O dia das lembranças

O dia das lembranças

Minha mãe começava a fazer carinho na foto do meu avô e a conversar com ele. E era a partir daí que eu não gostava mais daquele dia. Porque minha mãe chorava muito, chorava com força, eu não conseguia não chorar também.

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Quando criança, todo Dia de Finados era dia de subir a “lomba do cemitério”. O pai colocava a gente no seu fusca begee lá íamos nós, visitar os familiares da minha mãe, mas principalmente meu avô Tatu, pai dela. Por vários motivos. Um, que minha mãe havia sido menina ali, na Azenha, na Lomba do Cemitério, porque o meu avô tinha oficina de mármores e granitos para sepulturas. E minha bisavó havia sido florista, ali. Já os parentes do meu pai estavam todo no interior. E o meu pai (assim como eu, quando cresci) não era muito afeito às datas religiosas. Ele dizia que dia desse ou daquele era todo dia. Anos mais tarde, ao se mudar para Montenegro, ele mudou um pouco esse dicurso. Mas com ressalvas e muito mais para ceder um pouco aos costume da minha mãe.

Eu confesso que não gostava do Dia de Finados. Porque ia sempre com minha mãe, escalado para ajudá-la, o que fazia de bom grado. Eu amava ajudá-la. Na cozinha, na lida da casa, nas aventuras. Tínhamos uma relação de promiximadade incrível - talvez por termos nascido no mesmo dia, dia este em que, ambos quase morremos. Outra história, uma hora conto. Então, nos Finados, tudo ia bem até certo ponto. Tirávamos as fores antigas, limpávamos a sepultura, colocávamos flores novas e coloridas. Aí minha mãe começava a fazer carinho na foto do meu avô e a conversar com ele. E era a partir daí que eu não gostava mais daquele dia. Porque minha mãe chorava muito, chorava com força, eu não conseguia não chorar também.

Hoje eu sei, a vida de casada não foi fácil. Era bem diferente da vida alegre de menina, filha daquele homem grandalhão e piadista, amigo de todos, espansivo, generoso até o grau da irresponsabilidade, xavante-colorado e ex-lutador de boxe e luta livre. Naquele momento, que meu pai incrivelmente respeitava, a despeito de tudo o mais que ele não respeitava tanto, ela às vezes até esquecia que eu estava ali. Depois me pedia desculpas. Mas o mal já estava feito e meu dia demorava a voltar ao normal. E a cada Finados eu torcia muito para que aquele momento não chegasse. Mas ele sempre chegava.

Minha esposa não abre mão do ritual de visitar famliares nos finados. Acha um horror que eu não me importe. Mas não sou dos rituais, prefiro as certezas interiores. Embora respeite e acompanhe. Converso com meus mortos em silêncio, em dias diversos, só comigo mesmo. Mas, enfim, se há um dia convencionado para que todos lembremos que há saudade, que seja. Dia de finados, dia dos mortos ou dia da saudade. Que seja um dia de se refletir e captar boas energias. Como lembranças ou como presenças.


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