A árdua tarefa de ser mãe e agricultora

A árdua tarefa de ser mãe e agricultora

Menos favorecidas com redes de apoio que as trabalhadoras urbanas, as produtoras rurais, especialmente da agricultura familiar, usam a criatividade e a resiliência para conciliar trabalho na roça e cuidado com os filhos

Por
Nereida Vergara

Criar filhos, seja no campo ou na cidade, é o maior de todos os desafios. Enquanto a cidade oferece possibilidades de suporte à vida das mães que trabalham – como creches e escolas em tempo integral, ou uma rede de apoio com familiares e amigos –, tem seus problemas com segurança e limitações à liberdade de crescimento da criança. No campo, a qualidade de vida é considerada superior e a chance de uma infância mais divertida, em contato com a natureza, realmente se multiplica. Mas a vida das mães rurais não é fácil. Para se ter uma ideia, apenas a partir de 1994 é que as agricultores que comprovassem atividade laboral passaram a ter direito à licença maternidade remunerada, benefício concedido às trabalhadoras urbanas no Brasil desde 1943. Via de regra, as mães agricultoras se equilibram numa rotina pesada, que inclui lavoura, trato com animais, cuidados com a casa e atenção aos filhos em comunidades que, muitas vezes, não possuem alternativas de atendimento às crianças pequenas.

Diretora da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Rio Grande do Sul (Fetag) e coordenadora estadual da comissão de mulheres da entidade, Maribel Moreira define a mãe agricultora como muito corajosa, muitas vezes sobrecarregada e que precisa de criatividade para dar conta de tudo. Maribel diz que a sobrecarga foi evidenciada com a pandemia, quando as mulheres precisaram tratar da comercialização dos produtos da família e foram atrás de compreender os mecanismos de venda digital e tiveram de manter os filhos em casa exercendo o papel de professoras nas aulas, que passaram a ser on-line. "Hoje, temos um número significativo de agricultoras com o Ensino Médio completo, mas ainda há muitas regiões onde a escolaridade é baixa. Aí você imagina que, para ajudar os filhos elas ainda tiveram de ser pesquisadoras e aprender o que não tiveram a oportunidade. Sim, a maternidade exige muito, da agricultora ainda mais”, comenta.

A jornada das mães no campo não é compartimentada, não se trata de um expediente, onde é possível trabalhar em um local e morar noutro, por isso, a mulher tem de se dividir em múltiplas tarefas o dia todo. Com crianças pequenas, o trabalho é maior. "As comunidades do interior não têm, na maioria das vezes, a escolinha, aquela onde se pode deixar crianças de zero a quatro anos. E essa mãe precisa se virar sozinha", diz Maribel. A dirigente lembra, também, que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não permite que pais agricultores levem seus filhos para o trabalho, nem mesmo a feiras, pois a atitude pode levar ao entendimento de trabalho infantil, o que é vedado por lei. "Como elas fazem sem ter onde deixar?”

A pergunta da sindicalista é respondida por cinco mães, de diferentes regiões do Rio Grande do Sul, que contam suas experiências, alegrias e aquilo que ensinam sobre a vida para seus rebentos. 

Grasiela Benetti Livi, 41 anos

Foto: Arquivo pessoal / CP

Moradora de Linha Chapadão, interior de Canela, Grasiela Benetti Livi, de 41 anos, recorda a experiência de sua mãe (já falecida), que cuidou dela e de mais duas filhas, desde um mês de idade, no meio da roça. "A mãe levava a gente dentro de uma banheirinha e ia procurando a sombra para nos colocar, enquanto trabalhava plantando milho, ordenhando as vacas, cuidando da horta", diz, demonstrando grande admiração pelo esforço.

Mãe de três filhos, William, de 19 anos, Lavínia, de 14 anos, e Vinícius, de 1 ano, Grasiela acredita que, hoje, a vida está mais fácil, graças não apenas aos avanços sociais obtidos pelas trabalhadoras rurais mas também pela facilidade de obter informações. A família tem como atividades principais um aviário, onde produz 23 mil frangos a cada dois meses, e a criação de bovinos de corte das raças Angus e Brangus. Os filhos mais crescidos, assim como o marido, Rodrigo, dividem as tarefas da propriedade com Grasiela e, principalmente, os cuidados o bebê, "luxo" que a agricultora não teve quando William e Lavínia eram menores.

Da esquerda para direita, William, Lavínia, Grasiela (Vinícius no colo) e Rodrigo trabalham juntos em Linha Chapadão, Canela | Foto: Arquivo pessoal / CP

"Antes da gente comprar a propriedade aqui, eu trabalhei por 12 anos na cidade. Conseguia deixar as crianças na escola e buscar só no final da tarde. Quando mudamos pra cá é que eu senti o que era cuidar sozinha deles, enquanto o meu marido trabalhava como montador de aviários", relata ela. Com os dois filhos pequenos, Grasiela aproveitou o dinheiro de sua rescisão no emprego para comprar algumas vacas leiteiras e iniciou a produção de queijo. "O William já ia a escola e brincava sozinho, mas a Lavínia ou eu levava junto para trabalhar ou contava com a ajuda da minha irmã para cuidar dela", completa.

Grasiela, entretanto, tem certeza de que, afora as dificuldades, hoje menores que no tempo de sua mãe, há claras vantagens em criar os filhos no campo, a começar pela preparação do caráter para enfrentar os obstáculos. "Eu faço questão de ensinar para eles que a vida não vai ser sempre flor e nem sempre espinho. Que se consegue as coisas trabalhando e que é mais fácil trabalhando junto, em família", observa. A produtora e o marido pensam em sucessão familiar e torcem para que os filhos fiquem na propriedade. “O William já terminou o curso de técnico agrícola e trabalha aqui com a gente", diz Grasiela, ao admitir que é uma situação que pode mudar, uma vez que o mundo oferece possibilidades de aprendizado hoje e ela estimula que os filhos sigam o caminho que quiserem.

Rosa Hartmann da Silva, 56 anos

Foto: Arquivo pessoal / CP

Rosa Hartmann da Silva, de 56 anos, nasceu em Porto Alegre e viveu na Capital até se casar com João Heraldo e ir construir a vida familiar em Cristal, município da Zona Sul do Estado. Na propriedade onde hoje plantam morangos e grãos, e onde instalaram uma agroindústria para fabricação de doces, segundo Rosa, não havia nem luz elétrica quando se instalaram. O primeiro filho, Tales, atualmente com 36 anos, nascido quando ela tinha 19 anos, veio ao mundo em parto prematuro, por pouco não ocorrido na lavoura de tabaco, a qual originou os negócios da família. "Nossa, foi muito difícil e só não foi mais difícil porque eu sempre gostei da vida na roça", ressalta.

A agricultora teve a segunda filha, Tiele, dois anos depois da primeira gravidez. Nesta época, conta, quando não tinha quem cuidasse dos filhos, não podia dividir as tarefas com o marido no plantio. "O cultivo do tabaco exige a aplicação de muito agrotóxico e não tinha como levar as crianças pra lá sem colocar em risco a saúde delas", pontua, lembrando que apenas uma pequena área da propriedade familiar ainda é dedicada ao fumo e que a diversificação foi adotada também para preservar a saúde de todos.

Rosa, entre os filhos Tales e Stephane, o marido João Heraldo e a filha Tiele, diz que trajetória foi bem trabalhosa, mas que faria tudo outra vez para ter a família que tem | Foto: Arquivo pessoal / CP

Tales e Tiele, com 36 e 34 anos, respectivamente dentista e fisioterapeuta, não tiveram interesse em prosseguir nos negócios dos pais. A temporã, Stephane, de 21 anos, tem sido a companheira de Rosa na agroindústria. "Ela é como eu, gosta de lidar no campo, me auxilia na produção e na criação dos doces com morango que produzimos e que são únicos no Estado", comemora. De acordo com Rosa, enquanto ela e o marido cuidaram da sobrevivência, os filhos tiveram a chance de fazer escolhas para a própria vida. "E eu faria tudo de novo", diz, orgulhosa. A agroindústria Morangos da Rosa trabalha com frutas sem aditivos há quatro anos, produzindo cerca de 1,2 tonelada de fruta por mês, vendidos frescos e congelados, e que se transformam em geleias acrescidas de vinho, de cerveja, de caipirinha e do outros ingredientes, além de poderem ser produzidas sob encomenda.

No próximo dia 19, a família vai abrir o estabelecimento para o turismo rural, com oportunidade para agendamento de visitas e degustação das delícias locais.

Ana Cláudia Bertuletti, 32 anos

Foto: Arquivo pessoal / CP

Não bastasse as atribuições de agricultora no plantio e colheita da mandioca e do morango, fabricante de doces numa agroindústria, proprietária de um café colonial que funciona aos finais de semana e universitária do curso de Engenharia de Alimentos, Ana Cláudia Zytkoski Bertuletti, de 32 anos, é mãe de duas meninas, Eliana, de 10 anos, e Gabriela, de 6. A família com propriedade em Linha Santos Anjos, no interior de Frederico Westphalen, produz cerca de 2 toneladas de mandioca por mês, vendida descascada e congelada, e cerca de 300 quilos de doces. Para o café colonial, oferecido por agendamento desde agosto do ano passado, produzem pães, bolos e biscoitos, complementando o cardápio com bebidas e embutidos fornecidos por parceiros da região.

Ana Cláudia relata que foi bem complicado o trabalho quando as meninas eram pequenas. “Ser mãe e agricultora ao mesmo tempo é muito desafiador. Quando as meninas eram pequenas, eu montava barraquinhas na sombra para acomodá-las e seguia trabalhando. De vez em quando me virava e via que uma delas estava com a boca cheia de terra, mas faz parte”, brinca.

Ao trabalho na roça e na agroindústria familia, Ana alia o cuidado às filhas, Eliana (a maior) e Gabriela, e o curso superior em Engenharia de Alimentos | Foto: Arquivo pessoal / CP

A agricultora e o marido, Eliseu, de 39 anos, tocam junto o empreendimento, que, segundo ela, foi iniciado “juntando nada com coisa nenhuma”. Por isso, Ana tenta ensinar às filhas que o que se consegue construir é urdido no esforço, sem facilidades. O casal pretende que as meninas tenham o interesse despertado para a propriedade familiar, mas a mãe admite que quer ver as filhas fazendo aquilo que escolherem. “Por enquanto, a menor diz que quer ser dentista e a maior que quer trabalhar na Nasa (Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço dos Estados Unidos)”, revela.

Ana também foi levada pela mãe, Irene, para acompanhar o trabalho na roça e garante que essa vivência só a fez mais forte. “A decisão de estudar, agora, é para melhorar ainda mais o que a gente produz e construir uma história para elas, para que aproveitem no futuro, se quiserem. Nosso empenho é para que aprendam com as dificuldades e respeitem as pessoas”, completa.

Hersi Goldmeier, 58 anos

Foto: Arquivo pessoal / CP

Em Westfália, município do Vale do Taquari, Hersi Goldmeier, de 58 anos, começa agora a ter um pouco de descanso da vida atribulada que viveu durante mais de duas décadas como produtora de leite. Mãe de Mateus e Marco, de 28 e 32 anos, Hersi é avó de um menino de 3 anos e já tem outro neto a caminho. Os filhos, ambos agrônomos, voltaram a partir de 2020 para assumir o tambo familiar que tem cerca de 110 vacas em lactação e produz em torno de 1,6 mil litros de leiteentregues à Lactalis, em Teutônia. Além disso, cultivam pastagens pré-secadas (uma forma intermediária entre a silagem da planta inteira e o feno).

Tímida, Hersi conta que levava os filhos para a roça quando ainda a família tinha plantio agrícola, e, depois, para cumprir as tarefas na produção de leite, com cuidados de alimentação e ordenha das vacas. Lembra que Mateus e Marco sempre quiseram estudar e tiveram a oportunidade, agora retornando para o negócio familiar. A agricultora acredita que viveu um período mais fácil que o da mãe, que também a criou entre as plantações, mas mais difícil que o vivido pelas mulheres do campo que hoje têm crianças pequenas. “Eu lavei fralda. Não tive muita ajuda. Hoje tem máquina para fazer tudo”, reflete. Mesmo com a carga de trabalho menor, Hersi ainda acorda todos os dias bem cedo para ajudar nos cuidados dos animais da propriedade e tocar os afazeres da casa.

Hersi, entre Mateus, à esquerda, e Marcos, foi a inspiração dos dois agrônomos que voltaram para administrar a propriedade após os estudos | Foto: Arquivo pessoal / CP

Inspiradora, tanto que tem garantida a sucessão do empreendimento, Hersi ensinou os filhos a trabalharem com capricho e paixão. “Acho que foi o que melhor aprendemos e por isso voltamos. É bom morar aqui e vai ser bom criar os nosso filhos aqui também”, afirma Mateus, que vai ser pai em agosto. 

Elisiane Covaleski, 45 anos

Foto: Arquivo pessoal / CP

Elisiane Covaleski, de Esquina São Bento, Palmeira das Missões, completou 45 anos neste sábado, véspera do Dia das Mães. Junto com o marido, Valmor Jorge Hime, comanda 55 hectares de terras plantados com soja, milho, trigo e aveia. Criada numa família com quatro irmãos, não estava treinada à lida do campo até o casamento. Com o tempo, aprendeu a operar plantadeira e colheitadeira e a fazer todo o trabalho da lavoura, carregando sempre os filhos e administrando profissão e maternidade dentro daquilo que considera possível.

Elisiane é mãe de Iriane, de 21 anos, de Walmor, de 13 anos, e da pequena Elisy, de 2 anos e 9 meses. Todos foram levados para a roça ainda bebês para que a agricultora não precisasse interromper a amamentação. Os maiores iam com a mãe na cabine das máquinas agrícolas. “Hoje, com a pequena, temos máquinas com cabine maior, que dá mais conforto para ela”, comenta. Segundo ela, a família toda se instala na lavoura na época de colheita, pois há muito trabalho e todos ajudam. “Gostamos de trazer eles para saberem desde cedo de onde vem o dinheiro, e darem valor ao trabalho e ao que a gente faz”, diz ela.

Elisy, de 2 anos e 9 meses, e Walmor, de 13, acompanham a mãe, Elisiane, durante a colheita , e estão acostumados a passar o dia com a família na lavoura | Foto: Arquivo pessoal / CP

A agricultora e o esposo, há cinco anos, ambos com 38 anos, fizeram uma experiência fora da propriedade. Foram alunos, durante um ano e meio, do curso de técnico agrícola oferecido em Palmeira das Missões. “Foi uma experiência muito interessante pelo aprendizado do trabalho mesmo, mas também para ver como funciona o mundo e como são os jovens, para a gente saber o que orientar aos nossos filhos”, pondera. Elisiane deseja que os herdeiros se interessem pelo trabalho já estabelecido pela família, mas compreende se quiserem experimentar outras áreas. É o caso de Iriane, que faz faculdade de Letras e Pedagogia e sonha ser professora. “Ela quer seguir esta carreira, mas, se uma hora não quiser, também sabe que tem para onde voltar”, comenta. Walmor, ainda cursa o oitavo ano do Ensino Fundamental, e pode tentar o colégio agrícola. 

O dia a dia, com as tarefas domésticas de cozinhar, lavar, e limpar a casa, Elisiane procura não se estressar. “Um dia fazemos uma coisa, noutro fazemos outra e, quando tem muito trabalho na lavoura, só o essencial”, admite. Na pandemia, aí sim, ela recorda que a coisa complicou, pois coincidiu com o nascimento de Elisy e com a necessidade de Walmor manter os estudos em casa. “Fiz como podia”, completa, bem tranquila.

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895