seria de aproximadamente 12 milhões de pessoas. Já no RS, o número seria de 600 a 700 mil diagnosticados. “Cerca de 30% dos pacientes não chegam aos 5 anos de idade e outros, em geral, têm uma diminuição na expectativa de vida. Mas o manejo correto pode alterar isso, diminuindo a mortalidade e a morbidade”.

Entretanto, como pôde ser visto, o diagnóstico é um dos principais desafios. Conforme o gestor da Casa dos Raros, em muitos dos casos ocorre o diagnóstico errado, pois a forma como os sintomas se manifestam se confundem com outras doenças. “Imagine que 40% das pessoas com doenças raras, em algum momento, receberam um diagnóstico equivocado que as levaram para um tratamento equivocado ou mesmo para uma cirurgia que não precisava. A identificação correta é a porta de entrada para o manejo correto. A gente precisa abreviar o tempo para diagnóstico, fazer um diagnóstico preciso e tentar dar o melhor manejo possível para a situação”.

Dia de conscientização e diversão

Maior roda-gigante da América Latina, localizada em São Paulo, foi palco do “Dia da Criança Rara”, evento criado para apoiar comunidades que enfrentam doenças raras e contribuir para a disseminação de informações sobre doenças complexas.

Sanofi / Divulgação / CP

Para unir o mês das crianças e o Dia Mundial da Condição Ultrarrara chamada de Deficiência em Esfingomielinase Ácida (ASMD na sigla em inglês), um evento em São Paulo reuniu pacientes que convivem com doenças raras, seus pais, cuidadores e médicos renomados em um cenário especial e iluminado: a maior roda-gigante da América Latina.

Sanofi / Divulgação / CP

Com pipoca, refrigerante e muita diversão, as crianças e seus responsáveis deram uma volta na estrutura de 90 metros de altura enquanto nas cabines um episódio de um documentário especial retratava a rotina de famílias com crianças raras. Batizado de “Viver é Raro”, a série compartilha a história de Lara e de outras seis crianças que enfrentam condições raras e que foram convidadas para fazer parte desse dia. A ASMD é uma doença genética que resulta da deficiência de uma enzima crítica, levando ao acúmulo de gordura dentro das células, com graves implicações para a saúde. Muitas pessoas convivem com os sintomas por anos até que finalmente recebem o diagnóstico e o tratamento adequado, destacando a urgência de disseminar informações de qualidade para a população. O evento foi uma iniciativa da Sanofi, Casa Hunter e da Roda Rico. 

Diagnóstico, tratamento e treinamento na Casa dos Raros

O médico conta que este outro fator que reflete na falta de manejo necessário é a demora na identificação da doença e, principalmente, da causa dela. Para Roberto Giuliani, existe uma grande demanda, com cerca de 2 mil pacientes aguardando um atendimento especializado, como o que a Casa dos Raros oferece. “Quando o paciente vai num posto de saúde e o profissional identifica a possibilidade de uma doença rara, de uma doença genética, ele solicita uma consulta especializada. Às vezes, este atendimento demora de dois a quatro anos para ocorrer. Então existe uma demanda sim e o que a Casa dos Raros se propõe é identificar os casos que precisam de mais urgência no atendimento, em situações em que a intervenção realmente faça uma diferença na vida destes pacientes”.

Para ele, dificilmente pode se fazer mais do que já é realizado através do Sistema Único de Saúde e da atenção básica. Entretanto, ele ressalta a necessidade de investigar a causa. “O que acontece muitas vezes é que o paciente, por exemplo, tem uma convulsão e vai para o hospital fazer tratamento. Mas não se avalia por que ele teve a convulsão. O sistema está muito bem preparado, digamos assim, para tratar a urgência, para tratar o problema, mas não para tratar a causa. Nós queremos tentar entender a causa e, a partir daí, dar um manejo mais racional”, completou.

E é justamente este o objetivo dos atendimentos realizados na Casa dos Raros. Giuliani conta que a entidade filantrópica, além de auxiliar a investigar as causas e diagnosticar a doença rara, também se propõe a realizar o treinamento da equipe que vai acompanhar o paciente a longo prazo. “Um paciente com uma doença rara que mora em Uruguaiana, por exemplo, tem que fazer um tratamento a cada 15 dias. Então não tem sentido ele vir a cada 15 dias até Porto Alegre para fazer isso. Nós vamos dar este treinamento para que ele faça perto de sua residência de uma maneira mais confortável”, destacou.

Apesar disso, o médico garante que a Casa dos Raros não vai substituir a estrutura já existente, mas sim somar esforços a elas, oferecendo um novo modelo de atendimento. “Nós temos excelentes serviços de referência em doenças raras no Brasil. Talvez o mais completo de todos esteja aqui no Hospital de Clínicas. Muitos dos profissionais que estão aqui são egressos de lá.”

Ele conta que, após o encaminhamento e a identificação de que o paciente precisa de atendimento especializado na Casa dos Raros, a equipe entra em contato para realizar uma consulta por telemedicina. Nesta primeira conversa, é verificada a suspeita da doença rara e, principalmente, se há urgência no tratamento dela. “Nós mapeamos toda a situação e identificamos os casos que precisam vir a Porto Alegre. Quando eles vêm, a gente já conhece o caso, já sabe o que o paciente precisa em termos de atendimento multidisciplinar e agendamento de exames”, citou.

Para o geneticista, desta forma é possível realizar em algumas semanas ou meses todo um processo que pode durar até cinco anos. “A ideia é abreviar a jornada do paciente. E, na nossa concepção, não custa mais caro, pois só depende de organizar tudo em um período inicial de avaliação. Se tu fizer isso concentrado, vai fazer as mesmas consultas, os mesmos exames, só que de uma maneira mais compacta. Assim tu vai chegar a um diagnóstico mais cedo, vai tratar mais cedo e vai ter melhores resultados”, completou.

A Casa dos Raros foi inaugurada em fevereiro deste ano e, desde junho, atende pacientes de todo o país. Recentemente, a instituição assinou um convênio com o governo do Estado para atender cerca de 25 a 30 pacientes por mês. Entretanto, Giuliani garante que a capacidade operacional é muito maior e só depende de recursos. “Podemos atender 50 pacientes por dia. Somos uma entidade privada, mas filantrópica, sem fins lucrativos e reconhecida como utilidade pública. Nós não cobramos pelos atendimentos. Aqui o paciente não paga”, finalizou.

Além disso, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, sancionou na última semana uma lei de autoria da vereadora Mônica Leal que declara a Casa dos Raros como um espaço de utilidade pública. Desta forma, o espaço poderá realizar convênios com o Poder Público Municipal, oferecendo aos pacientes da Capital um atendimento integral no centro médico.

Destaques

  • Estima-se que mais de 12 milhões de brasileiros estão acometidos por uma doença rara, a grande maioria ainda sem diagnóstico;
  • As doenças raras são crônicas, progressivas e incapacitantes, podendo ser degenerativas e também levar à morte. Elas afetam a qualidade de vida das pessoas e de suas famílias;
  • Já existem produtos aprovados no Brasil para aproximadamente 60 doenças raras, mas somente um terço tem protocolos e diretrizes para viabilizar o acesso aos tratamentos;
  • Estima-se que existam entre 6.000 a 8.000 diferentes doenças raras;
  • 80% são de origem genética;
  • Mais de dois terços das doenças raras afetam principalmente crianças;
  • Cerca de 30% dos pacientes morrem antes dos 5 anos de idade.

Avanços na área das doenças raras

A médica geneticista Bruna Guaraná é uma das profissionais que acompanha os pacientes desde que eles chegam com suspeita de portarem uma doença rara, até o diagnóstico e o tratamento deles. Para ela, a genética médica no Brasil avançou muito na última década. Entretanto, o número de profissionais especializados na área ainda é escasso, principalmente se comparado com a expectativa da OMS para a quantidade de pacientes portadores de uma doença rara. “Hoje, no Brasil, temos mais de 13 milhões de pessoas com alguma doença rara. Por outro lado, temos pouco mais de 400 profissionais habilitados e 25 serviços de referência no país. Somos raros tais quais as doenças que atendemos. Ou seja, com certeza existem muitos pacientes não diagnosticados e não tratados, principalmente em áreas de difícil acesso a serviços especializados, como no norte do país”, destacou a médica.

Na visão de Bruna, um dos principais desafios a ser enfrentado diz respeito ao investimento em pesquisa e tratamento. “O Brasil é um polo de referência para doenças raras, inclusive genéticas, na América Latina. Apesar de termos projetos na área, ainda existem muitas doenças e possíveis tratamentos a serem estudados. Precisamos incentivar mais a pesquisa e realizar trabalhos científicos a respeito de doenças raras e de seus tratamentos. Afinal, apesar das doenças serem raras, o número de casos individuais é bastante elevado.”

Para o presidente da Casa Hunter, Antoine Daher, um dos motivos que tem ajudado no avanço da medicina na área foi a inserção do país em redes de pesquisa internacionais, que tem ampliado o acesso a conhecimento e, principalmente, tecnologia de ponta. “Entretanto, as doenças raras trazem desafios intrínsecos, principalmente pelo fato de muitas vezes não serem o foco principal das políticas públicas na saúde pública e na privada. O mercado potencial para tratamentos destas doenças é, por sua natureza, reduzido. Em resumo, o Brasil tem avançado no enfrentamento das doenças raras, mas a complexidade e a magnitude do desafio exigem intensificação dos investimentos e ações concretas”, ressaltou o presidente, que defende ainda a colaboração entre setores público e privado, aliada à participação ativa da sociedade civil na área.

As políticas públicas de saúde e o futuro das enfermidades raras no Brasil

Fundada em 2013, a Casa Hunter é uma das principais instituições que lutam pelas demandas da causa das doenças raras, destacando-se por projetos e parcerias com hospitais e outras entidades. Para o presidente, nesta última década houve uma crescente no debate sobre o tema, o que levou as doenças raras a ocuparem um papel central nas discussões sobre políticas da saúde, principalmente com relação ao SUS. A principal destas políticas é a Portaria 199/2014, que instituiu a Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, que institui a intenção de proporcionar um atendimento completo e integrado para os pacientes diagnosticados.

Entretanto, para Daher, apesar do progresso, muitos dos desafios permanecem no dia a dia. “A morosidade na aprovação e incorporação de novos medicamentos no SUS é uma barreira, assim como a necessidade premente de capacitar profissionais de saúde para lidarem com essa realidade. O país precisa aumentar os investimentos em pesquisas clínicas, voltando seus olhares para a medicina de precisão. Também é crucial que o Brasil persista no aprimoramento e fortalecimento de suas políticas públicas, assegurando a assistência adequada a todos os cidadãos acometidos por doenças raras”, completou o presidente.

Ele cita ainda que o futuro da área revela um panorama de oportunidades e de obstáculos a serem superados. Daher avalia que o sistema ainda não está plenamente equipado para atender de forma eficaz as demandas e necessidades desses pacientes. “Mesmo após o diagnóstico, muitos pacientes encontram barreiras no acesso a tratamentos adequados, medicamentos especializados e suporte psicológico e social. A complexidade e a especificidade das doenças raras demandam uma abordagem multidisciplinar, envolvendo não apenas médicos, mas também outros profissionais de saúde, educadores e assistentes sociais”, finaliza.

Além da fundação da Casa dos Raros em Porto Alegre, o convênio desta com o governo do Estado e a sanção da lei que a considera como um espaço de utilidade pública para receber investimento do poder público, outra ação em São Paulo também evidenciou a importância de políticas públicas para facilitar a rotina de pacientes e familiares.

Recentemente, o governador Tarcísio Gomes de Freitas sancionou uma lei de autoria do deputado estadual Rafa Zimbaldi que cria a carteira de identificação para pessoas com doenças raras.

O documento será utilizado para permitir o atendimento preferencial em repartições públicas e estabelecimentos privados. De acordo com o texto, o próprio governo estadual vai emitir as carteiras de identificação para os interessados. “Os sintomas e as dificuldades impostas por uma doença rara nem sempre são aparentes, sendo até difícil identificar a olho nu. Só que, nem por isso, seus portadores não precisam de atendimento mais ágil e prioritário. Isso é justiça social”, citou o parlamentar autor da proposta.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895