As Copas de um escritor - Parte 2: 1982

As Copas de um escritor - Parte 2: 1982

Nunca masquei tanto chiclete na minha vida. Demorei a ter o álbum. Anotei todos os resultados no tabelão e controlei os pontos de cada seleção, nos grupos. Olhava aquilo várias vezes ao dia e fazia meus prognósticos. E fiz uma festa imensa quando consegui as figurinhas do Naranjito, do Zico e do Fillol. Não completei o álbum. E, depois daquela Copa, nunca mais colecionei figurinhas.

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Se em 78 eu não alcancei muito bem o que era frustração e decepção, ou até o que se dizia ser injustiça, por conta da pouca idade, a Copa de 82, por sua vez, me fez chorar. Intensamente. Raivosamente. Despudoradamente. Por dias.

Eu tinha onze anos, completaria doze em setembro, e estava no auge de minha paixão peo futebol. Eu desenhava gols no caderno, enquanto os professores explicavam Matemática ou Geografia. Eu narrava partidas imaginárias inteiras. Meu aquaplay era o de fazer gol. Eu jogava futebol no campinho de terra da vila - umas peladas que chegavam a cinco horas de duração e, volta e meia, tinha uns trinta pra cada lado. Eu jogava futebol de botão. Eu jogava futebol de rua, campeonato de duplas, jogava no campo de sete e no campo de onze, jogava na quadra de cimento da escola e me ralava todo. Era capaz de pedalar por estradas de chão por horas apenas para jogar uma pelada.

Só tinha um problema. Apesar de raçudo (chegaram a me chamar de “se mata”, por causa da entrega nos jogos), meu futebol era horrível. Tudo porque eu não conseguia treinar em casa. Meu pai proibia a bola. Porque me faria deixar de estudar e porque sujava as paredes da casa. Eu só jogava escondido, quando saía. E um guri de onze anos, naquele tempo, não conseguia muita autonomia para sair todo dia. Então eu, pelo menos, tentava. E desenvolvia um futebol arte. Tá, era arte abstrata, ninguém entendia muito bem e cada um tinha uma explicação. Eu estava sempre entre os últimos a serem escolhidos pelos donos dos times e da bola. Pelo menos, escapava de ficar no gol. Já era alguma coisa.

Isso não diminuía a minha paixão pelo futebol. Eu sonhava em ser um craque como o Zico. Para mim, ele era o melhor do mundo, incomparável, melhor até do que o Pelé e, além do mais, era muito gente boa. Passava algo muito bacana para a gurizada que era fã dele. Eu adorava ver o Flamengo jogar. Torcia para o Xavante, para o Inter também - torci até para o Grêmio ganhar o campeonato brasileiro de 81 por amor ao meu tio -, mas eu gostava mesmo era de ver o Flamengo jogar. Se tivesse o Zico em campo, claro.

Aquela seleção de 82 reuniu craques que até hoje são lembrados pelo seu futebol espetacular. Além do Zico, tinha Sócrates, Falcão, Cerezo, Júnior, Éder. E o meu xará, Oscar. Como em 78, eu concordava com algumas ausências reclamadas pela imprensa, tipo Reinaldo e o goleiro Leão. Aliás, eu achava, na época, que os melhores goleiros do futebol brasileiros eram estrangeiros: Benites (Inter), Rodolfo Rodrigues (Santos) e o top dos top, Fillol (Argentina). Mas eu também simpatizava com o Telê. Achava ele genial e tinha certeza de que a taça do mundo era nossa, naquele ano.

Nunca masquei tanto chiclete na minha vida. Demorei a ter o álbum. Anotei todos os resultados no tabelão e controlei os pontos de cada seleção, nos grupos. Olhava aquilo várias vezes ao dia e fazia meus prognósticos. E fiz uma festa imensa quando consegui as figurinhas do Naranjito, do Zico e do Fillol.

Não completei o álbum. E, depois daquela Copa, nunca mais colecionei figurinhas.

Eu fiquei irritado já no jogo entre Camarões e Itália, na primeira fase. Parecia que os africanos ganhariam se quisessem, mas não faziam questão. Estava bom irem embora invictos. Tanto que tomaram um gol, foram lá e empataram, para depois voltar ao futebol que mais parecia uma dança alegre do que um esporte competitivo. Aquela Itália, que não ganhara nenhuma na primeira fase, não metia medo quando encarou o Brasil por uma vaga na semi. Empate era nosso. Barbada.

Mas não foi assim. Nem preciso descrever, aqui, a tragédia brasileira no estádio Sarriá.

Para me irritar ainda mais, meu pai, como sempre torcia para a Itália. Não para o Brasil. E comemorou os 3x2. Saí de casa. Fui chorar sentado na calçada lá na esquina da minha rua.

O futebol era um mundo injusto. Essa era a minha única certeza, naqueles dias.

Joguei meu álbum fora. Vi a final por ver. O Brasil havia perdido, um ano antes, a final do Mundialito para o Uruguai, com gols do mesmo carrasco que em 80 havia tirado o sonho de ser o campeão da Libertadores do Inter. Isso depois de massacrar a Alemanha e de Valdir Peres demonstrar ser um grande pegador de pênaltis - mas, afora isto, não era lá um grande goleiro, na minha opinião. Eu gostava do Leão, do Raul e do João Leite. Que nem estavam na Copa.

Volta e meia eu reencontrava umas figurinhas do chiclete. Elas me davam uma saudade da expectativa e euforia vivida nos dias anteriores à Copa, na troca de figurinhas com amigos, da certeza do título. Mas também me davam uma tristeza profunda. O Brasil perder para a Itália e o Congresso rejeitar as Diretas, em 84, foram duas coisas que, guri, nunca consegui entender como pode ter acontecido.


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