O silêncio dos pardais

O silêncio dos pardais

Estão terminando com os pardais. E eles eram tantos! Fui pesquisar, para ver se é algo específico da minha região, mas não é, infelizmente. Até na Europa essas aves estão correndo risco de desaparecer por completo. Seu canto está virando um silêncio triste e sentido. E há quem, feito Mao, ache isso bom.

publicidade

Meu pai não gostava de pardais. Lembro que, muitos anos antes de perder a lucidez, lá pelo meio da década de 80, ele protestou veementemente contra uma música chamada "A Majestade, o Sabiá", que Jair Rodrigues apareceu cantando - mas era de uma ainda desconhecida Roberta Miranda. Eu era adolescente e só prestava atenção nas letras de rock, mas meu pai adorava um sertanejo e, confesso, eu ficava ouvindo com ele e admirava muitas poesias daquelas composições. Hoje chamam de "sertanejo raiz" (deve ser um jeito de não dizer que o sertanejo daquele tempo, em seu jeito simples de ser e dizer, era muito mais inteligente, em suas letras, que o tal "universitário" que veio depois). Eu tinha gostado das imagens oferecidas por aquela música que oscilava entre um tom triste e esperançoso, falando de um sujeito que se refugiava em meio à natureza, tomando banho de cascata, deitando na rede e ouvindo uma sinfonia de pardais cantando para a majestade, o sabiá.

- Sinfonia de pardais? Mas que absurdo! Pardal nem canta, pardal é uma praga!

E ele apontava para a rua e ela estavam eles. Aos montes, se revezando nos fios de luz em frente à nossa casa, irrequietos, barulhentos.

- Pode ver, só comem os restos da gente. Isso aí é um rato que voa.

Eu não concordava. Achava simpáticas, aquelas aves pequenas, saltitantes, faceiras. Tá, não havia muita harmonia nos sons que emitiam, não que desse para chamar de sinfonia. Mas dizer que os pobrezinhos não cantavam, eu considerava uma intolerância incrível do meu pai. Volta e meia largava uns pães esfarelados para eles fazerem folia no nosso pátio. E ficava no bico dos gatos, sempre de tocaia nessas horas.

Eu não sabia, mas o ditador Mao Tsé-Tung também havia decretado, na China, que o pardal era uma praga e determinou seu extermínio. Como resultado dessa sandice, veio uma praga de gafanhotos que ajudou, ao lado dos delírios para industrializar a China à força, de Mao, a piorar os trágicos três ou quatro anos da "grande fome" na China, que matou quase quarenta milhões de pessoas e levou muitos ao canibalismo numa tentativa desesperada de sobrevivência.

Dia desses li que em Cruz das Almas, na Bahia, assim como se fez em tantas outras cidades do país, a população terminou com cerca de 98% dessas aves. Apenas porque não queriam, os moradores, serem incomodados pelo "barulho" dos pássaros.

Como é estranho, isso. Como o ser humano faz coisas sem sentido. E, às vezes, coletivamente.

A mais bela música que tenho a bênção de ouvir, todos os dias, é o canto dos pássaros. Eles fazem uma folia na laranjeira dos fundos do meu quintal, pousam nas árvores dos vizinhos, nos muros, nos fios de luz. É maravilhoso começar o dia ouvindo passarinhos em seu alegre gorjeio. Os pardais, inclusive. Mesmo que eles cantem demais na maior parte do tempo. Fazer o quê, são felizes. Mesmo com o perigo de ter humanos sempre tão perto.

Outra coisa que descobri com o tempo, é que o pardal tem origem rural, não urbana. Sua adaptação ao meio urbano, acompanhando o homem, não veio sem cobrar um preço alto e sofrido da espécie.

Mas eu tenho percebido que a música das minha manhãs está escasseando. Há dias que preciso prestar atenção para encontrá-la. Estão terminando com os pardais. E eles eram tantos! Fui pesquisar, para ver se é algo específico da minha região, mas não é, infelizmente. Até na Europa essas aves estão correndo risco de desaparecer por completo. Seu canto está virando um silêncio triste e sentido. E há quem, feito Mao, ache isso bom. Porque prefere esses horrores que o ser humano anda fazendo e chamando, até, de música. Eu fico com os pardais.

 


Mais Lidas

Correio do Povo
DESDE 1º DE OUTUBRO 1895