O beija-flor, o incêndio e a parte de cada um

O beija-flor, o incêndio e a parte de cada um

A banalidade da violência, a corrupção, as formas de intolerância, os medos todos que nos rodeiam. Qual a nossa parte, mesmo?

publicidade

Uma das fábulas que considero mais bonitas é aquela utilizada como metáfora de solidariedade: o beija-flor no incêndio da floresta. Há várias versões, mas a que mais gosto tem autoria atribuída à professora e ativista queniana Wagari Maathai, Prêmio Nobel da Paz em 2004. Primeira mulher africana a receber o prêmio, foi parlamentar queniana e defensora incansável da paz e do desenvolvimento sustentável.
 

Fundadora do Movimento Cinturão Verde, que plantou 30 milhões de árvores, ela foi criticada por considerar possível o boato que já ouvíamos - e transformávamos em canções - lá nos anos 80, de que o HIV era arma de guerra biológica criada pelo homem. Talvez um dia saibamos se isto é verdade ou foi mais uma dessas "fakenews", ou nada além de uma teoria da conspiração doidivanas.


Mas, considerando as velhas práticas das “potências” mundiais, e sua capacidade de violação cotidiana à dignidade humana como estratégia de dominação econômica, principalmente na África e nas Américas, particularmente não duvido.


Resumido, o texto de Wagari diz o seguinte: o beija-flor e todos os animais fugiam de um incêndio na floresta. Só que o Beija-Flor apanhava gotas de água de um lago, voltava e atirava-as para o fogo. Uma águia, intrigada, perguntou, em tom de deboche, se por acaso o beija-flor achava que teria alguma chance de apagar o incêndio sozinho, só com aquelas gotículas.

- Sozinho, sei que não vou, mas estou a fazer a minha parte. - ele respondeu.

 

Envergonhada, a águia chamou os outros pássaros e, juntos, todos entraram na luta contra o incêndio. Vendo isto, os elefantes venceram seu medo, encheram suas trombas com água e foram ajudar. Os macacos pegaram cascas de nozes para carregar água. E todos os animais, cada um de seu jeito, acharam maneiras de colaborar na luta.
 

Pouco a pouco, o fogo começou a se debilitar e, de repente, o Ser Celestial da Floresta, admirando a bravura destes bichinhos, enviou uma chuva que apagou de vez o incêndio e refrescou todos os animais, já tão cansados, mas felizes.

Não é uma fábula motivadora? E hoje, com todo nosso dito e aclamado progresso, com toda a evolução que conquistamos com tanta ciência e tecnologia, percebemos um mundo equivocado ao nosso redor. Há uma avalanche impiedosa de comportamentos agressivos, egoístas, especuladores, oportunistas, predadores e vazios em essência e sentimento. Raso em sentimentos. A banalidade da violência, a corrupção, as formas de intolerância, os medos todos que nos rodeiam. Qual a nossa parte, mesmo? 

Cobrar dos gestores públicos, dos legisladores, do Poder Judiciário? Sim, com certeza. É da cidadania. Mas de nada adianta reclamar de ações erradas ou omissões sem cuidar os mínimos gestos que somos capazes de fazer. Burlar regras mínimas por impaciência ou pequenos lucros. Furar fila, estacionar na vaga dos idosos, ignorar regras de trânsito ou de convivência, desrespeitar pelo simples prazer de desrespeitar, disciriminar pela satisfação de se achar equivocadamente superior? Ensinar o quê aos nossos filhos, mesmo? Ódio?

Nossas atitudes devem dar o exemplo. E, a partir daí, sim: é cabeça erguida e coração leve para exigir o respeito a que fazemos jus. E chamar muitos outros para ajudar a apagar este incêndio gigante que se tornou nosso comportamento automático.


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895