“Sim, há gays no futebol”

“Sim, há gays no futebol”

Ex-jogador do Grêmio, do Juventude, do Bahia e do Flamengo conta como, ainda que tenha sido ídolo e vitorioso, o fato de ser homossexual atrapalhou sua carreira

Imagem de quando Emerson era um jovem goleiro conhecido por seu talento

Por
Fabrício Falkowski

Emerson de Souza Ferretti jogou no Grêmio, no Bahia, no Flamengo. Conquistou a bola de prata como melhor goleiro do país em 2001 e, defendendo as cores do Juventude, foi fundamental na campanha do título da Copa do Brasil em 1999. Formado na base gremista, construiu uma trajetória vitoriosa dentro do futebol, antes de encerrar a carreira em 2007, quando estava no Vitória (BA). Depois, transformou-se em dirigente e comentarista de rádio e TV e, agora, quer ser presidente do Bahia, onde também jogou. Emerson de Souza Ferretti é gay.

E o foi de forma escamoteada e constrangida até pouco tempo atrás. Foi ele que concedeu a entrevista ao Correio do Povo há dois anos, que embasou a matéria “Por que não há gays no futebol?” publicada em 19 de setembro de 2021. Naquela época, ele não falava abertamente sobre a sua orientação sexual. Em 2022, ele assumiu em entrevista a um podcast e, agora, voltou a reafirmar ao CP a sua posição contra o preconceito, mas não mais protegido pelo anonimato.

“Percebi que alguém precisava falar, quebrar esse silêncio e dizer: ‘Sim, há gays no futebol, mas eles não podem se mostrar!’. Hoje, o futebol brasileiro já tem uma referência, um jogador que jogou em clubes grandes, um jogador que foi ídolo no Grêmio, no Bahia, que conquistou títulos grandes, como a Copa do Brasil, com o Juventude, que ganhou prêmios individuais, como a Bola de Prata. Enfim, estou aqui para mostrar que existimos”, afirma. 

A necessidade de falar sobre o assunto veio aos poucos. A entrevista ao Correio do Povo, em off (no jargão dos jornalistas significa uma fonte que não permite a divulgação do seu nome), foi um grande passo para ele, mas a decisão sobre “assumir” partiu de um processo de reflexão pessoal. Emerson percebeu que poderia, com seu exemplo e suas palavras, ajudar a tirar outros jogadores homossexuais das sombras. 

“Até quando vamos fazer de conta que não existem gays dentro do futebol? Existem sim e eu sou um deles. Sou um exemplo. E tem outros tantos, mas eles ainda precisam se proteger. Eu entendo isso. Mas todos eles e os que virão depois, os garotos que querem ser jogadores e são gays precisam ter uma referência. Precisam saber que tem o Emerson, que foi jogador, que foi campeão, que foi ídolo e que é gay. Todo mundo precisa saber que um gay foi tão bom quanto qualquer outro atleta hétero e que o fato dele ele ser gay, não diminuiu em nada a sua carreira”, afirma o ex-goleiro.

Mas, é claro, o fato de ser homossexual atrapalhou a sua trajetória no futebol, até de forma inconsciente, além das conscientes, que serão tratadas em seguida. Emerson conta que se descobriu diferente da maioria dos seus colegas de time quando ainda era adolescente, nas categorias de base do Grêmio. Até os 21 anos, sentia-se gay, mas nunca conversara com alguém sobre o tema ou tivera algum tipo de experiência. Nessa época, já era titular do Grêmio e ganhava cada dia mais holofotes na imprensa e junto aos torcedores.

Em 1993, no início da temporada, o Grêmio fez um amistoso contra o Capão da Canoa, uma equipe semiamadora do interior gaúcho. Logo no início da partida, aos 12 minutos, Emerson saiu do gol para interceptar um lançamento que partiu do campo de defesa do Capão em direção ao atacante Melancia. Emerson, então, atirou-se com uma força desmedida e desproporcional no lance e não levantou mais. Ele sofreu uma fratura dupla na perna que o afastou do futebol por quase dois anos. 

Nos minutos, horas e dias que se seguiram, ninguém entendeu porque o goleiro se arriscou tanto em um jogo que valia absolutamente nada, que o Grêmio ainda venceu por 6 a 1. Na época, nem o próprio Emerson compreendeu. A ficha caiu algum tempo depois. “Era uma jogada boba, desnecessária… Na verdade, esse lance é um marco na minha vida, não só profissional, mas também pessoal. Eu tinha 21 anos e já era um ídolo, estava sendo observado para a Seleção Brasileira e aquilo foi um ato de desespero, uma atitude inconsciente para tentar mudar um pouco o rumo da minha vida”, lembra o ex-jogador.

“Por que não há gays no futebol?”

A matéria “Por que não há gays no futebol?”, publicada em 19 de setembro de 2021 nas páginas do impresso e no site do CP, mostrava como eram raríssimos os casos de jogadores em atividade, ou até após o fim da carreira, que haviam declarado publicamente a sua orientação sexual. A reportagem ganhou repercussão nacional, vencendo o Prêmio ARI de Jornalismo e conquistando menção honrosa no Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo concedido pelo Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), com a parceria da Ordem dos Advogados do Brasil.

Uma forma inconsciente de se preservar

Em análise retrospectiva, Emerson acredita que a forma como se lançou naquela jogada foi uma medida para evitar ficar ainda mais famoso. Era uma maneira de preservar a sua privacidade, afastando o risco de ser descoberto como um homem gay pelos companheiros, pela imprensa e até pela família. “Eu já tinha passado por todo o processo de rejeição e de entendimento de tudo isso durante a adolescência. Mesmo assim, não entendia direito as coisas. Foi um período muito doloroso, porque estava solitário. A gente sabe como era o Rio Grande do Sul na década de 1980. Ser gay ainda era considerado doença e tinha a questão de AIDS. O gay era considerado um cidadão de segunda categoria. Então, eu cresci com essas informações todas, me descobrindo gay, sem ter ninguém para conversar sobre o assunto, morrendo de medo que alguém descobrisse isso. Se vazasse, eu estaria perdido, com minha carreira em risco”, lembra.

Durante o tempo de parada para curar a lesão, que se prolongou por quase dois anos, entre idas e vindas ao departamento médico, Emerson passou a frequentar ambientes LGBTQIA+ de Porto Alegre e isso acabou nos ouvidos dos dirigentes gremistas da época. Claro que, quando ficou apto a jogar, foi preterido. “A ‘fama’ começou a me perseguir. Primeiro, porque eu não aparecia com namorada e não casei. Eu era um cara bonito e tinha muito assédio feminino, mas eu ficava na minha, o que já suscita comentários. Depois, fui a alguns lugares LGBTQIA+ e as pessoas começaram a me ver, começaram a falar que eu estava lá. Aí, essa ‘fama’ começou a me perseguir e se espalhou no futebol todo”, lembra Emerson.

Então, o goleiro migrou para outros clubes. Passou por Flamengo e os Américas do Rio de Janeiro e de Natal. Em 1999, voltou ao Rio Grande do Sul, onde foi campeão da Copa do Brasil com o Juventude. O bom desempenho pelo time de Caxias do Sul lhe rendeu um convite para ir ao Bahia, onde atuou por cinco anos até se tornar ídolo. “A minha sensação é que tinha cometido um crime no Rio Grande do Sul. E tinha sido julgado e condenado por esse crime, que eu não tinha culpa alguma. Eu não tinha culpa de ser gay, mas as pessoas me condenaram por isso e passaram a esquecer que eu era um excelente goleiro. O Emerson era gay, então ele não servia mais.”

Mas a volta por cima aconteceu. “Trabalhei para recuperar meu espaço. Entrei em um outro processo para mostrar que era um bom profissional, que tinha um comportamento exemplar e que não ia criar problemas, nem dentro de campo, nem no vestiário, nem fora de campo, para os clubes. Mesmo assim, foi dolorido. Mas sempre tinha desconfiança em cima de mim. Quando eu ia mal em campo, não me chamavam de frangueiro, mas de ‘veado’ para me agredir”.


Emerson acredita que a maneira como se lançou na jogada na qual quebrou a perna foi uma medida para evitar ficar ainda mais famoso, uma forma de preservar a sua privacidade 
| Foto: CP MEMÓRIA

Volta ao Grêmio

Voltar ao clube de sua formação nunca chegou a ser uma hipótese real. Emerson é gremista, assim como toda a sua família, mas ele sabia que um retorno seria impossível. Ele também entende a opção do clube de lhe emprestar ao Flamengo, em 1995. O mais próximo de uma volta ocorreu em 1999, quando jogou emprestado ao Juventude e foi campeão da Copa do Brasil. Depois, alguns dirigentes gremistas e a própria torcida chegaram a reivindicar seu regresso, que não houve.

“É lógico que a fama atrapalhou a minha sequência. Precisei sair para buscar meu espaço quando percebi que no Rio Grande do Sul existia um falatório muito grande e, o Grêmio, de certa forma, não queria que eu voltasse por conta de tudo isso. Eu também não quis mais voltar. Não queria mais voltar ao RS, porque sabia que não ia ser avaliado e tratado como goleiro, mas sim como gay, como veado, e não queria passar por isso.”

Mas, de certa forma, Emerson acertou as contas com seu passado gremista em dois momentos no ano passado: quando vestiu a camisa do clube para jogar uma partida da Copa do Brasil Master e quando foi homenageado. Em dezembro, no derradeiro jogo do Tricolor na Série B na Arena, contra o Brusque, o goleiro ganhou uma homenagem do presidente do Conselho Deliberativo do clube, Alexandre Bugin, pouco antes do início do jogo. O episódio, mesmo singelo, tem grande representatividade para o ex-jogador. 

“Ser reconhecido, mesmo que 26 anos depois, é como se o Grêmio tivesse feito uma mea-culpa em relação ao que aconteceu na década de 90. Mas volto a falar: eu entendo as pessoas que, na década de 90, administravam o Grêmio. Entendo e não culpo ninguém. Mas receber uma homenagem dessas do clube é fechar um ciclo com o clube que eu sempre amei”, emociona-se o goleiro.

Futuro e posicionamento

Emerson, agora com 52 anos, projeta o futuro. Está escrevendo um livro para contar detalhes de sua trajetória e pretende ser presidente do Bahia, clube onde foi mais feliz. Seu nome deve ser oficializado por uma coalizão de movimentos políticos do clube baiano, com boas chances de sucesso na eleição que ocorre no final deste ano. Ele ainda reside em Salvador, onde tem outras atividades profissionais ligadas ao futebol.

“Eu sigo dentro do futebol. Mesmo depois de atleta, eu sou comentarista há 15 anos de rádio e TV aqui em Salvador. Já fui presidente de um clube (Ipiranga, também da Bahia). Também sou possível candidato à presidência do Bahia. Se for eleito, vou ser o primeiro ex-atleta na história do clube a se tornar presidente. E também serei o primeiro atleta gay a se tornar presidente de um grande clube do Brasil”, prevê.

O posicionamento de Emerson faz com que pessoas LGBTI+ passem a se reconhecer pertencentes ao futebol e ao esporte, entendendo que esse lugar também é deles. “Além disso, contribui indiretamente com a democracia como um todo, pois a diversidade sexual é uma agenda da democracia, e uma pessoa pública, seja de qual área for, sempre terá mais condições de influenciar o pensamento social do tempo presente”, opina o professor o professor da Faculdade de Serviços Social da Ufrgs, Guilherme Gomes Ferreira, que também é ativista do grupo Somos − Comunicação, Saúde e Sexualidade. Para Guilherme, o preconceito não é exclusividade do mundo do futebol. Pelo contrário, se manifesta em todas as áreas, normalmente tolhendo o crescimento profissional de gays, assumidos ou não. 

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895