Pesquisa aponta que nenhuma dose de álcool é recomendável
Estudo modifica a visão de que uma quantidade moderada de bebida alcoólica pode ser benéfico para a saúde
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Pense mais antes de beber aquele charmoso cálice de cabernet. Hesite na hora de entornar aquele copão de cerveja bem gelada, todo radiante em seu alvo colarinho a borbulhar sobre o traje dourado. Deu água na boca? Pois se lhe agradam os sabores e os efeitos das bebidas alcoólicas, uma recente descoberta científica deverá acentuar sua percepção sobre a necessidade de beber moderadamente. Conforme o estudo Global Burden of Disease (GBD), iniciativa mundial patrocinada pela Fundação Bill & Melinda Gates na qual atuam pesquisadores que integram o corpo docente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), a ideia de que uma dose equilibrada de álcool faz bem para a saúde está sendo questionada.
"Esta visão não está de todo incorreta, pois existem indicativos de que uma ou duas doses diária podem proteger, tanto homens quanto mulheres, de infarto do miocárdio e as mulheres, mais especificamente, do diabetes. Porém esta visão está sendo substituída por novas e contundentes evidências científicas, as quais dão conta de que a ingestão de álcool não faz bem à saúde de forma integral. A carga de doenças relacionadas ao consumo alcoólico, quando consideramos não apenas infarto e diabetes, mas todas as demais doenças, é muito superior à eventual proteção", explica o epidemiologista Bruce Duncan, pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Avaliação de Tecnologias em Saúde (IATS/Ufrgs) e pesquisador do GBD no Brasil.
Duncan, junto com seus colegas gaúchos Maria Inês Schmidt e Ewerton Cousin Sobrinho, é um dos coautores do artigo intitulado “Alcohol use and burden for 195 countries and territories, 1990–2016: a systematic analysis for the Global Burden of Disease Study 2016” (Uso de álcool e carga para 195 países e territórios, uma análise sistemática para o Global Burden of Disease Study 2016), recentemente publicado pela revista The Lancet. O estudo ratifica que o uso de álcool configura um dos principais fatores de risco para o desenvolvimento de doenças e relaciona a ingestão de álcool a 60 doenças agudas e crônicas, além de vários outros desfechos indesejados. "A dose recomendada é zero. O risco de desenvolvimento de doenças e agravos aumenta progressivamente a partir do consumo de uma dose ao dia. É uma pena. Gostamos de brindar e compartilhar este hábito com nossos amigos, familiares. Isso faz parte da nossa cultura. Contudo, temos bons motivos para repensarmos a postura de consumir álcool com frequência, mesmo nas chamadas doses moderadas”, diz.
A lista de enfermidades atribuídas ao uso de álcool é preocupante. Figuram nela acidentes vasculares cerebrais isquêmico e hemorrágico, cardiopatia isquêmica e hipertensão arterial, tuberculose e outras infecções respiratórias, câncer de fígado, laringe, mama, colo e reto, esôfago, lábios e cavidade oral, faringe e cavidade nasal, além de cirrose, diabetes, pancreatite, epilepsia e desordens mentais relacionadas a efeitos cumulativos da bebida e, ainda, desfechos decorrentes de interação social sob influência alcoólica, como acidentes de trânsito e episódios de violência.
O pesquisador pontua, no entanto, que o achado científico não significa um alerta para que todos parem de beber. Muito menos, define que uma pessoa terá alguma destas doenças pelo fato de beber seu drinque favorito. “De um certo ponto de vista, cabe a cada um decidir sob as perspectivas do bem-estar e da saúde. Por outro lado, não podemos ignorar o fato de que também estamos diante de uma questão epidemiológica, com desdobramentos para a saúde pública e para a economia. Sofremos de um conjunto de doenças. Sabemos que o consumo de álcool exerce influência nociva e isso produz uma pesada carga econômica e social.”
OMS e políticas públicas
Conforme o professor Bruce Duncan, o GBD situa o consumo de alcoólicos como quinto mais importante fator de risco para carga de doenças no mundo. À frente estão tabagismo, hipertensão arterial, obesidade e má alimentação. “Este conjunto de fatores de risco metabólicos e comportamentais está diretamente associado ao desenvolvimento das doenças crônicas não transmissíveis (DCNTs), que são responsáveis por mais de 70% das mortes no Rio Grande do Sul e no resto do Brasil e constituem o principal desafio para a saúde global”, considera. “O consumo de álcool é a principal causa da carga de doença em homens no Brasil, sendo responsável, de forma direta ou indireta, por 12% da mortalidade prematura e 6% da incapacidade por doença.”
Para o epidemiologista, uma das propostas interessantes da Organização Mundial da Saúde (OMS), apesar de polêmica com relação ao papel do Estado como regulador do mercado, é a criação de políticas para limitar a propaganda e para tributar com mais rigor produtos prejudiciais à saúde. “Esta estratégia demonstrou-se bem-sucedida com relação ao tabaco, mas somente foi implementada depois que as nações perceberam que os recursos despendidos com as doenças era muito superior aos valores arrecadados com impostos pela circulação destes produtos. O que sabemos é que menos pessoas estão fumando, o que representa uma boa notícia em contraponto ao consumo alcoólico, que, conforme o GBD, cresceu cerca 72% desde 1990”, conclui.
*DALY (disability adjusted life year): unidade adotada em estudos epidemiológicos para representar os anos de vida saudável perdidos pela incapacidade provocada pela doença. No quadro abaixo, e na página seguinte, as cores acima do eixo central indicam a carga de doença relacionada ao uso de álcool e as abaixo mostram o potencial de proteção à saúde.